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Ex-refém das Farc exorciza o passado

Em livro, a advogada Clara Rojas relata os momentos de desespero e medo no cativeiro das Farc. Também conta que o Natal é um dos dias mais difíceis para os sequestrados pela guerrilha marxista

Este será um Natal feliz para Clara Rojas, candidata ao Senado colombiano pelo Partido Liberal no próximo ano. Pela segunda vez, desde que foi libertada em 10 de janeiro de 2008, poderá celebrar a data ao lado de seu filho, Emmanuel, familiares e amigos. Um Natal bem diferente daqueles vividos na selva colombiana, como refém das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Ex-chefe de campanha de Ingrid Betancourt, então candidata à presidência pelo Partido Verde Oxigênio, Clara e a senadora foram capturadas pela guerrilha quando visitavam a cidade de San Vicente del Caguán, em 23 de fevereiro de 2002.

;O Natal é uma das épocas mais difíceis em cativeiro. Na selva, não há nem mesmo velas, e as noites são muitíssimo escuras. Por isso, sente-se falta sobretudo do calor humano, da generosidade e da alegria que caracterizam as festas natalinas;, conta Clara na autobiografia que chegou ao mercado brasileiro no início deste mês, intitulado Eu, prisioneira das Farc. ;Com o livro, virei a página do sequestro. A experiência de escrever me permitiu tomar um novo impulso em minha vida;, afirmou, com exclusividade ao Correio (leia a entrevista nesta página).

No último domingo, a advogada colombiana comemorou seu aniversário de 46 anos. Ela perdeu seis anos na selva, quando ;estava na plenitude da vida;. ;Procuro não encarar isso com amargura; assumo-o como algo que me aconteceu, mas sigo em frente com minha vida. E, acima de tudo, nem eu nem minha família queremos continuar nos sentindo vítimas;, afirma a candidata colombiana.

No livro, Clara relata com detalhes a condição dos cativos e o relacionamento com os guerrilheiros; a sobrevivência na selva e as tentativas de fuga. ;Um sequestrado tem duas opções: deixar-se morrer ou lutar por sua vida. Quando se opta por sobreviver e se descartam a morte e a loucura, é preciso trabalhar diariamente sem esmorecer para conseguir;, escreve. Além de vencer períodos de greve de fome e mudanças de acampamento, Clara também teve de lutar pelo filho. Em abril de 2004, depois de uma gestação com comida restrita e sem cuidados médicos, Emmanuel nasceu das mãos de um enfermeiro das Farc, por meio de uma arriscada cirurgia cesariana. Oito meses após o parto, a autora foi separada do filho e voltou à solidão ; a amizade com Ingrid se desgastou ao longo do sequestro.

Gratidão
Na Colômbia, Clara está evitando as entrevistas, pois não quer se aproveitar da experiência do sequestro para as eleições legislativas em março. ;Não estou fazendo política com o tema do sequestro, nem vou incluir o tema como plataforma para me lançar ao Senado. Venho fazendo um trabalho humanitário desde que me libertaram, e continuarei a fazê-lo onde quer que esteja;, disse a política ao jornal colombiano El Tiempo. A candidata a senadora também diz ter ;uma admiração muito especial; pelo presidente Álvaro Uribe, mas que não está de acordo com a possibilidade de um terceiro mandato consecutivo. ;Sou muito agradecida ao presidente, pelo que fez para conquistar minha liberdade, mas não estou de acordo com sua reeleição, porque isso faz mal à democracia;, destacou.

Uma versão especial da obra para os brasileiros foi feita a pedido de Clara, que preferiu não utilizar a edição publicada em Portugal. Ela espera que os brasileiros ;separem um tempo para ler o livro com calma, pois aí vão encontrar várias mensagens que podem servir de referência para enfrentar as próprias experiências;. O último capítulo do livro é uma lição sobre o perdão. ;As maldições e bênçãos na vida são duas faces da mesma moeda e cada um escolhe como vê-la. Se pretendo seguir adiante e voltar a ter uma vida plena, preciso perdoar, de coração, todos os que me causaram tanto mal;, ensina. ;Quero que Emmanuel entenda que sua mãe é uma mulher feliz, apesar da adversidade que enfrentou e que, com a ajuda de Deus, teve forças para superar;.

O número
2.150 - Número de dias que Clara Rojas esteve sob poder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc)

Entrevista Clara Rojas
;Minha percepção do conflito mudou;

Em entrevista ao Correio, antes do sequestro e morte do governador de Caquetá, Luis Francisco Cuéllar, a advogada Clara Rojas comenta detalhes do livro Eu, prisioneira das Farc, fala sobre a política nacional e regional e explica seu programa de governo como candidata ao Senado colombiano pelo Partido Liberal.

A Clara Rojas antes de ser sequestrada é muito diferente da de hoje? O que mudou e o que permanece?
Sem dúvida, a dor me permitiu crescer como ser humano, como mulher e como mãe. Contudo, sinto que sou a mesma, o que acontece é que a experiência vivida me deu certa maturidade para enfrentar a vida como ela é.

Mudou sua análise do conflito na Colômbia, entre a guerrilha e o governo, antes e depois do sequestro? Em que sentido?
Sim, minha percepção do conflito mudou. Depois de tudo, sinto que por trás de cada parte há seres humanos que lutam. É importante manter o sentido humano que existe dentro de tudo. Confio plenamente que, no futuro, este problema, por mais errático que pareça, precisará ter uma rápida solução.

