Felipe de Oliveira Moura*
postado em 03/06/2018 13:41
Acompanhamento psicológico e psicoterapia ; para ajudar pessoas a superar traumas profundos como depressão e episódios de violência, por exemplo ; são serviços exclusivos de psicólogos, graduados e com registro no Conselho Federal de Psicologia (CFP). É isso que representantes do setor querem deixar claro, especialmente depois que o assunto gerou polêmica na televisão, em um capítulo de novela (saiba mais em Memória). Conselheira do CPF e psicóloga, Rosane Granzotto defende que a psicologia é a profissão adequada para lidar com sofrimentos da alma. ;É um curso legalizado, são cinco anos de academia. Depois de formada, a pessoa que trabalhará com isso, em geral, ainda busca especialização. Na maioria das vezes, fez psicoterapia antes. É alguém muito preparado para lidar com saúde mental, que é uma questão muito séria;, explica a especialista em psicologia clínica e mestre em filosofia.
Segundo a coordenadora e professora do curso de especialização em gestalt-terapia do Instituto Granzotto de Psicologia Clínica Gestáltica, trabalhadores de outras áreas, como coaches, não têm conhecimento ou técnica para lidar com sofrimento psíquico profundo, transtornos mentais ou traumas. ;São treinadores, o objetivo deles é outro: potencializar características para que a pessoa renda mais. Coaching nem é uma profissão, é apenas uma ferramenta;, afirma.
Apesar da consideração da representante do CFP, trata-se de uma atividade em franco crescimento: estima-se que sejam 25 mil profissionais, mas apenas 4 mil têm o coaching como atividade única. A ocupação, porém, ainda não é regulamentada no país.
Para Sulivan França, presidente da Sociedade Latino Americana de Coaching (Slac), essa é uma questão de saúde pública e cabe à psicologia atuar em casos como o abordado na trama da novela. ;O coach não pode trabalhar abuso sexual, nem situações como processo depressivo. Isso deve ser feito por um profissional habilitado com conhecimento de saúde, como psicólogo;, crava.
;A promessa de tratamento de traumas profundos e depressão tem de vir da psicologia e, em nenhum momento, o coach deve trabalhar com isso;, assevera Paulo Vieira, presidente da Febracis (Federação Brasileira de Coaching Integral Sistêmico). No entanto, ele acredita que o método pode ajudar indiretamente, sem, no entanto, substituir o acompanhamento psicológico. ;O objetivo do coach é gerar inteligência emocional, performance de vida, o que, normalmente, pode evitar ou combater sintomas de depressão ou de traumas profundos;, complementa. A controversa cena exibida na Rede Globo não incomodou organizações apenas do ponto de vista do profissional que estava fazendo o tratamento. A forma como isso foi feito, usando técnicas de hipnose também gerou reação, sobretudo das entidades de coaching, que consideraram a questão preocupante.
O administrador e master coach trainer Sulivan França, presidente da entidade, acredita que a apropriação de métodos de outras áreas é um problema da profissão no país. ;Nunca e em lugar nenhum do mundo se aplica hipnose dentro do processo de coaching. Foi uma invenção de uma escola brasileira, inclusive a que fez o merchandising na novela. São mundos completamente distantes e diferentes. Misturar é tão absurdo quanto um jornalista começar a trabalhar com nutrição...;, exemplifica.
Quem pode ser coach?
Diante de um cenário de massificação no número de profissionais que trabalham como coaches, surge a pergunta: qualquer pessoa pode ser coach? Sulivan França acha que sim, mas faz ressalvas àqueles que acreditam que isso seja uma vocação com a qual a pessoa nasce. ;Qualquer um pode ser coach desde que passe por processo de capacitação, estude e se desenvolva. Não existe dom, é uma capacitação técnica, são competências que podem ser desenvolvidas.; Conhecer o comportamento humano e aprender o método ; que difere a depender da instituição ; para extrair do cliente a melhor decisão é a fórmula para quem busca atuar como coach.
