Enviado especial
Nagasaki (Japão) - Em maio de 2010, Nova York sediará uma conferência para discutir o Tratado de Não Proliferação Nuclear (1). O que for decidido na Big Apple certamente terá efeito na vida do japonês Tsuka Watanabe, a 10,7 mil quilômetros dali. Nascido em 23 de maio de 1932, ele tinha 13 anos quando sua história sofreu uma guinada brusca naquele fim de manhã de 9 de agosto de 1945. Às 11h (hora local), o garoto escutou um barulho diferente. Ele e três amigos estavam no primeiro andar da casa dos pais, onde funcionava um restaurante. "Na Segunda Guerra Mundial, as pessoas estavam acostumadas a saber que tipo de avião estava voando sobre a cidade pelo barulho dos motores", lembrou. "Mas, naquele dia, aquele avião tinha um som completamente diferente. Me lembro que falei com meus amigos: 'Vamos lá fora para ver o avião'", prosseguiu.
A aeronave era um bombardeiro B-29 da Força Aérea dos Estados Unidos. E o que ela trazia explodiu sobre Nagasaki como um capÃtulo do apocalipse. Apelidada de Fat man (homem gordo, em inglês), a bomba de 3,25m de comprimento, 1,52m de diâmetro e 4.500kg - recheada de plutônio-239 - foi detonada a 500m acima do solo e causou uma força destrutiva equivalente a 21 mil toneladas de TNT. Eram 11h02. "Eu e mais dois amigos nos levantamos e saÃmos da casa", continuou Tsuka. "Três segundos depois, vi um clarão como nunca tinha visto antes. Então, virei para meus amigos e gritei: 'Fusero!'"
A palavra, em japonês, quer dizer "protejam-se" e seu significado mais amplo em épocas de guerra é entendido como "joguem-se no chão". Mal deu tempo para que Tsuka e seus colegas corressem de volta para casa. Os três amigos se protegeram sob uma mesa. Pouco depois, a onda de choque provocada pela bomba atômica pôs a casa abaixo. "Tive muita sorte. Acho que foi um milagre. Não fui esmagado porque eu me deitei entre uma geladeira e as mesas. E elas serviram de proteção para que os destroços não caÃssem sobre mim".
Destroços
Sato, a mãe de Tsuka - então com 33 anos - e Chikuzo, uma prima de 3 anos, também estavam na casa. O pai, Sakae, servia à Marinha japonesa e não presenciou o ataque. Quando a Segunda Guerra Mundial acabou, ele voltou para casa completamente ileso. Assim que Tsuka conseguiu colocar os pensamentos em ordem, a primeira coisa que pensou foi na mãe. "Resgatei meus amigos, porque eles estavam mais perto de mim. Eles não estavam machucados". Ele contou que, após escalar os escombros, deparou-se com uma cena horripilante. "Tudo estava escuro por conta do cogumelo nuclear. Não dava para ver nada da cidade. Foi como se o dia tivesse virado noite. Comecei a chorar porque pensei que não tinha sobrado ninguém na cidade".
Por sorte, Tsuka Watanabe encontrou a mãe. Caminhando sobre os destroços, acabou pisando na própria mãe, que se jogara ao chão para proteger Chikuzo. "Eu ajudei minha mãe a sair dos escombros e percebi que ela estava com o lado esquerdo do rosto e do corpo muito feridos por estilhaços de vidro", recordou. "Me lembro que puxei três pedaços de vidro do rosto dela".
Apavorados, Tsuka, a mãe, a criança e um dos amigos partiram em busca de ajuda. Os quatro acabaram encontrando um abrigo para bombas que havia ali perto. Era um local reservado para estrangeiros, prisioneiros de guerra. E ali, Tsuka aprendeu mais uma lição que o marcaria para sempre. "Na escola, a gente ouvia que todos os americanos, ingleses e australianos eram gente má. Mas, quando a gente chegou lá, eles nos trataram muito bem. Todos estávamos muito machucados. Mesmo assim, nos ofereceram a única garrafa de água que tinham. Me lembro que minha mãe recusou, dizendo que eles estavam mais machucados do que a gente e que precisavam da água mais do que nós".
