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Irã: Nova onda de manifestações abre fissuras na cúpula do poder

Linha dura quer pena de morte para líderes reformistas, mas os pragmáticos defendem respeito aos que lutam por mudanças dentro do regime

Um dia santo marcado por protestos e manchado por mortes foi o bastante para expor uma vez mais as fraturas no establishment político, religioso e militar da República Islâmica. Ainda sob o impacto das manifestações do último domingo, quando os muçulmanos xiitas (majoritários no Irã) celebravam o martírio de um de seus líderes mais venerados, porta-vozes da facção mais linha-dura do regime pediam ;pena máxima; para os dirigentes da oposição reformista. Mas ao menos uma importante autoridade, um conservador definido como ;pragmático;, estabeleceu distinções entre os adversários ; e um limite para o exercício da contestação.

;O Majlis (Parlamento iraniano) quer que os serviços secretos e as autoridades judiciais prendam as pessoas que insultam a religião e imponham a elas a pena máxima, em particular aos que destruíram bens públicos;, discursou ontem o presidente do Legislativo, Ali Larijani. Veterano da cúpula do regime, até o ano passado envolvido nas negociações internacionais sobre o programa nuclear, Larijani fez carreira à sombra do líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei, expoente da facção conservadora. Mas o presidente do Majlis deixou claro que vê diferenças entre os adversários da República Islâmica e os que lutam para reformá-la em benefício da sociedade civil. ;Estabelecemos uma distinção entre os movimentos políticos que representam a esquerda dentro do regime e os contrarrevolucionários.;

A esquerda mencionada por Larijani corresponde à coalizão reformista que nas eleições de junho apresentou o líder reformista Mir Hossein Mousavi para desafiar o presidente Mahmud Ahmadinejad, protegido de Khamenei. A reeleição de Ahmadinejad foi recebida com denúncias de fraude generalizada e uma onda de manifestações reprimidas com violência. A oposição voltou às ruas no domingo, aproveitando a procissão da ashura, que marca a morte do imã xiita Hussein, e os confrontos se repetiram nas ruas de Teerã. Entre os oito mortos está um sobrinho do candidato reformista, Ali Mousavi, cujo corpo desapareceu do necrotério na segunda-feira.

Ameaças
As divergências do presidente do Majlis com a linha dura começam pela morte do jovem oposicionista: segundo a polícia, ele teria sido assassinado ;por terroristas; e nem teria participado das manifestações, embora o cineasta Mohsen Makhmalbaf, que vive em Paris e é expoente dos círculos intelectuais que contestam o regime, tenha garantido que Ali Mousavi recebera ameaças de morte dias antes. Mais pronunciada, porém, é a diferença de tom no que diz respeito ao tratamento dos reformistas. ;Os que estão por trás da sedição atualmente em curso no país são mohareb (;inimigos de Deus;), e a lei é muito clara sobre a punição prevista para eles;, declarou o aiatolá Abbas Vaez-Tabasi, que representa o líder supremo na província de Khorasan. A Constituição prevê a pena de morte para os mohareb, e outra voz que pediu a execução para os líderes oposicionistas ; sem distinções ; foi o aiatolá Ahmed Khatami, orador oficial das orações comunitárias em Teerã.

As dissonâncias entre ;pragmáticos; e ;duros;, que dominam as instituições desde que o reformista Mohammad Khatami passou a presidência para Ahmadinejad, eleito pela primeira vez em 2005, atestam o paradoxo descrito por um alto diplomata brasileiro que acompanha de perto a aproximação com o Irã. ;É uma sociedade muito mais complexa e com muito mais nuanças políticas do que qualquer um dos países vizinhos;, disse esse diplomata, referindo-se aos vizinhos árabes da República Islâmica. A despeito dos ;rasgos teocráticos; do regime e dos limites acanhados para a oposição, se comparados aos parâmetros do Ocidente, o Irã ;tem eleições disputadas de verdade;, segundo essa fonte, e ;uma sociedade civil organizada e participante, como ficou demonstrado nas manifestações de junho;.


Pressão externa

Apontados pelos líderes do regime iraniano como instigadores dos protestos do último domingo, os governos ocidentais condenaram a repressão aos manifestantes e a onda de prisões de opositores. França e Reino Unido pediram a pronta libertação ;das pessoas presas injustamente;, atendendo à pressão de manifestações que se sucedem diante das representações iranianas em diversas capitais europeias, como Berlim e Bruxelas (foto). A resposta do presidente Mahmud Ahmadinejad não demorou: ele acusou os dissidentes de ;seguir o roteiro traçado; pelo Ocidente e prometeu que eles ;fracassarão;.

