Nenhuma cidade encarna, resume e representa os extremos da história humana no século 20 como a capital da Alemanha. Extremos de terror e opressão, como os 12 anos de ditadura nazista sob Adolf Hitler. Extremos de horror e destruição, como o desfecho cruento da Segunda Guerra. O extremo da intolerância política, tornada visível e tangível na forma concreta de um paredão cinzento e lúgubre, com 155km de perímetro, que por 28 anos cercou a metade ocidental da metrópole. O Muro de Berlim, chamado de ;muro da vergonha;, foi a obra-prima da Guerra Fria, que por quatro décadas dividiu o mundo entre o próspero bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e a União Soviética comunista com seus satélites, entrincheirados atrás da Cortina de Ferro. A Alemanha reproduziu essa divisão.
[SAIBAMAIS]O monstro de cimento, o regime que o ergueu e a geopolítica que permitiu sua existência começaram a ruir na noite de 9 para 10 de novembro de 1989, quando a eles se sobrepôs o sentimento da liberdade, expresso pelos alemães dos dois lados da fronteira ideológica. Pacificamente, desafiando fardas e baionetas com o grito de Wir sind das Volk (;nós somos o povo;), eles protagonizaram um extremo de grandeza. Passados 20 anos, a queda do muro é história, mas é também história viva, no cotidiano de uma cidade que honra também a capacidade humana de regeneração. É pela Berlim de hoje que o Correio inicia a cobertura do episódio que abriu caminhos ; para os que sobreviveram à opressão e para a marcha rumo a um mundo que se entrelaça sobre as fronteiras.
Berlim ; Passados 20 anos da queda do Muro de Berlim, os alemães não destroem: desmontam. E reconstroem o que deve ser lembrado ; mesmo que seja para nunca mais se repetir. ;Berlim é um museu vivo, nós não sabemos se vivemos numa cidade histórica;, declara Manfred Kühne, diretor do Departamento de Desenvolvimento Urbano da capital alemã. ;Não sabemos ao certo o que é história. Para nós, é algo antes de 1989, 1945, 1914. Numa cidade obcecada pelas coisas contemporâneas e pelos traumas do século 20, ninguém pode ter certeza se temos mais orientação para o passado ou para o futuro;, completa.
Manfred aposta que, no momento, os berlinenses estão mais voltados às ideias contemporâneas. A cidade não é mais a potência econômica da Europa e da Alemanha, mas continua realizando experimentos. ;Os governos local e nacional, e também o europeu, nos dão os instrumentos legais e econômicos para fazê-lo;, diz o arquiteto, que trabalha para o departamento responsável pelo desenvolvimento de áreas centrais de Berlim que pertencem ao governo federal.
O turista mais atento pode ficar surpreso com o número de edifícios históricos reerguidos na capital. ;Em Berlim, tudo é fake (falso);, resume, com senso de humor, a jornalista e turista Helena Haydée. O castelo de Charlottenburg foi afetado pela guerra em 1943 e reconstruído entre 1957 e 1970. A igreja protestante do kaiser Guilherme (Wilhelm) foi erguida em 1890 e em grande parte destruída por um bombardeio da Segunda Guerra, em 1943. Foi reconstruída entre 1959 e 1963 e ganhou uma torre moderna, popularmente conhecida como ;batom e pó de arroz;, pelo contraste de formatos.
O último projeto a causar polêmica entre os alemães é a reconstrução do Palácio Real de Berlim. Erguido em 1871 e bombardeado pelos aliados, o castelo foi completamente derrubado em 1950 pelo governo da hoje extinta República Democrática Alemã (RDA, comunista), que só aproveitou seu portal para o Palácio da República. ;Em fevereiro de 2006, começou o trabalho ecologicamente correto de desmantelar o edifício;, anunciou o departamento de urbanismo da cidade. A limpeza do terreno, finalizada no primeiro semestre de 2009, deu lugar a um grande parque verde no centro, conhecido como Ilha dos Museus.
Depois de muito debate, a área de lazer durará pouco: o governo planeja começar a construção do Palácio Real de Berlim-Fórum já no próximo ano. ;Somos uma sociedade que consegue achar muito consenso, mas também temos discussões muito fortes e até agressivas. Temos uma cultura de discussão: não encontramos na cidade nenhum projeto que não tenha passado por ;discussões até morrer;;, explica Manfred.
Outras barreiras
Depois que o muro caiu, não foi fácil unificar a cidade. ;As pessoas no leste queriam ter todas as vantagens do sistema ocidental, mas não queriam abrir mão das vantagens de seu sistema, como aluguel barato, emprego e seguridade social;, diz o arquiteto. ;Na Alemanha Oriental, os jovens se casavam o mais cedo possível, porque era a única maneira de conseguir um apartamento com mais de um quarto. Depois, tinham filhos com incentivo do Estado.;
Como exemplo curioso, Manfred lembra que levou bastante tempo para que os alemães-orientais se acostumassem à ideia de que podiam morar em imóveis maiores: ;Alguns colegas procuravam apartamentos pequenos, com medo que o aluguel aumentasse muito;. O arquiteto cita a história de uma colega, professora da Universidade Humboldt, que vive desde 1966 em um pequeno apartamento de 30m; e tem se manifestado contra vários projetos de reformas na cidade. ;Eu sou uma representante da elite da RDA e não vou tolerar que jovens ocidentais venham aqui e mudem tudo;, disse ela ao urbanista.
Assista ao vídeo sobre a história do Muro de Berlim