Habilidades socioemocionais: moda passageira ou transformação duradoura?
“O que percebo ainda hoje é um discurso que exalta as competências socioemocionais como prioritárias, mas que ainda seleciona, recompensa e exclui candidatos com base nos mesmos critérios de sempre — diplomas, notas, experiência prévia e posições ocupadas”
Na minha primeira coluna neste espaço, discorri sobre as tendências do trabalho neste século. Propus algumas reflexões sobre como as mudanças anunciadas ou em curso impactam de maneira diferente os diversos perfis de profissionais que compõem o mercado de trabalho brasileiro. Darei continuidade à discussão iniciada acrescentando mais um tema que vem ganhando relevância entre empregadores, candidatos e instituições de ensino superior.
Um aspecto amplamente mencionado nas discussões sobre o futuro do trabalho é uma transição da ênfase em habilidades cognitivas, mensuradas pelo domínio das áreas tradicionais do conhecimento, para a ênfase em habilidades socioemocionais, que valorizam mais as competências relacionadas à criatividade, comunicação, liderança e pensamento crítico. É possível que, aos poucos, instituições de ensino e organizações contratantes comecem a implementar mudanças que coloquem esses atributos no centro do desenvolvimento educacional e profissional de estudantes e colaboradores.
No entanto, o que percebo ainda hoje é um discurso que exalta as competências socioemocionais como prioritárias, mas que ainda seleciona, recompensa e exclui candidatos com base nos mesmos critérios de sempre — diplomas, notas, experiência prévia e posições ocupadas. Para os jovens, pode parecer contraditório que a empresa que busca por pessoas criativas conduza processos seletivos engessados, baseados em testes on-line, análise de currículo e perguntas batidas na entrevista de emprego.
Por vezes, vejo colegas meus reproduzindo o mesmo discurso de valorização das habilidades socioemocionais sem nem ao menos parar para refletir e exercitar o pensamento crítico, tão citado atualmente e, ao mesmo tempo, tão pouco praticado. Vou dar um exemplo: conheço uma jovem profissional graduada em uma das melhores universidades do Brasil, com MBA em uma universidade renomada da Europa, que trabalhou para uma das maiores consultorias do mundo e afirma que o diferencial de sua carreira são as competências socioemocionais.
O que me parece, neste caso e em tantos outros, é que as competências socioemocionais são a cereja do bolo — o toque final para quem já possui todas as credenciais profissionais tradicionais —, mas não o principal elemento que garante posições importantes e salários altos. Considerando a discrepante diferença entre discurso e prática no que tange à importância das habilidades socioemocionais no mercado de trabalho, algumas análises que ajudem a entender como essa tendência evoluirá se fazem necessárias. Neste contexto, alguns caminhos se apresentam.
Mudança
A primeira explicação para a contradição posta é que estamos vivendo um período de transição, no qual as habilidades cognitivas perderão cada vez mais espaço para outras habilidades, mesmo que este processo ainda esteja no início. Neste caso, observaremos os currículos das instituições de ensino superior sendo modificados, processos seletivos ocorrendo de maneira diferente e candidatos sendo avaliados mais por seus portfólios e experiências fora da sala de aula do que por testes padronizados.
Essa mudança pode ocorrer de forma lenta e gradual, mas é necessário que fiquemos atentos para perceber se as estruturas do mercado de trabalho e os processos seletivos estão, de fato, modificando-se, ainda que aos poucos, ou apenas adotando um discurso novo para velhas práticas. A segunda explicação para a situação apresentada é a possibilidade de as habilidades socioemocionais serem apenas uma tendência de curto prazo, que será substituída por outras prioridades nos próximos anos sem antes concluir o processo de modificação real dos aspectos centrais do mercado de trabalho (seleção, remuneração, promoção e avaliação de colaboradores).
É de crucial importância para os profissionais não se deixarem levar por ondas de inovação que não trarão diferenciais relevantes em seus currículos no longo prazo. Como os recursos da maioria dos brasileiros são escassos, não apenas financeiramente, mas também em termos de tempo, disponibilidade para o estudo e capacitação para o trabalho, as decisões de onde investir recursos para a sua formação devem ser tomadas com cautela e análise aprofundada, evitando seguir modismos que não se traduzam em diferencial competitivo.
Nós ainda não temos a resposta sobre o dilema da relevância das habilidades socioemocionais no mercado de trabalho neste século, se esta é uma tendência passageira ou se é uma mudança que veio para modificar as estruturas das instituições de ensino e contratantes. Por enquanto, é importante nos mantermos atentos, observando com cautela, analisando em profundidade e questionando se o discurso das organizações está alinhado às suas práticas. Esses elementos são cruciais para o desenvolvimento do pensamento crítico, tão alardamente desejado e, em compensação, pouco praticado e mal recebido, especialmente quando questiona os sensos comuns e o status quo.
Leia mais
A cada primeiro domingo do mês, a Coluna Saber, de Ana Machado, aborda temas relacionados à educação e ao mercado de trabalho, sempre com base em conhecimentos científicos. Acompanhe o próximo quadro em 2 de agosto. A estudiosa também publica coluna com foco em educação em geral no site Eu, Estudante.