Especialista em História da África pela Universidade de Cambrige e pós-doutor pela Universidade de Hamburgo, o alemão Wolfgang Döpcke -- professor do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) -- falou ao Correio sobre os distúrbios xenofóbicos na África do Sul. Desde o último dia 11, pelo menos 24 estrangeiros foram assassinados na periferia de Johannesburgo, muitos deles queimados vivos.
O governo sul-africano ameaçou colocar o Exército nas ruas para conter os protestos violentos em Johannesburgo. Essa seria a melhor saída? Como o senhor analisa a forma com que o presidente Thabo Mbeki está lidando com o caso?
Eu não chamaria essa onda de violência de "protestos". São manifestações de extrema violência, ameaças à vida, pilhagens de bens de africanos de origem não sul-africana e, crescentemente, de diferentes etnias sul-africanas. Reestabelecer a ordem pública e a segurança imediata dos perseguidos certamente deve ter absoluta prioridade neste momento. No entanto, creio que a força policial sul-africana seja suficientemente equipada e treinada para enfrentar essa tarefa. Não existem dúvidas de que o governo sul-africano, principalmente o presidente Thabo Mbeki, têm reagido de modo bastante inadequado ao tamanho da crise. Os representantes do governo se dizem envergonhados, surpresos e preocupados com a imagem da África do Sul no exterior. Eles atribuem a violência a "terceiras forças" ocultas ou simplesmente à criminalidade. A xenofobia existe na sociedade sul-africana há tempos e é uma forma de projetar as decepções com as politicas sociais dos governos pós-apartheid. O fenômeno tinha sido ignorado no passado, porque manchava a imagem da "nação arco-íris", equalitária e não-racial, imagem que fundamentava a identidade da "nova" África do Sul e, acima de tudo, sua inserção internacional no mundo globalizado do século 21. A reação a curto prazo, da mesma maneira, reflete essa tendência de ignorar as verdadeiras causas e de diminuir o tamanho da crise e o significado profundo e sistemático da violência.
Sob seu ponto de vista, quais as reais motivações dessa revolta? Existe o risco de a onda xenofóbica se espalhar pelo país?
As causas profundas da violência xenofobica e étnica, de modo muito geral, se encontram no caminho da sociedade sul-africana pós-apartheid, nas suas contradições e, principalmente, na sua incapacidade de enfrentar os problemas básicos do país -- como probreza, desemprego, falta de moradia e serviços nos subúrbios das grande cidades. A África do Sul, de certa maneira, se transformou, depois do fim do regime de apartheid, em 1994, de uma sociedade de exclusão racial em uma sociedade de exclusão social. Amplas políticas de afirmação racial conseguiram criar e integrar, em tempo recorde, uma nova classe média africana, que se tornou a principal beneficiária social do fim do apartheid. Ela também representa a classe social estratégica com a qual o Congresso Nacional Africano (principal partido sul-africano) constrói e pretende manter seu domínio político. As novas politicas econômicas neoliberais -- com abertura comercial radical, desregularização e estímulo a indústrias secundárias de exportação -- também contribuíram com a manutenção e até com o agravamento do imenso abismo social herdado da época do governo branco. Em 1994, numa onda de otimismo e esperança, e como exemplo para o mundo inteiro, a África do Sul partiu para se reinventar. E se reinventou mesmo, só que poucos se beneficiaram. O desespero procura seus alvos visíveis e fácéis, projetando sua raiva sobre minorias indefesas. A reação xenofóbica e étnica ao abismo social, de forma violenta ou não, existia há tempo. Mas foi ignorada, porque não correspondia à imagem do país que a nova elite sul-africana tinha promovido, ou, também, porque os imigrantes "ilegais", principalmente os 2,5 milhões do Zimbábue, eram bem-vindos como mão-de-obra barata na agricultura comercial.