Entrevista//Antanas Mockus
Uma das estrelas da Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, instalada ontem (30/04) no Rio, o ex-prefeito de Bogotá Antanas Mockus fez um alerta ao Brasil, cujo temor é justamente se tornar amanhã uma Colômbia. Depois do domínio econômico, diz ele, o narcotráfico tentará conseguir a todo custo a legitimidade política e social. "Uma vez feita a fortuna, por vias ilegítimas, (os traficantes) querem ser aceitos como empresários legais", afirma em entrevista ao Correio esse filho de imigrantes lituanos que governou a capital colombiana em dois períodos (1995-1997 e 2001-2003). Consultor para o Banco Interamericano de Desenvolvimento, implementa projetos no Brasil em parceria com as administrações de São Paulo e Belo Horizonte. Confira agora a integra da entrevista.
Como o narcotráfico compromete a democracia na América Latina?
Há muitas atividades criminosas ao redor do tráfico de drogas que têm um impacto social extremamente alto. O nome da nossa comissão, "drogas e democracia", é ao mesmo tempo curioso e forte, e é só olhar a história colombiana para dolorosamente justificar esse título. Na Colômbia, houve uma incursão de narcotraficantes na vida política em busca de cargos e mandatos. Uma atividade tão clandestina como o narcotráfico não quer só poder econômico, quer poder político, quer reconhecimento social. Uma vez feita a fortuna, por vias ilegítimas, querem ser aceitos como empresários legais.
Essa é uma característica dos narcotraficantes colombianos ou do tráfico em todo o mundo?
É uma tendência também em outros países, como México e Brasil. Há estudos que detalham como o narcotráfico se associou ao negócio da vigilância privada ilegal. São polícias paralelas de um poder paralelo. A sociedade, desesperada por segurança, se acostumou com essa mediação informal de forças irregulares para fazer cumprir seus acordos ; não apenas um Estado paralelo, mas vários. Onde facções disputam territórios, onde o crime é corrente, a Justiça não atua.
Qual é a situação de Colômbia hoje?
Na Colômbia, segue vencendo o narcotráfico, apesar de o presidente (Álvaro) Uribe ter extraditado muitos narcotraficantes. Já não há grupos tão grandes como na época de (Pablo) Escobar e dos irmãos Rodríguez, líderes dos cartéis de Medellín e de Cali, respectivamente. São "cartelitos", muito numerosos, parte deles controlado pelas Farc, parte por paramilitares. E uma fatia importante das finanças das Farc vem do narcotráfico.
E o que mais financia as Farc?
Outra fonte ilícita e dramaticamente custosa são sequestros e extorsões, que projetam as Farc em todo o mundo.
Não há mais ideologia, só negócio?
Mentiria se dissesse que não há nenhuma ideologia, mas ela é muito flexível. As Farc funcionam hoje quase num modelo neoliberal pavoroso que alcança suas metas a qualquer preço. Mas alguns dos membros das Farc carregam uma ideologia marxista vinda dos anos 60, autoritária e cínica, como quem diz ;o que vocês chamam de sequestro, eu chamo retenção;. Chegam a falar de pescas milagrosas referindo-se a sequestros. O projeto político pode ser muito arcaico, mas está aí.
O que pretende exatamente as Farc com sua política de sequestros?
As Farc utilizam o seqüestro de três maneiras. Uma, para conseguir dinheiro. Um negócio cínico que afeta centenas de pessoas anualmente. Seqüestro, portanto, é um negócio lucrativo na Colômbia. Mas também há um ramal político, com o sequestro de políticos. E o caso mais internacional é (a franco-colombiana) Ingrid (Betancourt, mantida refém pelas Farc e cujo estado de saúde é crítico), por cuja liberdade eles querem obter concessões jurídicas importantes. Não apenas a liberdade de presos, mas outras reformas jurídicas. É o sequestro extorsivo. E a terceira finalidade do seqüestro é a intimidação. É a repetição de parte dos mecanismos da guerra fria. Naquela época era mais poderoso um país que pudesse anunciar a disponibilidade de bombas atômicas e ameaçar com isso. É a política do terror, do medo. E não só as Farc seqüestram, mas também os para-militares, que preferem aterrorizar camponeses, patrocinar massacres, desaparecimentos seletivos e mortes extrajudiciais de dirigentes sindicais. O que impressiona é que nenhum deles se incomoda em ter a reputação de cruéis e arbitrários. Eles cultivam isso.
Por que interessa manter Ingrid Betancourt presa, mesmo ela podendo morrer no cativeiro?
