Enquanto o foco com relação à atual situação do Haiti se concentra na busca por vítimas soterradas e no tratamento médico dos que já foram resgatados, outra realidade, não menos assombrosa, já preocupa a população do país. O alto risco de proliferação de doenças infecciosas e mortais aumenta com o passar das horas, com o crescente acúmulo de cadáveres nas ruas (estima-se que são, pelo menos, 50 mil mortos), com o colapso do sistema sanitário, com a grande quantidade de dejetos humanos espalhados pela cidade e com o difícil acesso à água potável.
Dentre tantos agravantes, a água é a preocupação prioritária dos especialistas. Com o embarque marcado para atuar nas equipes de salvamento no Haiti, Tom Kirsch, professor e médico da emergência do Hospital e da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, Estados Unidos, que pesquisa e trabalha em grandes desastres há pelo menos 20 anos (atuou em tragédias como as dos furacões Katrina, Rita e Andrew, o atentado terrorista às torres gêmeas em Nova York e os grandes incêndios da Califórnia), acredita que, ao contrário do que muitos imaginam, os cadáveres são, de todos os problemas, o que menos o preocupa.
"Como as mortes não foram causadas por doenças, os corpos não são os grandes vilões no momento. A grande dificuldade é que, com as baixas condições de higiene e a dificuldade de acesso à água potável, os desabrigados sofrem enormes riscos de sofrer com diarreias e desidratação", afirmou, em entrevista exclusiva ao Correio Braziliense.
De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), antes do desastre que assolou o país, um em cada dois haitianos tinha acesso à água potável. Outro dado da OMS também apontava que o saneamento básico só alcançava 19% da população. "O Haiti já vem de uma situação precária em todos os aspectos. Agora, enfrenta a catástrofe. Por isso, a população é especialmente mais suscetível a doenças infecciosas, além de estar superexpostas a situações perigosas, ingerindo água contaminada, não podendo lavar as mãos ou nem sequer tomar banho. A probabilidade de uma epidemia de diarreia é muito grande, e muito grave também", reforça o doutor em infectologia Plínio Trabasso, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A equipe do Médicos Sem Fronteiras (MSF), que se encontra em Porto Príncipe prestando atendimento aos feridos, afirmou ao Correio, por meio de sua assessoria, que a água é de fato uma preocupação muito grande, e que eles estão transportando água potável para os pacientes e pessoas que vivem próximos ao Hospital Choscal, onde fazem os atendimentos.
Surto
Para Marcos Boulos, infectologista e professor da Universidade de São Paulo (USP), as epidemias são muito comuns em tragédias desse porte, e a prevenção de doenças, nesse momento, é quase impossível. "Agora, a preocupação é com o tratamento das doenças que irão aparecer. É necessário que eles tenham acesso a remédios, antibióticos, soluções hidratantes e medicamentos contra vômito, por exemplo", indica, já prevendo o surto de diarreias, que, segundo ele, serão causadas por bactérias, parasitas, vírus e até mesmo por doenças como a malária, a cólera e a dengue.
Plínio Trabasso ressalta que a grande quantidade de corpos nas ruas também pode trazer problemas de saúde para a população, uma vez que a putrefação dos cadáveres (inclusive os que já foram enterrados), pode contaminar os lençóis freáticos. Isso sem contar o forte cheiro, que é um chamariz para animais famintos, como aves, cachorros e, especialmente, ratos, que podem espalhar doenças como a leptospirose e a peste bubônica (veja o quadro).
Para Tom Kirsch, da Universidade John Hopkins, o real fator de contaminação da água são as fezes e urina nas ruas. "O problema são os vivos, e não os mortos", aponta. A solução apropriada, segundo Kirsch, seria, antes de mais nada, prover água potável para a população, e depois limpar todos os dejetos humanos das ruas. Tratar a água local e garantir que os todos os haitianos tenham acesso a banheiros, evitando assim um grande surto de doenças diarreicas.