De acordo com Evaldo Bazeggio, o conhecimento pode ser adquirido por meio de estudo (uma formação prévia em psicologia, sociologia ou filosofia, por exemplo), mas também experiência de vida. ;Uma pessoa que não conheça o comportamento humano e estude o método não necessariamente estará apta a ser coach e vice-versa;, diz. Uma questão sensível na atuação do coach são as inúmeras ramificações que a profissão atingiu, abrindo espaço para enganações. ;Tem pessoas que prometem aprovação em concurso, por exemplo. Esse é um charlatão, pois não há formas de se garantir isso. Quem atua assim trabalha numa seara pouco ética;, alerta Evaldo. O apelo mercadológico é a explicação para tanta confusão. ;Às vezes, a pessoa vende produtos de nutrição se denominando coach de emagrecimento, mas só quer vender. Seria mais correto se denominar consultor ou conselheiro;, aponta.Mercado do DF
Evaldo Bazeggio, presidente do capítulo regional Distrito Federal da International Coaching Federation (ICF), estima que haja de 2 mil a 3 mil coaches em atuação em Brasília. ;Muita gente faz formação, mas não atua. Em torno da comunidade da ICF, são apenas 100 pessoas;, diz. Segundo ele, a demanda por coach executivo, profissional que orienta o coachee a ter melhor performance na carreira, é forte na região. ;Grandes organizações, como Caixa Econômica Federal, Banco Central, tribunais e laboratórios, buscam profissionais para ajudar seus executivos a atingirem melhores resultados. É um mercado maduro;, aponta. ;Também cresce o número de pessoas que procuram orientações para gerirem suas carreiras.; De acordo com Bazzeggio, o falso coach é aquele que induz a pessoa a uma verdade particular, que é do seu interesse.
Regulamentação em pauta
Atualmente, o coaching não é regulamentado no Brasil, o que abre margem para diferentes interpretações sobre o que é ser coach, ao mesmo tempo em que possibilita divergências internas sobre o limite de atuação dos profissionais. Tanto a International Coach Federation (ICF) quanto a Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) têm códigos de ética que versam sobre princípios e normas a serem cumpridos. No entanto, nenhum deles esclarece quais os limites de atuação da profissão em relação a outros campos, como psicologia ou psiquiatria. Não é incomum ver coaches atuando em temas específicos, como emagrecimento, relacionamento, vendas, entre outros, cujas abordagens seriam restritas a profissionais de outras carreiras.
O presidente do ICF no Distrito Federal, Evaldo Bazeggio afirma que o código é muito rigoroso nos preceitos éticos e que não se aceita que os filiados à entidade ultrapassem os limites impostos. No entanto, diante da não regulamentação da profissão, ele afirma que, muitas vezes, as decisões precisam ser feitas caso a caso, mediante debates. ;Nós fazemos fóruns de discussão para alertar sobre os riscos, até mesmo legais, da responsabilidade civil do coach. Não temos uma limitação cartesiana. Há uma linha de ação em que se estrutura começo, meio e fim na relação entre coach e coachee. Outra forma que buscamos é debater com outras profissões, sobretudo com coaches que são psicólogos;, observa o master coach, mentor pelo Sistema Isor e professor de pós-graduação em ambiente de negócios na Escola Superior de Administração e Negócios (Esad).
Para Sulivan França, muitos coaches se escondem atrás da falta de legislação sobre a profissão e acabam atuando em outras áreas. ;Embora o coaching não tenha regulamentação, uma série de outras metodologias têm. O CFP conta com normas e eu não posso entrar nessa área.; Segundo o presidente da Slac, regulamentar seria um passo importante, mas não resolveria questões como essa. De autoria do ex-deputado federal Capitão Assumção (PSB/ES), o Projeto de Lei (PL) n; 5.554/2009, arquivado na Câmara dos Deputados, visava a normatização da profissão de coach, com exigência de diplomação de curso superior registrada em órgão competente. A proposta constituía como um das competências do coach ;atuar em parceria com seu cliente (indivíduo ou equipe) para auxiliá-lo, com olhar prospectivo, a definir seus objetivos, identificar o que o está impedindo de alcançá-los e, finalmente, alcançá-los;.
A conselheira do CFP Rosane Granzotto acredita que a regulamentação não seguiu adiante porque a atuação do coach está entrando em áreas existentes, como a própria psicologia. ;Acho que o coaching não será regularizado, porque nenhum colegiado com o mínimo conhecimento do que está fazendo vai profissionalizar uma metodologia que pode ser usada por outros profissionais. Uma profissão é um investimento em longo prazo. Precisaria de longos anos de estudo;, argumenta.
A regulamentação seria um caminho para diminuir os problemas de interface do coaching com outras profissões, mas não é essencial, segundo Luana Ganzert, psicóloga e coach. ;Conheço diversos profissionais da psicologia que não agem com ética, assim como ocorre no coaching.