A crueldade é que as Farc não têm melhor carta de negociação ante o mundo. Eles são vítimas de seu próprio êxito. Estão seqüestrados pelo êxito do sequestro. Os únicos que relacionam as Farc com o mundo, os únicos que os fazem existir internacionalmente, são os seqüestrados. São extorsões muito bem sucedidas. Ingrid lhes dá projeção. Quando um seqüestro dura seis anos, dez anos, é uma tortura não só para o seqüestrado e para à família dele, mas também para todo o país. Na Colômbia, as emissoras de rádio enviam mensagens de familiares todos os dias: ;Ingrid, não sei se pode me ouvir, mas se ouve, por favor, tenha força, resista;.
Acredita que ela possa ser solta?
Com a melhor intenção do mundo, (o presidente francês Nicolas) Sarkozi e (o presidente venezuelano Hugo) Chávez valorizaram o seqüestro. Sem querer. Com boas intenções, reconheceram um poder ao qual agora as Farc não vão renunciar facilmente.
A interferência de Chávez não foi excessiva, inclusive desautorizando o presidente colombiano, Álvaro Uribe?
Em muitos conflitos, há um tema muito importante que é: qual é o limite? O que é aceitável e o que é inaceitável? Os protocolos de Genebra detalham o que é aceitável num conflito. Envenenar um aqueduto não é permitido. Guerra química não é permitida, embora muitos a usem. O que ocorre é que é muito difícil definir o método. Estou seguro da boa intenção dessas pessoas de liberar os seqüestrados.
O interesse de Chávez não seria meramente político?
Creio que Chávez não só está atrás da liberação dos seqüestrados, como deseja a paz na Colômbia. Mas é preciso compreender o que poderia implicar essa paz. Chávez, se pudesse, faria concessões às Farc que a sociedade colombiana não aceitaria. Até porque o povo colombiano não é pró-socialismo, em parte pela existência das Farc. O paradoxo é que as Farc impediram o crescimento de uma esquerda legal forte na Colômbia. O trágico é que o uso de métodos indevidos hoje é copiado pelos dois lados. (O escritor argentino Jorge Luiz) Borges dizia: ;Quando escolher um inimigo, escolha-o com cuidado porque quase sempre terminará parecido com ele;. Parte do que está em jogo na guerra colombiana, é pura narrativa. Quem vai escrever a história? Com que justiça? E muitas mãos estão sujas.
Há uma questão cultural aí?
Essa é uma característica colombiana, provavelmente latino-americana, de buscar resultados a qualquer preço. Países desenvolvidos repetem o mesmo horror. É melhor não ganhar se ganhar implica utilizar métodos indevidos que geram ressentimento, ódio e cópia desses métodos. O que se passa na Colômbia é uma desvalorização da vida. É difícil viver numa sociedade que manda matar literalmente, materialmente, fisicamente, um líder político ou um líder de oposição. É fundamental que as coisas se mantenham dentro de uma institucionalidade. Muitas pessoas acham que deveria haver uma repressão mais forte à corrupção. Mas ninguém pode ser ingênuo a ponto de achar que se elimina a corrupção eliminando fisicamente os corruptos. Na Colômbia, essa tentação de resolver os conflitos eliminando o outro tem sido adotada por distintos grupos. E nosso esforço é para impedir que a força pública, a polícia, caia nessa lógica de que o importante é eliminar o problema, a qualquer custo.
Que lições o Brasil pode tirar da experiência colombiana?
Na Colômbia, vimos que a dinâmica do narcotráfico transbordou em uma atividade de grupos criminosos interessados em fazer dinheiro. Em todo o mundo existe crime organizado, cujo objetivo é como o de uma empresa privada: ganhar dinheiro. Mas, enquanto nos países desenvolvidos uma morte ; qualquer morte ; é vista como torpeza, por aqui matar é método. Dos dois lados. É uma desvalorização da vida humana a níveis impensáveis. Portanto, a lição que se pode tirar da experiência colombiana é que o narcotráfico por aqui está combinado com altíssima violência, especialmente entre jovens. Um jovem que deseja ser narcotraficante aos 20 anos, não passa dos 30, 35. Ele estará, literalmente, trocando vida por dinheiro. Não é próprio do brasileiro, por exemplo, matar facilmente outro ser humano que atravessa seu caminho. Mas, se o narcotráfico continuar crescendo com sua luta pré-moderna por mercado, o país vai ter um futuro terrível, com perdas de muitas vidas.
Como o senhor vê as propostas de legalização das drogas?
Qualquer posição pró-legalização pode gerar a impressão inicial de cinismo. É preciso admitir essa como uma discussão mundial legítima. Minha posição pessoal é de que uma política pública só pode ser mexida se for para melhor. A política pública para combater as drogas está longe de ser perfeita, mas não podemos dar um salto no vazio. A humanidade não pode fazer um experimento. Muitos acreditam que os efeitos da legalização poderiam ser devastadores. Mas um critério fundamental para qualquer política antidrogas deveria ser a redução drástica e rápida da violência, especialmente dos homicídios. Não podemos continuar morrendo dessa maneira.