Em sua opinião, qual deveria ser a política do governo colombiano em relação às Farc?
É preciso reconhecer que a política do atual governo manejou por um tempo um problema muito difícil na Colômbia. Mas, infelizmente, o problema ainda persiste. O atual governo não dá mostras de querer analisar ou apresentar alternativas. Eu, particularmente, acho que é preciso trabalhar simultaneamente em alternativas de diálogo.

Pelo seu relato, temos a impressão de que você se dava melhor com os guerrilheiros do que com os demais cativos. É isso mesmo?
Não, não se deve exagerar. Simplesmente me pareceu honesto registrar algumas atitudes das Farc que me salvaram a vida, principalmente no momento do parto, e que ainda me surpreenderam e me custou aceitá-las. Também tive dificuldades, em determinados momentos, com alguns dos antigos companheiros de cativeiro, que me surpreenderam. Por isso, registro a complexidade da situação que me coube enfrentar e continuo dando graças a Deus por estar viva.

O público não sabe quem é o pai de Emmanuel. Algum dia será importante revelar sua identidade?
Não, esse tema ficou no tinteiro justamente pelas razões que narro no livro.

Emmanuel se lembra do tempo em que viveu na selva? Que coisas mais lhe chamaram a atenção?
Meu filho era muito pequeno e não tem grandes lembranças daquela época, e me alegro por isso. Em parte, é o que hoje lhe permite levar uma vida normal. Vive a alegria do dia a dia como qualquer menino de sua idade.

Em seu livro, o leitor pode sentir a existência de duas Colômbias: uma urbana, aonde chega o Estado, e outra rural, que desconhece as leis e a comodidade das infraestruturas. Como fazer chegar o Estado até estas partes e, ao mesmo tempo, defender o meio ambiente?
Sem dúvida, falta uma maior presença do Estado nas áreas rurais, e não é só a presença do Exército. É a comunidade, os colégios, a vida normal. O que faz realmente que os povos progridam. Ter amplas zonas desabitadas, pois não há lei, não há Deus, e aí se apresentam estes problemas das guerrilhas. O tema da proteção ao meio ambiente é um tema cultural. Ainda há ali um longo caminho para percorrer.

Como se deu a sua volta ao Partido Liberal? E como surgiu a ideia de se candidatar ao Senado?
O primeiro dilema foi a volta à política: surgiu do sentimento de várias pessoas em diferentes momentos, em diferentes nações e diferentes lugares de meu próprio país. Por causa do tema de meu livro, viajei muito ao exterior, e também pela Colômbia. O que mais me impressionou foi esse sentimento das pessoas, que espontaneamente me dizem que está na hora de eu participar ativamente da política nacional e do Senado. Além disso, a atitude do Partido Liberal de manter suas portas abertas no momento em que eu decidisse tomar uma decisão. As primeiras eleições de que participei, em 1994, foram por esse partido; depois (eu e Ingrid Betancourt)decidimos sair e criar o Partido Verde. Com a nossa ausência, extinguiu-se. A realidade nacional me permite amadurecer a ideia de que é preciso apostar na renovação dos partidos, de fortalecer a democracia por meio dessas instituições que fazem da vida política uma atividade especial.

Se conseguir o Senado, você acha que poderá ajudar no
processo de paz na Colômbia?
Do Senado me dedicarei a três temas principais. Os sociais ; as crianças, a mulher, a juventude, a família, a terceira idade. Quando o setor social funciona, tudo funciona. O outro tema é recuperar as bandeiras ambientais que hoje estão na agenda global. E também, claro, criar propostas para a busca da reconciliação e da paz na Colômbia, de maneira a torná-las uma realidade.

Parece-lhe uma boa ideia o avanço do acordo da Colômbia com os Estados Unidos, permitindo o envio de tropas americanas à bases colombianas?
Olha, de forma geral, eu gostaria que não houvesse esse tipo de acordo ; uma maneira de conseguir a paz é o desarmamento. Mas os países têm que enfrentar certas necessidades: assim o fizeram a Venezuela com a Rússia, o Brasil com a França e a Colômbia com os Estados Unidos. O melhor dos mundos seria que não se fizessem este tipo de acordo. O que é preciso fazer é tratar que as relações na América Latina se levem com o máximo de respeito possível e compreensão dos problemas e situações de cada país. Eu gostaria que houvesse um diálogo melhor entre todos os presidentes latino-americanos, mais direto, mais honesto e claro, mais respeitoso. Acho que manter as relações de cordialidade e de boa vizinhança é importante, e buscar melhorar também a diplomacia, as relações comerciais, as relações culturais entre nossos povos.

Como você analisa a onda de reeleições na América Latina? É positivo ou negativo para a democracia?
A América é um continente chamado à liberdade, à democracia, ao crescimento. Não me parece conveniente para nenhum país a reeleição por mais de um período presidencial. A democracia é importante, assim como a alternância de poder; Permitir que outros também governem e se responsabilizem pela coisa pública. O problema surge quando alguns chefes de Estado querem se perpetuar no poder. Sugiro-lhes amavelmente que se preparem para tudo, e, claro, também é preciso se preparar para deixar o poder, para permitir que pessoas responsáveis continuem trabalhando. Nisso, sem dúvida, a atitude do presidente Lula é mais que louvável, é uma atitude generosa, mas também é razoável. Tomara que outros chefes de Estado se animem a seguir seu exemplo.