Nos anos 1980, quando o trabalhador portuário Joaquim José Ribeiro dos Santos levava a pequena Djamila Taís Ribeiro dos Santos para as reuniões do Partido Comunista, ele carregava consigo a filha caçula, mas não imaginava que, tempos depois, ela se tornaria uma das 100 mulheres mais influentes do mundo. Aos 39 anos, Djamila é colunista da Folha de S.Paulo e professora convidada no curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde leciona a disciplina de jornalismo contra-hegemônico. “É fundamental ocupar esses espaços, trazer produções acadêmicas de mulheres para que o espaço acadêmico possa refletir o povo brasileiro em sua diversidade”, afirma.
Djamila nasceu em 1º de agosto de 1980, em Santos (SP), como a última dos quatro filhos do casal Joaquim e Erani. A família de classe média baixa proporcionou aos herdeiros uma herança imaterial: a educação. A biblioteca do pai era composta por mais de 100 livros contando a história do povo negro, tema que era pauta de debates frequentes dentro de casa. O berço político de Djamila foi a base para que, no fim da adolescência, ela começasse a trilhar caminhos próprios.
Em 1999, aos 19 anos, ela conheceu a ONG Casa de Cultura da Mulher Negra, organização feminista de Santos. Ali a paulista se entendeu como feminista. “Aquilo ampliou a cultura que eu já tinha de casa. Moldou muito da minha trajetória, foi ali que eu conheci a minha formação política de feminista negra, que me acompanhou durante a universidade”, recorda.
Aos 21 anos, Djamila decidiu começar o curso de jornalismo na Universidade Santa Cecília, em Santos. Lá ficou durante três anos, até engravidar da filha, Thulane, atualmente com 15 anos. Trancou o curso para se dedicar à maternidade. Só conseguiu voltar para a faculdade em 2008, aos 27 anos, quando passou para o curso de filosofia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No mestrado em filosofia política, concluído em 2015, Djamila desenvolveu uma tese que compara a feminista francesa Simone de Beauvoir e a estadunidense Judith Butler ao feminismo negro.
Dando visibilidade a outras e outros
“Estudar filósofas não é fácil, a filosofia ainda é uma área muito masculina”, diz. No entanto, o esforço para se destacar numa área que ela considera desafiadora a recompensou com uma carreira cheia de realizações. Em 2016, foi convidada para ser secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Em 2017, publicou seu primeiro livro, que faz parte da coleção Feminismos Plurais, coordenada por ela na editora Pólen. “São livros de bolso, com preços acessíveis, para que as pessoas tenham acesso ao debate feminista”, explica.
A obra de estreia de Djamila se tornou referência na área e foi finalista do Prêmio Jabuti, o maior de literatura no mercado editorial brasileiro. A filósofa conta que a inspiração surgiu do seu incômodo de não existirem tantas autoras femininas publicadas, sobretudo negras. “Queria questionar o porquê de ainda a voz que prevalece ser a do homem no meio editorial e acadêmico. Então, quis trazer outros lugares de fala, das mulheres e também dos homens negros”, afirma. No mesmo ano de lançamento do livro, a figurinista Su Tonani denunciou o ator José Mayer por assédio sexual. Nessa época, o movimento “Mexeu com uma mexeu com todas” estourou nas mídias sociais, e Djamila foi convidada por um grupo de atrizes, diretoras e roteiristas da Rede Globo para dar uma aula sobre o pensamento e as teorias feministas. Ss aulas aconteciam na casa da atriz Camila Pitanga.
Em 2018, a escritora lançou seu segundo livro. Ela relata que, com as publicações de seus três livros, o trabalho ganhou mais consistência. Djamila ajudou a publicar, pela editora Pólen, outros autores negros.“Para mim, era importante usar a minha visibilidade para visibilizar outras pessoas”, relata. Além da coleção Feminismos Plurais, Djamila coordena, na editora Pólen, o selo editorial Sueli Carneiro, em homenagem à filósofa e feminista negra que é sua mentora.
Prêmio
Em 2019, com o lançamento do seu terceiro livro, que figura na lista de mais vendidos do país, o reconhecimento do trabalho de Djamila atravessou fronteiras e chegou à França, país de Simone de Beauvoir, uma de suas principais inspirações. Djamila foi convidada pelo governo francês para passar uma temporada no país, em uma turnê de lançamento de seus dois primeiros livros, que foram traduzidos e publicados lá. A filósofa de Santos também recebeu, na França, o prêmio Prince Claus Laureate, dedicado a personalidades do amanhã.
