Trabalho e Formacao

A youtuber que transmite feminismo em conversas francas

Correio Braziliense
postado em 08/03/2020 04:08

 

Aos 28 anos, Julia Tolezano figura entre as youtubers mais populares do país. Jout Jout, como ficou conhecida, define seu trabalho como “falar coisas que as pessoas entendam”. A simplicidade e naturalidade no modo de se expressar se tornou marca registrada dela. “É muito simples, para mim, ver uma ideia ou um conceito e traduzir em palavras fáceis de entender”, diz. “É um arranjo de palavras que se dá na minha cabeça muito naturalmente. Então, acho que estou alinhada com o meu karma, com o que eu vim fazer”, explica. Foi com essa espontaneidade que, em fevereiro de 2015, Jout Jout ficou famosa ao publicar em seu canal, Jout Jout Prazer, o vídeo “Não tira o batom vermelho”, em que descreve situações típicas de relacionamentos abusivos. “Muitas mulheres me param na rua até hoje por causa desse vídeo, para falar que eu as ajudei ou que ajudei uma amiga, tia, prima, irmã a terminar um relacionamento abusivo”, conta.


Natural de Niterói (RJ), a fluminense é formada em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Foi na PUC que conheceu Caio Franco, parceiro de trabalho e personagem frequente nos vídeos do canal. Julia terminou a graduação em 2013 e, em maio de 2014, começou no YouTube no intuito de perder a insegurança. “O meu medo de críticas chegava a ser paralisante. Eu deixava de colocar coisas no mundo com medo de alguém ver e não gostar. No primeiro vídeo já foi, acabou meu medo de críticas”, relata. A ideia para o nome do canal surgiu também de forma natural. “Eu trabalhava em um lugar que tinha outra Julia, e aí ela virou Ju G e eu virei Ju T. Na época, o Caio começou a me chamar de Jout, e foi isso. Meu canal é tudo assim, tudo meio que na hora”, brinca. Nove meses depois, o JoutJout Prazer conquistou relevância nacional.
 
Troca constante com o público
Para Jout Jout, o que acontece no canal é um crescimento compartilhado entre ela e os telespectadores. “É uma troca constante quando tenho um pensamento que é muito legal a ponto de querer compartilhar com muita gente. Gosto quando as pessoas descobrem meu canal e fazem maratona, desde o primeiro vídeo até o último”, afirma. “Acho legal ter esse desenvolvimento lá, ao vivo, você vê uma pessoa genuinamente crescendo, aprendendo, errando, aprendendo de novo e se retratando. E é isso aí a vida, né?”, diz.


A fidelidade do público e a forma didática de interagir com ele fez Jout Jout adquirir credibilidade. Em fevereiro de 2018, o livro infantil A parte que falta, de Shel Silverstein, publicado pela primeira vez em 1976, voltou para a lista de mais vendidos da Amazon 42 anos depois, quando Jout Jout, após ganhar de presente o livro, resolveu apresentar a obra em um vídeo do canal, que teve 2 milhões de visualizações em 24 horas. “Muitos homens me param na rua para falar que esse livro mudou a vida deles, olha que loucura. Acho que é porque,nós mulheres, estamos ligadas nas partes que nos faltam, a gente conversa, desabafa sobre isso. Os homens estão cheios de falta e eles não falam sobre isso por achar que não é coisa de menino ficar falando sobre suas faltas”, conta.


Para ela, o segredo da credibilidade é a verdade. “Eu não minto! E eu já aviso que não estou mentindo, o tempo inteiro. Tenho um compromisso que criei desde o primeiro vídeo, que é: você pode confiar em mim! Se essas palavras chegaram até os seus ouvidos é porque eu realmente estava pensando isso neste momento”, garante. Apesar do ar despreocupado que demonstra, Jout Jout está sempre alerta com relação ao conteúdo que compartilha. “É um exercício de o tempo todo você ficar atenta para se aquilo que você está falando faz sentido, se é interessante, se vale a pena causar esse ou aquele incômodo, de que forma falar, como que a mensagem é passada de um jeito que entra na pessoa…”, reflete.“Eu posso falar um troço e não ter efeito nenhum, a frase está falada, a informação está ali e os corpos estão completamente fechados por causa do jeito que eu falei ou a frase que eu escolhi. Tem esse exercício também de não só como essa mensagem vai ser bem recebida, mas que vai realmente entrar ali naquela cabeça e fazer alguma transformação”, relata.


Jout Jout é considerada uma das principais youtubers feministas do mercado. Ela conta que, antes de fazer o canal, nunca teve contato com o debate feminista e que, para ela, o aprendizado veio na prática. “Se você for ver os meus vídeos, desde o início, o feminismo está muito ali, no ar, nas palavras, no jeito, no fato de eu ter sentado na frente de uma câmera e achado que alguma coisa que eu tenho que falar vale a pena ser ouvida”, esclarece. “Tanto que as pessoas viam os meus vídeos e falavam: querida, você é feminista, vai estudar. E aí eu fui estudar e falei: de fato, sou feminista.” E não, ela não sai dizendo tudo o que pensa sem antes pesquisar e se embasar: “É uma preocupação constante na minha vida. Eu prefiro não influenciar a influenciar mal”.
 
