Força Aérea Brasileira, divulga relato do enviado especial ao Haiti, o Tenente Luiz Cláudio que conta a história das vítimas do terremoto no Haiti.
Do enviado especial ao Haiti, Tenenete Luiz Claudio
O homem ergue a colher. Mal acredita o que vem à boca. É noite na vida dele. É noite da "Cidade do Sol", City Soleil, o bairro de Porto Príncipe cujo nome é a antítese do lugar em que ele mora. Procuramos saber o nome do homem. Extasiado com a novidade que enche a colher branca, não responde. Não move o olhar. Suga. Rompe naqueles segundos o desafio de permanecer. Abstrai-se da realidade que dói só de olhar. Não é possível imaginar o que sente o homem com a colher branca no vão de pedaços de mundo que sobrou.
Ao olhar em volta, o corpo de uma criança morta faz com que até os militares, acostumados havia quase 100 horas com o pesadelo, fechem os olhos por segundos para suportar a dor de quando não sobra nada. Catástrofe de almas. O homem da colher branca não imagina. Ele come. Não olha para os lados. O significado da fome é tateado pelos que surgem para ajudar, pela solidariedade dos que não sentem fome, pelos que sentem essa dor de tentar imaginar o que é conviver de olhos abertos com o pedaço do nada. A colher ergue o homem.
Perto dali, um homem empresta a mão. Militar do Exército Brasileiro, puxa outras mãos. Entra em um campo de futebol. É festa. Espetáculo. Uma mão puxa a outra. Soltam-se para receber a comida que chegou dos aviões. Experimentam o que parecia impossível. Secar os olhos e abrir sorriso. Só pela expectativa de receber algo. Sem luz, água, esgoto, por vezes, faltam também palavras. Na saída do estádio, não adianta usar só as mãos. Os braços também levam a novidade. Comida. Água. Mais dias de vida. Comer, quem sabe, mais do que pelo instinto.
Algumas ruas à frente, o homem leva com as mãos o corpo da esposa até o fundo do buraco com pouco mais de um metro de profundidade. Equilibra-se com os pés. A maior recompensa é tê-la achado em meio aos escombros. Quando retorna, as mãos de terra e o silêncio. No Centro, o silêncio na frente do que era a catedral. Além dos destroços, a luz insiste em refletir nos vitrais que sobraram. A luz é a inspiração muda e retumbante para os olhares.
O homem ergue o avião. Militares da Aeronáutica Brasileira mal acreditam no que veem de cima ensimesmados em funções como pilotar, atentar-se aos instrumentos, ao equipamento... Depois do pouso, o homem já tem novo olhar. Neste final de semana, mais de 30 toneladas de comida e remédios saem das cargas dos aviões. Imaginam que pode encher uma colher, inspirar, como se fosse puxar com a mão. A cada pouso, militares e civis representam sentimentos de países, de gente. Tantas que levam aos estoques da Organização das Nações Unidas para serem distribuídos. Assim, ao natural, gente se mostra quando tem fome. Tudo parece escuro, seja em City Soleil, Belair, City Militaire, Centro.
De um ponto ao outro da cidade e do País, há mãos, gente vagando pelas ruas nos dois sentidos e sem destino. No caminho deles, veio a solidariedade espelhada no pátio de aeronaves de intenso e permanente movimento. Nas cargas, há mais do que comida. Existem também pedaço, fresta, raspagem de esperança viva. Crianças nascem e, por isso, as aeronaves precisam voar.O avião também pode erguer os homens.
Fonte: Portal da Força Aérea Brasileira (FAB)