O chanceler iraniano, Manouchehr Mottaki, abandonou a linguagem diplomática e disse que Londres receberá de troco ;um murro na boca;.

Análise da notícia
República é a questão

A crise política mais aguda e prolongada nos 30 anos desde a revolução islâmica diz respeito àquele que é seu traço mais marcante, do ponto de vista da história iraniana: em 1979, depois de mais de 2 mil anos de monarquia (quase sempre despótica), os aiatolás instituíram o regime republicano. Este o amálgama que propiciou a coalizão, quase inverossímil, entre setores laicos da oposição à dinastia Pahlevi ; desde liberais até a extrema esquerda ; e o clero xiita. Todos sob o manto onipotente do aiatolá Khomeini, inspirador da insurreição pacífica.

É a noção da república que está novamente em pauta nos protestos que se repetem agora, passados seis meses da contestada reeleição do presidente Mahmud Ahmadinejad, sob as bênçãos do líder religioso supremo, o aiatolá Ali Khamenei. Entre os manifestantes que saem às ruas de Teerã não faltam aqueles que almejam pôr abaixo a teocracia, mas é provável que sejam ainda mais numerosos os partidários de reformas nos marcos do regime. Desde os primeiros meses e anos da revolução, eles disputam espaços, em especial no Parlamento, com a linha-dura conservadora e autoritária.

A aliança tácita entre ;contrarrevolucionários; e reformistas, selada sob bombas de gás e cassetetes, coloca em questão os limites da República Islâmica. Mais concretamente: até onde pode ir o poder da cidadania e a partir de que ponto se impõe a tutela do establishment militar-religioso. (SQ)


Fúria no Paquistão

O governo paquistanês pediu ontem ;calma e moderação; aos líderes dos muçulmanos xiitas, minoritários em relação à corrente sunita, enquanto multidões saíam às ruas de Karachi, capital econômica do país, para sepultar os primeiros dos 43 mortos no atentado da véspera, quando um homem-bomba atacou a procissão xiita da ashura. Pela manhã, bombeiros ainda combatiam as chamas que destruíram parte do comércio da cidade, atacado pelos fiéis enfurecidos com a carnificina.

Embora nenhum grupo tenha assumido a autoria do ataque, as suspeitas apontam na direção de militantes ligados à rede terrorista Al-Qaeda e seus aliados talibãs. Ambos são de confissão sunita e, embora se declarem em guerra com o Ocidente, cometem com frequência atentados contra a minoria xiita, acusada de ;heresia;. O ministro do Interior, Rehman Malik, vê na sucessão dos acontecimentos o desenrolar de um complô para desestabilizar o governo e o presidente Asif Ali Zardari, mas insinuou que também os xiitas têm responsabilidade na onda de violência. ;Acreditamos que se tratou de uma conspiração, de uma ação planejada;, disse o ministro. ;E aqueles que se voltaram para o vandalismo não passam de infiéis sob o manto de manifestantes.;

A terça-feira amanheceu com a maior parte dos postos de gasolina de Karachi fechados e o centro comercial ainda fumegando, resultado dos incêndios iniciados pouco depois do atentado. De acordo com os bombeiros, dois edifícios comerciais ruíram e um terceiro apresentava risco de desabamento. ;Nosso escritório ficou totalmente queimado, tudo destruído;, lamentava Saleem Khan, dono de uma locadora de automóveis. Karachi é um dos focos principais de tensão entre sunitas e xiitas, que representam 20% da população, mas se concentram na região.

O presidente Zardari, aliado ao Ocidente no combate aos fundamentalistas, pertence ele próprio à elite econômica e política xiita de Karachi. Ele é viúvo da ex-premiê Benazir Bhutto, morta em um atentado no início de 2008. O pai de Benazir, o também ex-premiê Zulfikar Ali Bhutto, foi deposto em 1977 pelo general Zia Ul-Haq, aliado dos fundamentalistas sunitas, e enforcado dois anos mais tarde. Embora o clã lidere um partido declaradamente laico, tem origens religiosas xiitas, expressas, entre outros símbolos, no nome do patriarca: Zulfikar era o nome da espada usada por Ali, genro do profeta Maomé e primeiro imã (guia) do xiismo.