Na avaliação de Djamila, a luta por igualdade de gênero está mais disseminada. “É importante ressaltar que o feminismo é plural, heterogêneo e existem várias correntes do pensamento feminista”, destaca. “Acho que hoje isso está mais acessível, antes era um movimento apenas de mulheres privilegiadas, depois de acadêmicas”, declara. Fator de preocupação, aponta ela, é a alta taxa de violência contra a mulher, incluindo aquela que chega à morte. “Com o aumento do índice de feminicídio, o desmonte orçamentário da Secretaria da Mulher e um governo que não está pensando nessas políticas, vemos hoje como um desafio e com muita preocupação que essas pautas, que, de alguma maneira, estavam avançando, tenham um retrocesso”, reflete a filósofa. Apesar disso, esperançosa, Djamila diz que o papel social de uma mulher consciente dessas questões é não perder a capacidade de se indignar porque, de fato, a realidade feminina no Brasil tem se tornado cada vez mais difícil. “Nós temos direito a uma existência sem violência”, diz.
Ciência é coisa de menina, sim
Formada em medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a psiquiatra e neurocientista cearense Natália Mota, 35 anos, é um dos mais novos motivos de orgulho da ciência nacional. Eleita pela Revista Forbes uma das 20 mulheres mais poderosas do Brasil, ela foi a primeira e única brasileira indicada ao prêmio Nature Research Award de 2019, promovido por uma renomada revista científica. Desde 2016, no pós-doutorado também pela UFRN, Natália trabalha no desenvolvimento de um programa de computador que consegue diagnosticar a esquizofrenia com 90% de precisão a partir de apenas 30 segundos de fala do paciente. O diagnóstico, que levava até dois anos, pode ser feito de forma ágil e colaborar para o tratamento e o controle do distúrbio. Sobre a inspiração para o programa, ela conta que o incentivo veio de casos na própria família. “Comecei a ficar muito curiosa com o fenômeno da psicose, tenho histórico de alguns familiares que tiveram episódios. Então, aquilo me chamava um pouco a atenção, principalmente porque têm muitas lacunas, a gente entende muito pouco sobre isso”, afirma.
Cearense de Fortaleza, Natália sabia, desde criança, que queria ser cientista, e o pai, Silvio Mota, foi fundamental para isso. “Ele dava liberdade de escolha em relação à profissão e dizia que eu podia escolher entre medicina, engenharia e direito”, brinca. Quando chegou a hora, ela não exitou e optou por medicina, que parecia ser o caminho certo para chegar ao destino final: a ciência. Em 2002, mudou-se para Natal, onde fez graduação, mestrado e doutorado na UFRN. Mesmo recebendo diversos convites, Natália não pensa em sair do Nordeste. “Eu me sinto muito sortuda por ter feito essa trajetória. Lógico que eu quero fazer a melhor ciência que eu puder, mas acho que a gente consegue fazer isso estabelecendo colaborações internacionais e sendo ativa nessas colaborações”, declara. “A experiência que eu tenho, ao menos aqui em Natal, é de fazer ciência com muita liberdade, alegria, curiosidade e eu sou muito grata a tudo isso. Lógico que, com toda a situação nacional que nós vemos, isso vai ficar cada vez mais difícil, mas prefiro continuar otimista”, reflete.
Entre os desincentivos à ciência, está o corte de verbas para pesquisas científicas anunciado pelo governo federal em 2019. Com isso, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), ficou sem dinheiro para continuar a pagar as mais de 4.500 bolsas de incentivo à pesquisa nas universidades públicas. “Eu sou bastante crítica disso porque eu acho que é um tiro no pé. Pesquisa, ensino e extensão são investimentos que têm um retorno direto para a sociedade”, defende. “Quando o governo decide que isso não é mais estratégico, determina que o destino da nação é continuar sobrevivendo das migalhas que se paga para commodities e não se tornar autônoma na produção de tecnologia, além de desperdiçar todo o recurso que foi investido na criação dessas comunidades (científicas)”, critica.
Pela defesa de um patrimônio nacional
Apesar dos desafios, ela procura se manter positiva. “Prefiro acreditar nas pessoas, uma nação não é feita só de seus governantes. É feita principalmente da população! Tento sempre passar uma mensagem mais otimista porque eu sei que várias pessoas não entendem o que é feito nas universidades, e eu acho que o público geral precisa entender que quem está trabalhando nas universidades está trabalhando para a sociedade como um todo”, explica. “Mesmo que você não veja o trabalho específico daquela pessoa na sua vida, ele, com certeza, chega, em algum momento, ao seu cotidiano”, diz. “Acho que a gente precisa falar disso de maneira mais aberta e mais educativa para que as pessoas comecem a proteger aquilo que é delas: o trabalho de todos os cientistas e de todas as universidades é patrimônio da nação brasileira.”
