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Entrevista - Paulo Sérgio Pinheiro: Mundo ignora Mianmar

Ex-relator especial da ONU para direitos humanos no país classifica sentença de Nobel da Paz como "farsa jurídica"

Entre 2000 e 2008, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, de 65 anos, atuou como relator especial da Organização das Nações Unidas para a situação dos direitos humanos em Mianmar. O brasileiro testemunhou os horrores de um regime militar que massacrou qualquer tentativa de liberdade de expressão e impediu os 48 milhões de habitantes (89% de budistas) de usufruirem de seus direitos econômicos e sociais. Na capital, Yangun, ele visitou prisões onde 6 mil pessoas se amontoavam; em grande parte, críticos da ditadura. Em entrevista exclusiva ao Correio, por e-mail, Pinheiro criticou a condenação de Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991. A ativista de 64 anos foi sentenciada a mais 18 meses de prisão domiciliar, na terça-feira, e decidiu ontem apelar da sentença. Suu Kyi passou 14 dos últimos 20 anos sem poder sair de casa. Para Pinheiro, a Junta Militar comandada pelo general Than Swe decidiu manter a secretária-geral da Liga Nacional da Democracia, principal partido de oposição, afastada da vida política e inapta a disputar as eleições de 2010.

O diplomata não vê grandes chances de mudança no país do Sul da Ásia. ;Falemos às claras: a situação em Mianmar não é prioridade na agenda internacional da União Europeia ou dos Estados Unidos;, afirmou. Mas ele acredita que o Brasil pode ajudar no processo de transição rumo à democracia. Ex-secretário de Direitos Humanos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, Pinheiro divide seu tempo entre São Paulo, Washington e Providence (Rhode Island, Estados Unidos), onde é professor adjunto de relações internacionais da Brown University. Também atua como Comissionado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Como o senhor analisa a condenação de Aung San Suu Kyi pelo regime birmanês? Foi uma tentativa do regime de Yangun de impor-se perante a comunidade internacional?

A manutenção de Aung Suu Kyo na prisão militar, pela Junta Miliar, não foi nenhuma surpresa. O pretexto do nadador invadir a casa da Prêmio Nobel, por meio de um lago, nos fundos da residência, caiu como uma luva para o projeto da ditadura militar de manter a secretária geral da Liga Nacional da Democracia ; o principal partido de oposição ; fora das eleições do próximo ano. A recente decisão de mantê-la mais 18 meses em prisão domiciliar, por meio de um tribunal de exceção e sem nenhuma garantia do devido direito à lei, foi uma pantomima jurídica, uma farsa jurídica. A Junta Militar mostrou novamente sua resistência à opinião pública internacional. A meu ver, ela não se impõe. Ao contrário, demonstra mais uma vez que o antigo processo de transição para a democracia na realidade nada mais é do que um processo de consolidação de um regime autoritário dominado pelas Forças Armadas. Uma Constituição imposta, um referendo de brincadeira convocado no meio do tufão, com resultados de mais de 97% a favor da ditadura.

De que modo a comunidade internacional deve atuar em relação à pena imposta à ativista?

[SAIBAMAIS]Falemos às claras: a situação em Mianmar não é prioridade na agenda internacional da União Europeia. Nem para os Estados Unidos, às voltas com o Iraque, o Afeganistão, a Coreia do Norte e os territórios palestinos ocupados por Israel. Como não é prioridade, a comunidade internacional reage espasmodicamente. Não há coordenação de políticas, nem consistência, nem consenso. Durante anos, venho repetindo que não se trata de ter apenas uma política, uma via para enfrentar a promoção da democracia em Mianmar. Às vezes, tem-se a impressão de que as democracias ocidentais ; que conseguem desenvolver relações tão cordiais com as mais ferrenhas tiranias em várias regiões do mundo ; não são capazes de aprofundar uma diplomacia discreta para lidarem com o regime de Mianmar. Não dá para se fazer diplomacia de megafone somente quando há crises, depois esquecer e voltar a fazer barulho quando há outra crise.

Como forçar a libertação da Prêmio Nobel da Paz?

Não acredito que nenhum país possa forçar o regime a libertar Suu Kyi. Isso somente pode ser atingido com uma combinação de negociação, diplomacia discreta, reafirmação de posições principistas de direitos humanos (não dá para uma democracia europeia fazer coro com protestos e apoiar a manutenção de suas empresas no país) e descoberta de pontos de cooperação positiva com a Junta em favor da sociedade. Para mim, o único critério que conta é saber se as políticas podem ter algum benefício para as vítimas de violações dos direitos humanos. Para tanto, não importa o interlocutor. Não adianta aumentar sanções se essas não são aplicadas universalmente. Pessoalmente, não ponho muita fé em sanções econômicas, que nos últimos 20 anos somente têm tornado mais difícil a vida da população pobre. Mas não estou preconizando o fim das sanções. Nada deve ser concedido à Junta se os militares não fizerem concessões.