1- Contra a proliferação
Em 1968, a Assembleia Geral da ONU aprovou um documento que tinha o objetivo de frear a dispersão de armas nucleares. O Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), ratificado por 95 paÃses, entrou em vigor em 1970, quando cinco nações possuÃam armamentos deste tipo: EUA, antiga União Soviética, Grã-Bretanha, França e China. Hoje, o número de paÃses na lista quase dobrou. Ãndia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte também desenvolveram suas bombas.
Fonte da Paz
A fonte é a porta de entrada para o Parque da Paz, erguido em Nagasaki como um apelo pelo fim das guerras. Ao fundo, está a famosa Estátua da Paz.
Estátua da Paz
Estátua na qual um homem aponta ao céu, indicando de onde veio a bomba. O braço na horizontal é um pedido pela abolição das bombas nucleares.
Hipocentro da bomba
Monumento no local do hipocentro da explosão. O epicentro é o ponto no qual a bomba explodiu, a 500m sobre o solo. O hipocentro é o mesmo local, no solo.
Museu e Hall da Paz
Lugar reservado à memória das milhares de pessoas que perderam a vida em decorrência do ataque nuclear. Ali estão fotografias e outros registros do ataque. No Hall da Paz, ficam registrados os nomes de todos os mortos no dia da explosão ou depois, em decorrência dos ferimentos ou da radiação.
Vontade de viver
Tsuka Watanabe, a famÃlia e seu amigo, Kitamura, ficaram cinco dias no abrigo e, de lá, partiram para Taira, a algumas dezenas de quilômetros do epicentro da explosão, onde a avó dele vivia. A história daquela famÃlia jamais seria a mesma. Dias depois, Tsuka começou a sofrer os efeitos da radiação. A febre alta e a diarreia fizeram com que os médicos perdessem as esperanças de cura. "Eu passei por três hospitais e em todos eles ouvi que não havia como me curar. Em um deles, um dos médicos me disse que eu não passaria daquela noite. Mas eu sobrevivi. Acho que a vontade que eu tinha de viver falou mais alto".
A mãe, entretanto, morreu 10 anos depois, em 10 de agosto de 1955, por doenças associadas à radiação. "Minha mãe viveu o resto da vida com cacos de vidro dentro dela, que só foram descobertos depois que ela morreu", lamentou Tsuka. O amigo, Kitamura, também ficou doente e morreu, com apenas 16 anos. Os outros dois amigos sobreviveram até os 70 anos. A prima, Chikuzo, ainda vive.
Maio de 2010 será uma época importante para Tsuka Watanabe, hoje com 77 anos. Desde aquele 9 de agosto de 1945, 64 verões se sucederam. Ele estudou, formou-se, virou professor. Casou-se, teve três filhos e quatro netos. Na sua profissão, dedicou-se a trabalhar com crianças portadoras de autismo.
Tsuka Watanabe não desenvolveu nenhuma outra doença relacionada à radiação. Mas perdeu a visão do olho direito e ainda hoje acredita que isso se deveu aos episódios daquela manhã. Atualmente, ministra palestras, onde conta sua história, na esperança de que as pessoas não deixem que o passado se perca no esquecimento.
"Os sobreviventes ainda sofrem os efeitos da radiação e de tudo o que aconteceu naqueles dias terrÃveis em Hiroshima e Nagasaki", ressaltou. "E nossa maior missão é seguir contando a nossa história para que outras pessoas nunca mais experimentem o que eu e milhares de outras pessoas vivemos há quase 65 anos. Chega de guerra e chega de sofrimento". Ele tem esperanças de que a conferência de Nova York termine com o mundo avançando no sentido de abolir as bombas atômicas do planeta.