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Entrevista: Sylvia Steiner - Justiça além das fronteiras

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Uma brasileira de 55 anos tem nas mãos o destino do presidente do Sudão, Omar Al-Bashir. Nesta segunda-feira, Sylvia Steiner e mais seis juízes começaram a analisar a expedição de um mandado de prisão contra Al-Bashir, acusado de genocídio no conflito de Darfur. Natural de São Paulo, Sylvia é considerada uma das juízas que mais trabalham no Tribunal Penal Internacional (TPI), criado em 1998 pelo Estatuto de Roma, articulado pelas Nações Unidas. Há cinco anos, ela deixou o cargo de desembargadora federal, os filhos e os netos e mudou-se sozinha para Haia, na Holanda, para assumir o novo desafio.

Em entrevista ao Correio, ela conta com exclusividade como será o processo sobre o Sudão e comenta as conquistas alcançadas na República Democrática do Congo (RDC). "Os países acordaram para a necessidade de julgar os acusados de crimes contra a humanidade", comemora. Dentro de exatamente um mês, Sylvia estará em São Paulo para contar suas experiências em um seminário do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Como a senhora chegou ao tribunal?

Eu participei das reuniões preparatórias, como assessora da delegação brasileira. Depois, quando abriram as inscrições para que os países apresentassem seus candidatos, meu nome foi indicado. Na época, eu não tinha nenhuma intenção de me tornar juíza do tribunal. Então, em fevereiro de 2003, fui eleita. Acho que tudo foi o resultado do meu trabalho como procuradora da República, depois desembargadora federal e ao mesmo tempo militante da comissão de direitos humanos.

Você está no TPI desde o início. Como foi a experiência?

Somos 18 juizes, de várias regiões do mundo e com backgrounds totalmente diferentes. O início foi bastante difícil, porque é um tribunal permanente. As regras são diferentes dos outros tribunais penais internacionais. Nós tivemos que começar tudo praticamente do zero, tínhamos apenas o estatuto e as regras de procedimento.

Como é a sua rotina?

São nove a dez horas de trabalho por dia, todos os dias. Fico aqui o tempo inteiro. A cada três ou quatro meses, tiro uma semana para ir ao Brasil ver a família. Mas é uma rotina muito intensa. Principalmente porque a minha câmara está com dois casos grandes, a RDC e o Sudão.

Como funciona o tribunal?

O promotor inicia uma investigação e comunica à presidência do tribunal. Depois, o caso é enviado para uma câmara preliminar. A minha sala cuida de todos os casos que surgirem na investigação da RDC e do Sudão. Quando o promotor vem com um pedido de mandado de prisão, consideramos que começa um caso. A câmara vai estudar o pedido e ver se há indícios suficientes de que foi praticado um crime. Depois, expedimos o mandado.

Como é esse o caso do presidente do Sudão, Omar Al-Bashir?

Nós ainda vamos começar a análise. Já tivemos dois outros mandados de prisão em relação à situação de Darfur. O governo teria que entregá-los ao tribunal para julgamento. Mas, como o Sudão não aderiu ao Estatuto de Roma, ele está dizendo que não tem obrigação de entregar ninguém.

Caso o mandado seja aprovado , é preciso esperar que ele saia do governo?

A primeira coisa que a nossa câmara vai ter que fazer é analisar o pedido do promotor. Esse é um processo demorado. Todos os crimes que estão em julgamento no tribunal são crimes graves. A câmara ainda vai demorar pelo menos dois meses para tomar uma decisão. O que vai acontecer depois depende de o Sudão cooperar ou não.

Se o presidente for para outro país, ele pode ser preso?

Pode, sim. Recentemente, coisa de duas a três semanas atrás, um acusado, Jean-Pierre Bemba Gombo, da República Centro-Africana, foi preso na Bélgica . E o país o entregou para o tribunal porque havia um mandado de prisão contra ele. Qualquer Estado que faz parte do Estatuto assume a obrigação de entregar pessoas contra as quais existam mandados de prisão.

A senhora acha que o tribunal vai conseguir levar justiça para esses países?

A importância do tribunal é estabelecer que a comunidade internacional tem direito, independentemente da nacionalidade da pessoa, de punir aqueles que cometem os crimes contra a paz. Essa é a função do TPI. Os países acordaram para a necessidade de processar e julgar os acusados de cometerem crimes contra a humanidade.

Qual foi o primeiro caso que a senhora trabalhou?

Foi o primeiro do tribunal, e eu fui escolhida pelos meus colegas para ser relatora. Então, foi um trabalho muito exaustivo, mas valeu a pena poder estabelecer as primeiras regras do processo na fase de pré-julgamento. Foi o caso de Thomas Lubanga, da RDC, que agora está na fase de julgamento.

Na análise, é feito um estudo de cada país? Você já é uma especialista em RDC e Sudão?

Eu não diria especialista. Mas, principalmente em relação à RDC, foi necessário fazer um estudo histórico do conflito armado que perdura há muitos anos. Tivemos acesso a uma série de relatórios da ONU sobre a situação. Então, a gente tem que recolher esse material para entender o fenômeno. Sem esse background, fica muito difícil entender quais crimes foram cometidos, e por quê. Em relação ao Sudão, começamos a estudar no ano passado, quando houve o primeiro pedido de mandados de prisão. Mas, talvez pelo fato de não ter começado, nós não aprofundamos ainda essa análise. Eu, particularmente, leio muito. Já comprei livros sobre a história do conflito em Darfur.

Com quais áreas o tribunal trabalha?

Por enquanto, os casos que nós temos vieram todos da África: Uganda, RDC, República Centro-Africana e, agora, o Sudão. Os três primeiros países pediram que o tribunal assumisse o processo de julgamento dos acusados. No caso do Sudão, foi o Conselho de Segurança da ONU que remeteu para o tribunal. Às vezes aparece uma crítica ou outra, dizendo que a gente tem preferência pela África. Mas, na verdade, até agora não houve nenhuma investigação iniciada pelo promotor por vontade própria.