As dificuldades enfrentadas na vida profissional e pessoal da neurocientista acabaram se encontrando em um ponto: o machismo estrutural. Natália conta que, em suas primeiras palestras, uma das perguntas que recebeu, vinda de um homem, foi: como foi que você aprendeu matemática?.“Eu comecei a rir porque eu saí do Ceará, mas o Ceará não saiu de mim”, brinca. Durante o pós-doutorado, achou que encontraria dificuldades para aprender a programar e fazer a parte mais dura do trabalho. Por isso, fez questão de aprender cada etapa do processo. “Eu sempre tive a ideia de que eu precisava ser autônoma naquela colaboração. Então, desde cedo entendi que, se a gente, como mulher, ficar só pedindo ajuda, normalmente um colega homem pega e faz no seu lugar, analisa aquele dado pra você e assim acaba que, daquela forma, você fica alienada do processo”, percebe.
A cada artigo que publicava, notava que os obstáculos ficavam cada vez maiores. Não era só o problema de ser mulher e ser mãe que fazia as pessoas acharem que ela não conquistaria espaço na academia. “É que, quando você chega lá, as pessoas não acham que foi você. Elas pensam: se esse artigo têm muitos autores, ela pode ser a primeira autora, mas eu imagino que ela tenha tido muita ajuda, invalidando aquele local que você conquistou com tanto esforço”, comenta. Publicando cada vez mais trabalhos, Natália viu que não adiantava querer a mesma credibilidade e reconhecimento que era dado aos colegas homens. “Então, eu comecei a desapegar dessa recompensa e a focar a curiosidade, e isso impactou bastante a minha rotina em termos do que esperar naquele ambiente social.”
Casada com o também neurocientista Sidarta Ribeiro, e mãe de Ernesto, 9 anos, e de Sérgio, 2 anos, ela relata que a primeira gravidez, aos 27 anos, foi um grande desafio. “Ele nasceu no fim da minha residência, eu tinha alguns dados coletados, mas ainda tinha que aprender muita análise e percebia que, em relação a colegas que eram meus contemporâneos, eu tinha uma limitação de tempo incrível”, compara. “Enquanto a galera ficava depois da aula, conversando e tomando cafezinho pra ter ideia, eu tinha de ir embora infalivelmente às 17h para ficar com meu filho.
Natália percebeu que aquilo não acontecia só com ela, mas com várias outras colegas, especialmente as novatas. “Principalmente entre as mulheres que estavam na pós-graduação, era mais frequente o assunto de desistência. Era dado como normal uma mulher achar que desistiria do mestrado ou do doutorado”, lamenta. “Tem ciência sobre isso, não é um fenômeno que está acontecendo só aqui. São altas as ocorrências de reconhecimento menor de mulheres na ciência e também há uma taxa de abandono alta. Por isso, as mulheres tendem a não chegar a cargos de liderança (dentro da ciência).”
Cientistas unidas
Pensando nisso, Natália se reuniu com colegas de laboratório e, em 2019, criou o Sci-Girls, grupo de debates semanais para conversar de maneira livre e segura sobre ansiedades, medos e alegrias na profissão e na vida pessoal. “Dá aquela sensação de que nós somos tanto terapeutas quanto pacientes umas das outras. É como se eu recarregasse minhas energias”, explica. Com o grupo crescendo e contando com mais de 20 cientistas, Natália pensa na possibilidade de expandir e, de repente, fazer uma página para institucionalizar as experiências e ideias dessa comunidade. “Acho que nós falamos pouco sobre mulheres na ciência”, critica. “
Para as meninas que têm o sonho de se tornar cientistas, ela incentiva: “Persevere, é difícil, mas têm várias de nós que chegaram lá e, se tantas conseguiram, você também pode!”. O primeiro passo, ensina ela, é identificar pensamentos limitantes que você pode quebrar, como: matemática não é pra mim, tenho muito medo de apresentar meu trabalho em público, não mereço os elogios que eu conquistei, entre outros. “A gente não consegue mudar o mundo de uma vez, mas, juntas, nós conseguimos”, acredita.
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