Talvez o presidente eleito do Paraguai, Fernando Lugo, tenha mais facilidade para arrancar alguns milhões de dólares a mais do Brasil, como pagamento pela eletricidade de Itaipu, do que para levar adiante sua agenda doméstica de mudanças. O ex-bispo ligado à Teologia da Libertação ; a corrente da Igreja Católica sul-americana que flertou com o marxismo nos anos 1960 e 1970 ; assume em 15 de agosto com o compromisso de virar a página de seis décadas de hegemonia do Partido Colorado, do ex-ditador Alfredo Stroessner. Mas, como outros esquerdistas do continente que chegaram ao governo pelas urnas, Lugo terá de fazer concessões ao centro para compor no Congresso uma maioria estável.
;Creio que ele será um presidente moderno, progressista, mas terá de negociar o tempo todo com o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA, de centro), que será o núcleo da base parlamentar;, é o diagnóstico do analista político paraguaio Alfredo Boccia. ;Será a ;perna conservadora; do governo Lugo.; Milda Rivarola, outra comentarista, espera uma transição à moda da redemocratização no Brasil ; lenta, gradual e segura. ;O povo votou por uma mudança cuidadosa: um presidente com perfil de esquerda e um partido de centro (o PLRA) controlando o Parlamento.; A Aliança Popular para a Mudança (APC), coalizão ecumênica que elegeu Lugo, terá uma bancada modesta na Câmara dos Deputados e presença reduzida no Senado, onde os colorados devem continuar como o maior partido.
Carlos Mateo Balmelli, senador pelo PLRA e um dos nomes mais cotados para ser o futuro ministro das Relações Exteriores, reconhece as dificuldades e aconselha o presidente a não enveredar pelo caminho do tradicional ;toma-lá-dá-cá; com os demais partidos. ;O governo não pode cair na lógica do loteamento;, disse em entrevista ao jornal paraguaio ABC Color. ;Temos é de fortalecer a autoridade do presidente como primeiro requisito para a governabilidade.; Mais até do que costurar uma base parlamentar, o novo chefe de Estado precisará lidar, no dia-a-dia da administração, com uma máquina pública metodicamente povoada pelo Partido Colorado, com base no clientelismo.
Itaipu à parte, Fernando Lugo terá no Brasil também o principal contraponto àquela que foi sua principal bandeira política, antes mesmo da candidatura à Presidência: o projeto de realizar uma profunda reforma agrária. As resistências se concentram nos brasiguaios, os fazendeiros (principalmente de soja) que dominam o campo. Segundo estimativas recentes, eles são cerca de 500 mil e, ao longo das décadas, cultivaram relações ambíguas com o país de adoção: conquistaram prosperidade que ficou concentrada, como a propriedade fundiária; e sempre mantiveram um ;pé; no Brasil, tendência manifestada inclusive na preservação do português como idioma ;de casa;.
;O Paraguai tem um modelo agrícola baseado no latifúndio dominado pelos brasiguaios plantadores de soja, que já anunciaram resistência à reforma agrária;, escreveu para a agência de notícias Adital, ligada a setores católicos de esquerda, Selvino Heck, assessor especial do presidente Lula e coordenador do Movimento Fé e Política, uma cria da Teologia da Libertação. Heck lembra ainda que o Paraguai tem o terceiro menor PIB per capita do continente (menos de US$ 2 mil), à frente apenas da Bolívia e da Guiana.
O embaixador de Cuba, Alberto Curbelo, e a embaixadora da Venezuela, Nora Uribe, estiveram entre as primeiras autoridades a se reunir com Fernando Lugo, depois de confirmada sua vitória na eleição de domingo passado. Mas um consenso entre os analistas parece ser o de que, embora Lugo tenha a imagem associada à do presidente venezuelano, Hugo Chávez, o Paraguai está longe de se tornar mais um vértice do ;eixo; chavista, a exemplo da Bolívia de Evo Morales. ;A esquerda paraguaia não tem uma história, uma tradição: nosso Parlamento nunca teve esquerda;, pondera Alfredo Boccia.