A dois dias de expirar o prazo para que os países apresentem oficialmente seus candidatos à direação geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), uma intensa movimentação nos bastidores diplomáticos indica a consolidação do mais polêmico entre os indicados até aqui: o ministro da Cultura do Egito, Faruk Hosni. Apontado por intelectuais e personalidades da cultura de vários países como antissemita, por declarações que sugeriam a determinação de queimar livros em hebraico, Hosni pode se tornar o beneficiário de uma delicada operação em que, segundo fontes diplomáticas ouvidas pelo Correio, envolveria Egito, Israel e os Estados Unidos ; parte dos esforços do governo Barack Obama para impulsionar o processo de paz no Oriente Médio e reaproximar os EUA do mundo árabe e islâmico.
Foi com a justificativa de uma opção geopolítica semelhante que o governo Lula decidiu, no fim de abril, abraçar a candidatura egípcia e abrir mão de lançar um dos dois brasileiros cotados para disputar a Unesco: o atual vice-diretor-geral, Marcio Barbosa, considerado nos corredores da organização como um dos pretendentes mais fortes, e o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que tinha o respaldo unânime de seus colegas de casa. ;A situação está complicada (para a candidatura de Barbosa);, admitiu um alto funcionário da Unesco que falou à reportagem por telefone, de Paris. Como o próprio vice-diretor, essa fonte considera ;muito remota; a possibilidade, tecnicamente viável, de que o brasileiro seja apresentado por outro país: ;A pergunta que os outros se fazem é: ;Se o próprio país dele não confia, por que outro iria confiar?;
Hosni tem o endosso declarado da Liga Árabe e da União Africana, cujos representantes somam 20 dos 58 votos no Conselho Executivo da Unesco, que começará em setembro o processo eleitoral. Mesmo assim, sente o peso da rejeição a seu nome e publicou anteontem no jornal francês Le Monde o artigo Por que sou candidato à direção da Unesco? (leia trechos ao lado). Nesta semana, ele passou a ser considerado ligeiramente favorito, entre outras coisas graças a um acordo pelo qual Israel teria aceitado suspender a campanha de opinião pública contra a candidatura, em nome das boas relações com um país árabe que exerce influência moderadora na disputa com os palestinos. Segundo o Correio apurou entre diplomatas brasileiros, a guinada israelense teria resultado de gestões do governo Obama: o presidente visitará na semana que vem o Cairo e fará um discurso dirigido ao mundo islâmico.
Dispersão
Com uma candidatura do Brasil praticamente descartada, vários dos países que nutriam simpatia por Marcio Barbosa se dispersaram entre outras opções ou decidiram lançar candidatos. O resultado, segundo esse funcionário da Unesco, é que a expectativa para domingo é que sejam registradas no mínimo oito candidaturas, possivelmente 10. ;Hosni é o mais consolidado é o que está em campanha há mais tempo, mas é o que apresenta também maior rejeição;, pondera a fonte. A relativa pulverização dos votos, no entanto, pode levar o Conselho Executivo a prorrogar o prazo de inscrição, como ocorreu com frequência na história da organização. ;Pode acontecer muita coisa até setembro.;
É com essa expectativa que prosseguem em Brasília os esforços, em ambas as casas do Congresso, para que o governo reveja a posição. Na semana passada, as comissões de Relações Exteriores e de Cultura do Senado dirigiram moções ao Planalto e ao Itamaraty pedindo que reconsiderem o apoio ao egípcio e endossem Marcio Barbosa. Ontem, um manisfesto de apoio ao vice-diretor da Unesco, assinado por 153 deputados, foi entregue à mesa da Câmara, onde muitos congressistas da oposição não digerem a explicação do chanceler Celso Amorim, segundo o qual o país está investindo em uma melhor relação com o mundo árabe.
;É uma insensatez;, afimou Nárcio Rodrigues (PSDB-MG), acrescentando que ;não dá para entender; o que se passa na cabeça do governo. Para ele, a gestão Lula precisa ficar atenta para a importância do papel da Unesco hoje. ;Ela está passando por um redimensionamento. Com a questão ambiental aflorando a cada dia, um país como o Brasil, com os recursos hídricos que tem;, não pode menosprezar a direção da organização ; ainda mais considerando a derrota da ministra do STF Ellen Gracie na disputa por uma cadeira no tribunal de apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Trechos - Faruk Hosni
Sou há muitos anos ministro de Estado de um país que fez a paz com Israel e se esforça incansavelmente para fazer prevalecer o diálogo sobre a violência. Em nome desses princípios, quero voltar às palavras que pronunciei em maio de 2008, e que foram entendidas como um chamado a queimar os livros escritos em hebraico.