Minha experiência
De cliente a profissional
Temporadas como professor de português, inglês, administração e comunicação e como bancário com quatro anos de factoring ; comprando ativos de empresas ; preenchem o currículo de João Saraiva. Apesar disso, ele decidiu que queria mais. Convidado por um coach para conhecer um método de treinamento em 2008, João mudou de vida nos últimos 10 anos. ;Você não tem ideia dos processos de mudanças, cura de fissuras emocionais e alteração de crenças limitantes pelos quais passei. Vivo de outra forma, tanto pessoal quanto profissionalmente. O coaching permitiu que eu conhecesse a mim e as minhas possibilidades de crescimento, além das minhas limitações;, diz.
;Paralelamente a isso, adquiri o domínio de ferramentas que permitiram que eu me tornasse um profissional, pai, avô e colega melhor;, orgulha-se. Autor de dois livros (70 anos em verso e prosa e Coaching executivo no processo de desenvolvimento profissional), ele conta que a vida aos 73 anos está apenas no começo. Treinador e master coach pela Febracis, viaja pelo Brasil ministrando palestras e cursos sobre negócios e vida. ;Meus ganhos aumentaram, minha sensação de vida é outra e eu me sinto hoje alguém extremamente motivador. É gratificante quando as pessoas à minha volta me veem como inspiração;, completa.Memória
Entenda o caso
Em cenas da novela O outro lado do paraíso, da TV Globo, que foram ao ar em 7 e 8 de fevereiro, a personagem Laura (Bella Piero), que sofreu abuso sexual do padrasto na infância, passou por uma sessão de hipnose com Adriana (Julia Dalavia), advogada que se dizia coach, para que a vítima acessasse memórias suprimidas. O episódio, que foi patrocinado pelo Instituto Brasileiro de Coaching (IBC), gerou polêmica sobre quem pode prestar esse tipo de atendimento. O Conselho Federal de Psicologia afirmou que ;a novela presta um desserviço à população brasileira ao tratar com simplismo e interesses mercadológicos um tema tão grave;. O capítulo foi tão polêmico que desagradou também representantes de instituições de coaching, que se posicionaram contra essa parte da trama. Em resposta a diversas críticas que recebeu, a Globo, em nota, alegou que ;as novelas são obras de ficção, sem compromisso algum com a realidade. O outro lado do paraíso quer mostrar, com o desenvolvimento da trama da personagem Laura, o processo pelo qual passa uma pessoa que precisa de ajuda, recorrendo a diferentes e variadas formas de apoio e terapias, das mais as menos ortodoxas;.
O IBC afirmou, em nota, que ;a cena da novela não é conclusiva sobre como a personagem coach que utiliza hipnose Ericksoniana vai lidar com a questão. Mas fica evidente que a técnica da hipnose poderá ser utilizada para descobrir a origem do bloqueio e não o coaching;. A confusão em torno do tema foi ;exageradamente acentuada frente ao contexto dramatúrgico;, na visão da instituição, que citou ainda o fato de o coaching ter sido retratado em outros capítulos da novela de outras maneiras. ;Reforçamos que trauma proveniente de abuso sexual não é demanda para coaching;, completou. O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) recebeu denúncia de uma consumidora e instaurou processo para investigar se houve abuso ou inadequação publicitária exibida no conteúdo da trama. Outras nove reclamações foram adicionadas ao processo, julgado em 12 de abril. Determinou-se por dar uma advertência ao IBC, mas por não punir a TV Globo. Para o Conar, o instituto ignorou os artigos 3 e 23 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, que preveem que todo anúncio é de responsabilidade do anunciante, da agência de publicidade e do veículo de divulgação e que os comerciais não devem abusar da confiança do consumidor nem explorar a falta de experiência ou de conhecimento em algo.
Glossário
; Coaching: metodologia que reúne conhecimentos, ferramentas e técnicas de diversas ciências e áreas do conhecimento visando o desenvolvimento do comportamento humano, a fim de levar o indivíduo ao estado desejado por meio de mudanças
; Coach: em inglês, significa instrutor ou treinador
; Coaches: plural de coach
; Coachee: é como é chamado o cliente de um coach
; Master coach: é o nível mais alto do coaching que se pode alcançar
Normatização
Contexto era similar ao do coaching atualmente
Por volta da década de 50, existiam pessoas exercendo a atividade de psicólogo mesmo sem regulamentação, situação semelhante à do coaching atualmente. Foi apenas em 27 de agosto de 1962 que o então presidente da República, João Goulart, sancionou a Lei n; 4.119 que tornava a psicologia, de fato, uma profissão. No entanto, a lei teria de esperar até janeiro de 1964 para ser regulamentada pelo Decreto m; 53.464. A criação do Conselho Federal de Psicologia (CFP) ocorreu em dezembro de 1971 por meio da Lei n; 5.766.
*Estagiário sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa