Prestes a completar seis meses de vigência, a Reforma Trabalhista ainda gera várias dúvidas, tanto para empregados quanto para empregadores. E as incertezas se tornam ainda maiores agora, já que a Medida Provisória (MP) n; 808/2017 deixou de valer na última segunda-feira (23). O documento servia para trazer definição a pontos que a lei da reforma, n; 13.467/2017, deixou em aberto. Entre eles está a aplicabilidade da regulamentação: com a MP, as novas regras se aplicavam a todos os trabalhadores do país, tenham sido eles contratados antes ou depois da remodelação da legislação trabalhista. Sem essa definição, está instalada grande insegurança jurídica. O acordo entre o governo e os parlamentares para acelerar a aprovação da reforma foi de deixar passar as normas como estavam para, depois, modificar o que fosse necessário com a medida provisória. O problema é que a proposta gerou disputas políticas e acabou nem chegando a ser analisada no Congresso Nacional. Outros itens que se tornaram problemáticos e carecem de regras são trabalho intermitente, jornada em local insalubre para gestantes e lactantes e escala de 12 horas de trabalho por 36 horas de descanso.
O governo sinalizou a intenção de editar um decreto para regulamentar esses e outros tópicos para manter em vigor todos os pontos da reforma trabalhista, mas ainda não há data definida para isso. O objetivo da reforma era simplificar as relações trabalhistas, mas, do jeito que está, conseguiu complicá-la, pois, agora, há confusão entre três sistemas: o de contratos firmados antes da reforma; os assinados durante a vigência da MP; e os fechados depois disso. Para alguns juristas, não existe diferença entre eles; para outros, sim. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem se movimentado para bater o martelo em relação a algumas questões: por exemplo, se as mudanças valem para contratações feitas antes da reforma ou se só se aplicam para quem teve a carteira assinada depois disso. Se nem mesmo juristas estão totalmente seguros quanto à aplicação da legislação, empregados e empregadores se veem rodeados por incertezas. Na semana em que é comemorado o Dia do Trabalhador, o caderno Trabalho & Formação Profissional tenta esclarecer as principais dúvidas relacionadas ao assunto para deixar o homenageado do dia 1; de maio menos perdido.
Debate legal
;Veja que, mesmo sendo tão recente, a reforma foi seguida de medida provisória que ajustaria pontos polêmicos, mas que perdeu a validade;, diz Ana Paula Bouças, advogada e especialista em direito e processo do trabalho. A incerteza é tamanha que, agora, cada jurista avalia a matéria de modo diferente. De acordo com Maurício Corrêa da Veiga, advogado trabalhista do escritório Corrêa da Veiga, não há muito o que ser discutido. ;A legislação é de aplicação imediata.; Para ele, o que falta é que empregados e empregadores se acostumem às novas regras. ;É uma mudança de cultura, e isso o tempo vai fazer;, diz. As questões que ficam em aberto depois de a MP n; 808/2017 expirar podem gerar desentendimentos. ;Alguns itens da MP poderão não constar no decreto, como a validade para os contratos anteriores, já que é algo que deveria ser definido por lei;, opina Antônio José Telles Vasconcelos, advogado do escritório de advocacia Ferraz dos Passos. Mesmo quando a comissão do TST chegar a uma decisão, ainda podem restar dúvidas.
;Esses julgamentos de TRTs (Tribunais Regionais do Trabalho) estão descumprindo a lei;, denuncia Maurício Corrêa da Veiga. Esse é um assunto polêmico, pois, para muitos, a inexistência de pagamento compulsório ;acabaria; com os sindicatos. O advogado discorda dessa linha de pensamento. ;Acho que, pelo contrário, haverá um fortalecimento dessas entidades. Nós temos no Brasil algo inexplicável: são 125 mil sindicatos, uma desproporção gigantesca em relação a outros países. A partir do momento em que a taxa passar a ser facultativa, aqueles sindicatos que vivem só dessa contribuição não sobreviverão, restarão os fortes.; O procurador Ronaldo Fleury cita mais dois aspectos deixados em aberto: as gestantes poderem trabalhar em locais insalubres e o dano moral ser tarifado de acordo com o salário da pessoa. ;Volta a situação absurda de a mulher ter de provar que a atividade é insalubre mesmo. Isso é uma crueldade;, reclama. ;Em relação ao dano moral, situações iguais são tratadas de formas diferentes. Se um teto cair em cima do diretor da empresa e do empregado, eles receberão indenizações diferentes;, diz, demonstrando indignação. Para o representante do MPT, não há nada a se comemorar: ;A reforma trata o trabalhador como uma subespécie de cidadão;.