Quero dizer solenemente que me arrependo das palavras que pronunciei. Essas palavras são o oposto daquilo no que creio e daquilo que sou. Elas permitiram aos detratores associar minha pessoa e meu nome àquilo que me é mais odioso: o racismo.
Olhem para toda a minha vida, toda a minha pessoa, todo o meu engajamento em favor do diálogo entre culturas e religiões e do reforço da compreensão mútua entre os homens, sem distinções.
A primeira preocupação do futuro diretor-geral deve ser restaurar a ambição (de) assegurar a afirmação da diversidade cultural, do diálogo entre culturas e da tolerância recíproca. (%u2026) No momento em que é preciso nos mobilizarmos contra as forças do retrocesso, a escolha de um árabe, um muçulmano, um egípcio, seria, à parte a minha pessoa, uma formidável mensagem de esperança.
Entrevista - Marcio Barbosa
As eleições para a direção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e Cultura (Unesco) terão início em setembro, mas para o brasileiro Marcio Barbosa, que há oito anos é o vice-diretor, é urgente uma definição do governo brasileiro. Com um currículo exemplar ; o engenheiro carioca esteve à frente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) por oito anos e ingressou na Unesco por meio de um disputado concurso ; , ele ainda tenta entender os motivos que levaram o Itamaraty a declarar apoio ao candidato egípcio, Faruk Hosni, em vez de bancar a candidatura de um brasileiro. E o tempo urge: o prazo para que o governo retroceda termina no domingo.
O que leva o sr. a acreditar que o Brasil teria chances de conquistar a chefia da Unesco?
No cargo de vice-diretor há oito anos, tive a oportunidade de assumir a liderança em diversas ocasiões. Ao que me parece, fiz um bom trabalho. A atual gestão, liderada pelo japonês Koichiro Matsuura, tem credibilidade, é bem aceita. Para ser eleito, o candidato precisa obter 30 votos do total de 58 países que participam do pleito. Até agora, eu teria o apoio de cerca de 20 nações. A eleição na Unesco, normalmente, só é definida em segundo, terceiro turno. Teria boas chances de conquistar outros aliados ao longo da disputa, já que tenho um baixo nível de rejeição, diferentemente do candidato egípcio.
Qual a sua impressão sobre a candidatura de Hosni?
Não sei. Quem está aqui dentro enxerga o cenário por outro ângulo. Não me parecem verdadeiras as chances de vitória de Hosni. Ele já vem fazendo campanha há cerca de dois anos. Não há união no mundo árabe em relação à sua candidatura.
Quais seriam os motivos, na sua opinião, que levaram o governo brasileiro a apoiar o egípcio?
Não sei. É o que estou tentando entender. A Unesco é uma organização de peso. Dirigir esse órgão é como, digamos, ser um chefe de Estado ou presidente de um país. O maior escritório da Unesco no mundo é localizado no Brasil. Minha frustração é perceber que houve interesse do governo em dar atenção a outras instituições, como a Organização Mundial do Comércio (OMC). Não contava que, neste momento, fossem colocar a Unesco em outro plano. Não acham importante%u2026
De acordo com as regras do pleito, o sr. poderia ser inscrito por outras nações. Considera a possibilidade?
Não quero ser inscrito por outro país. Se o governo brasileiro é contra a minha inscrição, mesmo tendo seguido uma carreira científica de sucesso, por que seguiria em frente com essa candidatura? Por que meu próprio país não me apoia? Não quero considerar isso. Hoje (quarta-feira), a quatro dias do fim do prazo, não me sinto inclinado a aceitar.
A posição do governo em relação à sua candidatura pode ser decorrente de uma briga política interna?
Sou e sempre fui apartidário. Me parece que a imprensa brasileira, de alguma forma, tenta vincular a minha vinda para a Unesco com a gestão Fernando Henrique Cardoso. Não tem ligação. Olha, trabalho em órgãos públicos desde o governo Sarney. Saí do país porque passei em concurso, o que (espero) consegui por meus próprios méritos. Não sou filiado a nenhum partido, nunca fui. Estão distorcendo as coisas. Aliás, o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), ex-presidente da Câmara, veio à Unesco no fim do ano, um dos membros da delegação brasileira. Conversamos bastante, ele se mostrou satisfeito com o trabalho que estamos realizando. A Unesco é algo que está muito acima de disputas políticas internas.