Mudando de rota
Depois de morar quatro anos em São Paulo, em fevereiro de 2019, após se dar conta de que seus temas estavam ficando muito limitados, Jout Jout decidiu começar uma viagem sem rumo pelo país. “Eu estava falando sobre uma vivência de Brasil que eu não tinha, os meus temas partiam muito de uma experiência morando no Sudeste. Decidi dar uma rodada. Meu namoro tinha acabado, o aluguel do meu apartamento estava no fim do contrato…”, lembra. “Sabe aquele momento em que todas as amarras se desfazem? E aí eu falei: é agora! Meti o pé”, conta. Agora, no Fiat Uno que ela chama de Bruninho, a youtuber viaja o país.


Questionada sobre suas inspirações para produzir conteúdo, Julia diz que não leva seu trabalho de forma leviana. “Todas as mulheres que cruzam o meu caminho, as pessoas no geral que cruzam meu caminho... Quem me influencia são essas pessoas que estão aí vivendo, sobrevivendo, lutando e ainda chegando ao fim do dia e conseguindo tomar uma cerveja e dar algum sorriso, sabe?”, resume. “Apesar de a sua vida estar constantemente em risco, é essa galera que leva uma família inteira nas costas e no fim do ano está aí comemorando”, define.


Para Jout Jout, ser mulher no Brasil é diferente em cada região. “O que eu entendi é que não existe um Brasil, são vários, e é indefinível. É por isso que é tão incrível também. Você sabe que, no Amapá, tem um problema gravíssimo de escalpelamento de mulheres evangélicas no motor dos barquinhos?”, questiona. “Isso é ser mulher no Brasil? Não sei! Então, o que é ser mulher no Brasil? Que mulher é essa? De que mulher estamos falando?” Ela reforça que as mulheres precisam atentar mais à sexualidade. “Eu acho que tinha que fazer um chamado nacional para as mulheres se masturbarem. Mais da metade das mulheres que habitam a Terra hoje vão morrer sem nunca terem gozado. Acho isso muito grave, de verdade. A gente aprende a pegar nossa sexualidade e jogar no lixo”, crítica.

 

“Pois não, sou a juíza”

Mariana Marinho Machado,
magistrada em Itainópolis (PI)

“A magistratura me
escolheu, não fui eu
que a escolhi.”É assim que Mariana Marinho Machado, 35 anos, começa a contar sua história. A juíza titular da comarca de Itainópolis, no interior do Piauí, rompe preconceitos, e é uma força em ascensão na Justiça brasileira. Natural de Salvador (BA), Mariana vem de um berço de mulheres inspiradoras, que a ensinaram a mostrar sua voz e seu lugar na sociedade.
A avó, Wanda Azevedo Marinho, 86, que ela carinhosamente chama de “fonte de todo meu amor”, batalhou para a filha, Vera Lúcia Marinho Machado, 60, estudar na capital baiana durante a faculdade. Na época, foi a única do grupo de amigas da adolescência a fazer isso. Vera Lúcia se formou em odontologia e abriu caminhos para que a filha caçula, no futuro, se espelhasse nela. “Mulher arretada, minha fonte de inspiração diária”, define Mariana.
Em muitas ocasiões, a magistrada negra causou espanto pela posição que ocupa. “Já aconteceu de pessoas entrarem no meu gabinete e acharem que sou assessora. Uma vez, eu estava sentada, e alguém chegou querendo falar com o juiz. Eu respondi: pois não, sou a juíza. Já brinquei de girar a cadeira e dizer: pronto, a juíza está aqui”, relata. Mariana conta que nunca sofreu racismo de forma explícita, mas confessa que seus funcionários enfrentaram casos de assédio moral por parte de pessoas com quem trabalhava de forma indireta, numa tentativa de atingir a juíza. “Em Brasília, em alguns órgãos, aconteceu de me pedirem identidade funcional, mesmo eu estando bem vestida e de acordo com a ocasião.
É com bom humor, garra e responsabilidade que a baiana trilhou os caminhos do Judiciário em uma trajetória vitoriosa. Aos 19 anos, Mariana ingressou na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para cursar jornalismo, até que fez um teste de vocação profissional e descobriu que o direito também a agradava. Então, resolveu cursar, também, direito na Universidade Católica de Salvador (UCSal). Durante dois anos, fazia uma faculdade de dia e outra de noite, até passar em um concurso de estágio de direito do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia (TRT-BA), a partir daí trancou a faculdade de jornalismo. Depois, foi para o Ministério Público da Bahia (MPBA) como estagiária. Mariana se formou em 2009. Por meio de uma seleção, ou “por mérito”, como ela gosta de falar, o procurador de Justiça Franklin Ourives a escolheu para trabalhar como assessora pessoal dele. “Ele foi um dos primeiros chefes negros que eu tive e é um segundo pai para mim. Foi uma oportunidade profissional única, em que aprendi muito e desenvolvi a escrita”, afirma Mariana sobre a chance.