Enquanto relator especial da ONU para Mianmar, que violações aos direitos humanos mais o chocaram durante suas visitas ao país?

O elenco vai desde as violações das mais básicas liberdades civis e políticas, até um desprezo pelos direitos econômicos e sociais da maioria esmagadora da população. O quadro se complica ainda pela manutenção de um confito armado contra algumas etnias na região leste do país, com todos os horrores desse conflito: exploração das populações, crianças soldados, estupros de mulheres, execuções sumárias, tortura, detenções arbitrárias. Chocante foi a pesada repressão aos monges e cidadãos que se rebelaram contra a ditadura, em setembro e outubro de 2007. Numa semana, num só local que visitei havia 6 mil pessoas detidas. Os que se revoltaram foram presos, torturados e julgados sumariamente, recebendo penas pesadíssimas por terem feito o que as democracias no mundo esperavam que eles fizessem: reivindicar os direitos civis e políticos pacificamente. Lamentavelmente, a comunidade internacional não esteve à altura daqueles monges, dos jovens, das donas de casa, dos cidadãos comuns que enfrentaram tanques, baionetas, bombas e enormes riscos de sequestros, torturas e morte.

Qual seria a receita para a transição da democracia em Mianmar?

Não há receita diferente das transições que ocorreram na região, nas Filipinas, na Indonésia. Por exemplo: liberalização, desmilitarização do controle do poder, diálogo, concertação, apoio das Nações Unidas, Constituinte, eleições, controle civil do governo (o que não implica alijar completamente os militares da gestão dos assuntos públicos. A própria Suu Kyo diversas vezes mencionou, antes da revolta de 2007, estar preparada para compartilhar o poder com os militares, evidentemente depois de eleições democráticas. O mundo deve deixar bem claro que as eleições controladas pelos militares, sem participação das oposições ou liberdades mínimas, sem observadores externos independentes, não podem ser reconhecidas pela comunidade internacional.

O que é ser um morador em Yangun, na sua opinião?

É não ter nenhuma liberdade, ser permanentemente vigiado. Não é muito diferente do Brasil sob o ditador general Médici ou qualquer um dos outros ditadores militares. É não ter voz no processo político, não ter acesso à imprensa livre, não poder participar da política ou se organizar para exprimir seu ponto de vista. Deve-se perder a impressão de que a situação em Mianmar é patológica. Trata-se de uma ditadura militar convencional, patética, pois submete uma cultura antiquíssima, refinada e sofisticada, um povo de uma delicadeza e de uma sensibilidade extraordinárias. Sem dizer de um país com uma riqueza histórica e uma natureza extraordinária. Certamente, Mianmar é uma das nações mais lindas e impressionantes.

O Brasil pode atuar de que maneira em prol da democracia em Mianmar?

Pode, juntando-se às democracias que pretendam se coordenar para um esforço consistente, a fim de ajudar no processo de transição que nós fizemos no Brasil. Dadas as relações positivas que o Brasil tem hoje com a China, o Brasil pode contribuir para que a China ; como potência global e regional ; venha a desempenhar um papel positivo nessa transição. Durante meus oito anos de trabalho, em vários momentos pude contar com um apoio muito consistente da China. Não vejo nenhuma possibilidade real de transição sem uma cooperação efetiva da União Europeia e dos Estados Unidos com a China. Temos uma larga janela de oportunidade, com as inovações que o presidente (Barack) Obama quer trazer para uma nova política em relação a Mianmar. Mas além desses esforços bilaterais, o Brasil é considerado um honest broker, um interlocutor válido, nos órgãos das Nações Unidas, como no Conselho de Direitos Humanos e na Assembléia Geral. O Brasil pode e deve ter um papel importante, apoiando os bons ofícios do secretário-geral da ONU e as iniciativas do Conselho de Direitos Humanos em relação a Mianmar ; como ocorreu, graças à paciência de costura do embaixador Sérgio Florencio e de seus colegas da missão brasileira junto à ONU, durante a 5; Sessão Especial desse Conselho, em dezembro de 2007. Naquela ocasião, a resolução que alcançou o pleno consenso de todos os 53 países-membros do Conselho foi resultado de uma intensa e construtiva atividade diplomática do Brasil. Se o Brasil deseja se tornar uma potência, com responsabilidades globais, certamente a situação de Mianmar merece estar em nossa agenda internacional.