Poucas horas antes de embarcar para o Haiti, o equatoriano Xavier Castellanos - diretor para as Américas da Federação Internacional da Cruz Vermelha e das Sociedades do Crescente Vermelho (IFRC, pela sigla em inglês) - falou com exclusividade ao Correio, pela internet, do quartel-general da entidade, na Cidade do Panamá. Ele explicou que o envio de ajuda ao país atingido pelo terremoto de terça-feira passada esbarra nas condições precárias de infraestrutura do Haiti e na insegurança. "É importante visualizar esse desastre em um contexto no qual mais de 80% da população do Haiti vive abaixo da linha de pobreza e cerca de 2 milhões enfrentam a insegurança alimentar", afirmou. De acordo com Castellanos, o próprio governo haitiano está fragilizado ante a catástrofe, considerada por ele como "devastadora". "Nós estamos certamente falando de um dos maiores desastres na história do Haiti", destacou. O diretor para as Américas da IFRC estima que 200 mil moradores de Porto Príncipe perderam completamente suas casas, defendeu a coordenação em solo das equipes de ajuda e fez um apelo: "É importante e altamente recomendável evitar a polarização de centenas de agências humanitárias, desejosas em ajudar, mas sem a experiência para enviar apoio humanitário".
Missão: salvar vidas
Os haitianos estão desesperados com a demora na ajuda. Como o senhor analisa essa catástrofe e quais os obstáculos para levar alimentos e donativos até Porto Príncipe?
A Cruz Vermelha haitiana esteve trabalhando desde o início do desastre em atividades de busca e resgate, primeiros socorros, apoio psicológico e remoção de áreas. Inclusive a construção de abrigos temporários. Muitas pessoas no Haiti têm adotado o mesmo comportamento de solidariedade, com o propósito de fazer todos os esforços para salvar as vidas de gente sepultada em prédios que desmoronaram ou em ruínas. Mas o desastre e sua magnitude são devastadores e as necessidades são altas e aumentam a cada segundo.
Como assim?
É importante visualizar esse desastre em um contexto no qual mais de 80% da população do Haiti vive abaixo da linha de pobreza e cerca de 2 milhões enfrentam a insegurança alimentar. As condições de infraestrutura, em todos os níveis, são pobres e não respeitam códigos de construção. Em alguns locais, o nível de pobreza tem levado a enormes centros superpopulosos, onde os níveis de insegurança são elevados. Em tais circunstâncias, incluindo o nível de danos aos prédios dos governos e aos sistemas, estamos trabalhando em uma situação de resposta a um desastre pesado, onde milhares de vidas estão em risco e centenas de milhares perderam tudo o que tinham. A logística terá de ser seriamente considerada, para realizarmos um bom trabalho no Haiti. O transporte (aéreo, terrestre e marítimo) será uma preocupação, além da segurança e, especialmente, da nossa capacidade coletiva de resolver rapidamente o que for preciso.
A mobilização da comunidade internacional tem sido suficiente para responder ao desastre, até o momento?
A Federação Internacional da Cruz Vermelha e das Sociedades do Crescente Vermelho tem ativado e começado a enviar 10 unidades de resposta a emergências. Elas incluem uma equipe de logística, dois times de ajuda e abrigos, um grupo de telecomunicações IT, duas unidades M15 (água potável para 15 mil pessoas e saneamento básico para 5 mil), 3 Unidades de Saúde Básica Móveis. A mobilização internacional será suficiente quando tivermos o panorama real das necessidades.
De que modo essa ajuda deve ser gerenciada?
É importante e altamente recomendável evitar a polarização de centenas de agências humanitárias, desejosas em ajudar, mas sem a experiência para enviar apoio humanitário. A coordenação no solo é fundamental para assegurar que evitemos a duplicação de esforços e demos menos atenção às necessidades. É imperativo resolver as necessidades humanas de modo coordenado, promovendo o papel do governo e apoiando os governos em seus esforços para aliviar e, depois, recuperar. Como auxiliar do governo, a Cruz Vermelha haitiana está em permanente coordenação com as autoridades e a Cruz Vermelha Internacional promove tal coordenação. Isso está ocorrendo em todos os locais do mundo e o Haiti não é exceção.
O trabalho de resgate exige também interação perfeita com outras agências?
Temos enviado equipes dedicadas a facilitar a coordenação entre o Movimento da Cruz Vermelha, mas também com as agências das Nações Unidas. Estamos trabalhando lado a lado com o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha) na preparação da resposta internacional. Por favor, lembre-se de que estamos falando de um país em constante sofrimento, e esse desastre tem complicado as coisas de uma forma ainda mais trágica e dramática. A realidade crua da pobreza, o sofrimento, as necessidades diárias... Algumas vezes esquecidos por muitas pessoas.