Ela foi aprovada para o cargo de juiz em 2012, sem cotas, apesar de defender e achar necessária a reserva de vagas para negros. Mariana passou nos Tribunais de Justiça do Pará (TJPA) e do Piauí (TJPI), onde atua.


 “Amo o que eu faço, não me vejo em outra profissão. Tem todas as dificuldades de falta de material, de servidores... Além disso, ser juíza no interior não é fácil, é diferente de ser juíza no Distrito Federal, que é a capital da Justiça e de todos os órgãos”, compara. “Mas, para mim, não tem preço ver as pessoas, principalmente as que passam mais dificuldades, dizendo que achavam que a Justiça não existia para pobres e negros e, hoje, acreditarem nela”, reflete.


Qualificada pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), a magistrada também dá aulas para concurso de procuradores de municípios do cursinho on-line E3C, de Teresina. Pensando em tornar mais acessível o estudo e compartilhar um pouco do que faz profissionalmente, ela criou recentemente o perfil no Instagram @TogaEmVoga. Na plataforma, são constantes as postagens com a hashtag #MagistraturaPorAmor. Mariana faz questão de informar que não é coach. “As pessoas vivem me pedindo coaching para passar em concurso”, brinca.
 
Amor e incentivo
A magistrada tem uma equipe de 10 servidores e faz questão de exaltá-los. “Juiz nenhum é juiz sozinho. Se eu der uma sentença e os servidores não publicarem, não enviarem, não intimarem os envolvidos, não tem eficácia nenhuma”, afirma. A humildade torna Mariana querida por onde passa. Ela guarda com muito carinho na lembrança os momentos que passou na comarca onde trabalhou antes, na cidade de Pimenteiras (PI). Também foram marcantes um jantar oferecido em sua homenagem, por seus colaboradores da comarca de Pimenteiras (PI), e a ocasião em que recebeu o título de cidadã honorária de Itainópolis (PI), na última quinta-feira (5) de março de 2020. Na ocasião da solenidade em que recebeu o título de cidadã honorária, a jurista falou sobre feminicídio e violência doméstica.

Machismo enraizado

“Se não fosse o apoio da minha família, eu não conseguiria realizar tantos sonhos”, assegura.  Casada com o advogado Moacir Nascimento Júnior, ela desabafa que uma das maiores dificuldades é conciliar a vida pessoal e profissional, já que ambas exigem muito dela. Aos fins de semana, Mariana enfrenta uma viagem de 365 km até Teresina para ficar com o marido, que,  por sua vez, sempre que a agenda permite, vai para Itainópolis.


Devido a realidade social que a cerca, Mariana acredita que sofre muito mais com o machismo do que com o racismo. “Volta e meia me perguntam se meu marido me deixa trabalhar, já que ele fica na capital e eu venho sozinha para o interior”, diz. “Uma vez, eu estava passando mal, meu marido veio me buscar e disse que escutou um homem dizendo que ele era corajoso por ter se casado com uma juíza.“No Piauí, o machismo é grande, é uma sociedade em que muitas mulheres ainda não têm vida profissional. Magistradas aqui não chegam nem a 70 entre os quase 300 juízes”, constata. Em 2001, a jurista Ellen Gracie Northfleet foi a primeira mulher a ser ministra do Supremo Tribunal Federal (STF).


Para Mariana, é essencial que a resolução n° 255/2018 do Conselho Nacional de Justiça, que busca valorizar e incentivar a mulher no âmbito da magistratura e a participação feminina no Poder Judiciário, seja executada em plenitude.

 Caminho judicial
Mariana percebe que há mais obstáculos para o gênero feminino conquistar reconhecimento no exercício de um cargo de autoridade. “No começo, foi mais difícil, eu era uma mulher jovem. Tinha 27 anos quando cheguei para assumir a magistratura com toda aquela carga de responsabilidade de ser a juíza que chegou para ‘resolver a cidade’. Além disso, sou negra e, querendo ou não, o racismo institucional existe na nossa sociedade.” Mariana percebeu as suspeitas que pairavam sobre ela. “As pessoas, mesmo que fosse sem querer, acabam pensando: será que ela tem competência para assumir aquele cargo?” Para mostrar seu valor, Mariana não apelou para a briga. “É aí que entra a importância do mérito: eu nunca fui de discutir ou de bater de frente com quem possa ter desconfiado do meu mérito para ser magistrada”, afirma. “A melhor forma de nós combatermos isso é mostrando nosso trabalho e o nosso lugar”, garante.


A vara única de Itainópolis, pela qual Mariana é responsável, envolve três cidades. “Eu lido com processos que vão de crime até casos de família”, ilustra.


 A juíza também chama a atenção para casos de reconhecimento de paternidade e adoção unilateral. “Por trás de um pedido de pensão alimentícia, tem todo o abandono emocional. Nós vemos que o filho, às vezes, não quer nem o dinheiro da pensão em si, mas, sim, o reconhecimento de afetividade por parte um genitor que ficou anos afastado”, reflete.

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