Aristide: pronto para voltar ao país
Viviane Vaz
Com lágrimas no rosto, o ex-presidente do Haiti Jean Bertrand Aristide manifestou sua vontade de deixar o exílio na África do Sul e retornar à terra natal para ajudar às vítimas do terremoto. "Estamos prontos para partir hoje, amanhã, ou qualquer outra hora, para nos unir ao povo do Haiti, compartilhar o sofrimento na reconstrução da cidade, na transição da pobreza para a dignidade", disse, ontem, Aristide.
O ex-presidente afirmou que amigos estavam dispostos a organizar um avião para levá-lo, com mantimentos, ao Haiti. No entanto, o secretário-geral adjunto da Organização dos Estados Americanos, Albert Ramdin, esquivou-se de opinar sobre seu retorno, considerando o tema um "assunto interno" do país."É um cidadão haitiano e quer ajudar no processo (de reconstrução). É algo que tem que ser resolvido entre os haitianos."
Devido a história política conturbada de Aristide, há temores de que sua volta possa desestabilizar ainda mais o país. Os seguidores de Aristide o consideram "o primeiro líder democraticamente eleito do Haiti". Já seus críticos dizem que ele se tornou ditatorial e corrupto. Ex-padre da Igreja Católica, Aristide se tornou o primeiro presidente eleito, em 1991, mas foi deposto pelo Exército em setembro do mesmo ano. Ele voltou à presidência para outros dois mandatos: de 1994 a 1996, e de 2001 a 2004. Foi forçado ao exílio, depois de uma rebelião de soldados que o tirou do poder. Depois, se exilou na África do Sul. De lá, afirmou que ainda era o legítimo presidente, pois nunca renunciou, e que forças dos Estados Unidos o sequestraram para tirá-lo do poder.
Questionado por jornalistas sobre uma possível extensão do controle dos Estados Unidos sobre o Haiti, Albert Randim foi categórico. "Na nossa perspectiva, só há um governo no Haiti, e esse governo é o do presidente Preval", afirmou.
Riscos
Conheça as doenças que, em tragédias de grandes dimensões, podem se alastrar rapidamente:
# Diarreia e desidratação
Para os especialistas, essas são as grandes vilãs no caso da tragédia do Haiti. A diarreia pode ocorrer por ingestão de água e alimentos contaminados por uma infinidade de bactérias, parasitas ou vírus, causando no paciente um quadro grave de desidratação.
# Leptospirose
A leptospirose é uma doença transmitida pela urina de animais infectados pela bactéria Leptospira. O rato costuma ser seu maior disseminador. Em caso de grandes tragédias, a leptospirose se torna uma epidemia quando existem enchentes ou mesmo muita chuva, uma vez que basta o contato da água contaminada com qualquer mucosa, ferida ou fissura da pele humana para que a doença seja contraída. No Haiti, o risco da disseminação da leptospirose pode existir, uma vez que a grande quantidade de cadáveres atrai possíveis animais infectados (cães e ratos, por exemplo), que vão urinar pelas ruas e, mesmo sem enchentes ou grande acúmulo de água da chuva, as pessoas terão grande risco de contato com a urina desses animais. Ainda assim, o risco de epidemia é pequeno.
A doença é tratada com antibióticos, e pode levar o paciente a quadros de falência renal, hepática, dificuldades respiratórias e meningite.
# Peste bubônica
A peste é uma doença pulmonar (ou septicêmica) infectocontagiosa transmitida pela pulga do rato. O risco da doença assolar o Haiti é pequeno, mas existe uma vez que ratos são atraídos pelos cadáveres espalhados nas ruas.
# Cólera
A cólera é uma doença causada por uma bactéria que afeta o intestino, causando diarreias incontroláveis e a consequente desidratação do indivíduo. É transmitida pela ingestão de água e alimentos contaminados por fezes de pessoas que têm o vírus.
# Malária
A malária, doença comum na região, é causada pela transmissão de parasitas transmitidos pela fêmea do mosquito Anopheles. Ataca o fígado humano e pode ser fatal. O risco de epidemia só existe em caso de muita chuva na região, e o acúmulo de água parada nos escombros, permitindo a multiplicação dos mosquitos.