O governo haitiano enterrou até ontem 15 mil corpos. O senhor acredita que o número de mortos possa superar os 50 mil? Estamos enfrentando a pior catástrofe já vista na América Latina?
Nós estamos certamente falando de um dos maiores desastres na história do Haiti. O alerta precoce para terremotos é algo difícil de se obter. A prevenção é o remédio correto para evitar esse tipo de tragédia. Em nossa avaliação inicial, temos calculado que ao menos 200 mil moradores de Porto Príncipe perderam totalmente suas casas e vários milhares tiveram as residências seriamente danificadas. É possível um aumento significativo no número de mortos, e é isso o que o governo haitiano calcula. Nós temos trabalhado para salvar quantas vidas pudermos, inclusive resgatar os corpos e tratá-los com dignidade e respeito.
Muitos haitianos creem que a prioridade agora é enterrar seus mortos. Na sua opinião, o que é mais importante neste momento?
Em primeiro lugar, qualquer ser humano, vivo ou morto, deveria ser tratado com dignidade e respeito. Essa é sempre uma prioridade, sob a perspectiva do lado humano. O enterro dos mortos representa uma grande ação para reduzir o estresse psicológico e as emoções. É sempre importante ter isso em mente. Mas os corpos não são uma ameaça, neste momento. Salvar o maior número possível de vidas é a maior prioridade. Mas isso deveria ser entendido como uma ação de mão dupla. A Cruz Vermelha tem contemplado em seus planos o gerenciamento de cadáveres e estamos trabalhando em coordenação com a Organização Pan-Americana da Saúde e com outras agências para assegurarmos que isso é parte do trabalho humanitário. Que isso seja tratado com a mesma prioridade do resgate, dos primeiros socorros, do cuidado imediato da saúde e do envolvimento das comunidades na reabilitação e, espero, na recuperação.
É possível estimar quantos haitianos ainda estão sob os escombros?
Nós acreditamos que o número seja alto. As atividades de busca e resgate continuam e não têm parado em vários locais do Haiti. As próprias comunidades têm sido fantásticas na imediata retirada das pessoas dos prédios. Os voluntários da Cruz Vermelha não são uma exceção nesses tremendos esforços.
Quais as principais dificuldades das equipes de resgate?
Neste momento, temos cerca de 140 pessoas no Haiti. Boa parte chegou horas depois do terremoto. Nossa avaliação inicial indica vários pontos: 1) o nível de destruição é alto e as pessoas, em geral, tentam fazer o que podem para salvar vidas nos esforços de busca e resgate e no tratamento de ferimentos; 2) os hospitais estão superlotados e os mortos e feridos estão nas ruas; 3) a logística, sob todos os pontos de vista (transporte, armazenamento etc) é um desafio significativo; 4) a segurança corre o risco de se tornar um tema de preocupação, se nenhum apoio humanitário for prestado; 5) o acesso à agua e ao sanemanto serão um grave desafio, se nenhuma solução imediata for encontrada; 6) o acesso a comida e mantimentos começarão a se tornar mais complicados; 7) a capacidade das instituições de responderem efetivamente, em um contexto onde muitas das instituições governamentais têm pessoas que tiveram suas famílias diretamente atingidas. Além disso, o número reduzido de pessoas realizando suas tarefas regulares nos setores públicos é um entrave. Por fim, existe o desafio de abrigar os sobreviventes. As pessoas permanecerão nas ruas ou em casas que não garantem sua segurança e réplicas podem se tornar uma grande ameaça.
Os haitianos acusam o governo de René Préval de nada fazer por eles. Na noite de anteontem, protestaram abandonando corpos no meio das ruas. Como vê essa situação?
Precisamos olhar esse desastre em um contexto mais amplo. Um desastre como esse sempre cria o caos. No meio do caos, os governos tentam se reorganizar, como comunidades, organizações etc. Leve em consideração que as autoridades estão também afetadas pelo terremoto. Elas são parte das estatísticas de pessoas com mortes na família, ferimentos, prejuízos materiais etc. Estamos falando de um país onde os níveis de governabilidade não estão nas melhores condições. Com o tremor de terça-feira, a situação se deteriorou. O tema real aqui é a falta de medidas preventivas e de preparo apropriado. A desigualdade, a marginalização, a pobreza e muitos outros assuntos têm aumentado a miséria e os níveis de vulnerabilidade. A realidade é que esse desastre foi devastador.
"Nós temos trabalhado para salvar quantas vidas pudermos, inclusive resgatar os corpos e tratá-los com dignidade e respeito"
Xavier Castellanos, diretor para as Américas da Federação Internacional da Cruz Vermelha e das Sociedades do Crescente Vermelho (IFRC)