Ao menos 17 incertezas
A MP alterava 17 itens da lei e, agora, sem validade, gera dúvidas e discordâncias sobre todos esses assuntos. Entre eles o trabalho de gestante em ambientes insalubres e o intervalo necessário para que o patrão recontrate alguém em contrato intermitente, depois de ter despedido essa pessoa. De acordo com o advogado Renê Koerner, sócio do escritório Urbano Vitalino Advogados, a intenção da medida era amenizar pontos polêmicos da legislação, que agora retorna ao texto inicial. ;Voltamos para a aplicação da reforma do jeito como foi promulgada.; Para o procurador do Trabalho Ronaldo Fleury, o único ponto em que há clareza é a validade: na visão dele, sem a MP, as novas normas não valem para contratos firmados antes de novembro de 2017. ;O legislador não quis que se aplicasse a esses trabalhadores, senão, isso estaria descrito na reforma.; O problema é que, se esse for o caso, Fleury teme que a questão desencadeie demissões visando recontratar sob o novo modelo. O advogado Maurício Corrêa da Veiga discorda: ;É regra ser para todos; mesmo sem a MP, a reforma continua valendo;.
Executivo em ação
Confira nota do Ministério do Trabalho sobre o que deve ser feito daqui para a frente:
;Sobre o prazo de votação da MP que faz ajustes à modernização trabalhista, o Ministério do Trabalho esclarece que está analisando o que pode ser feito: ato normativo próprio, decreto ou portaria. O ministro do Trabalho, Helton Yomura, descarta a possibilidade de uma nova MP e observa que um decreto pode ser uma alternativa viável juridicamente.;
Discussão
Uma comissão formada por nove ministros criada em fevereiro teria 90 dias para estudar a aplicação da lei e apresentar conclusões. Em abril, o presidente do TST, Brito Pereira, concedeu mais 30 dias para a conclusão dos trabalhos, após solicitação do presidente da comissão, Aloysio Corrêa da Veiga. De acordo com o órgão, os ministros se reúnem periodicamente. O entendimento deles deve guiar os juízes de todo o país.
E os trabalhadores, como ficam?
Maya Amorim, 20 anos, foi mandada demitida de um comércio de açaí, está cumprindo aviso-prévio e se sente perdida e insegura com relação às regras da reforma. ;Não sei qual seria o tempo mínimo para receber o seguro-desemprego e nem se, após uma negociação, o empregador poderia mudar alguma coisa, o que poderia afetar o empregado;, diz. Apesar disso, ela vê vantagens na nova legislação. ;O parcelamento de férias e a garantia de condições iguais para terceirizados são pontos positivos;, opina.
O receio do promotor de vendas em uma loja de celulares Marcelo Borges, 24, é de que a lei acabe por prejudicá-lo. ;Minha dúvida é se tem perigo de todo mundo ser mandado embora para ser contratado pelas novas regras;, questiona ele, que tem carteira assinada há dois anos. ;Isso traz insegurança. Até o momento, não vi nenhuma vantagem para mim que sou trabalhador, só para os empregadores;, opina Marcelo.
A técnica em enfermagem Simone Vaz, 50, não vê as alterações com bons olhos. ;Só vai prejudicar os mais pobres;, afirma. Ela não tem carteira assinada e acredita que, com as mudanças, mais pessoas passarão a não ter. Simone trabalha como freelancer em uma clínica, atendendo pacientes acamados em casa. Apesar disso, ela preferiria ser celetista. ;Eu teria mais segurança;, justifica.
A estudante de pedagogia Gabriela Pascoal, 23, ainda não trabalha com carteira assinada, o que não inibe preocupações com relação à entrada no mercado de trabalho. ;Tenho grandes receios. Eu me preocupo com as horas extras, a jornada de trabalho e a forma como os patrões e empregados vão negociar as questões;, confessa. Para ela, não há dúvidas de que o novo contexto será pior para os funcionários. ;Esse projeto contempla muito mais a empresa do que o trabalhador.;
Na prática, o que houve de positivo?
Uma alteração vantajosa, de acordo com o advogado Antônio José Telles Vasconcelos, são as férias, que passaram a poder ser divididas em três períodos. ;É benéfico para ambos os lados por ser mais flexível;, opina. Para isso, o patrão precisa estar de comum acordo com o empregado. Quanto à promessa de a reforma gerar mais empregos, o advogado Maurício Corrêa da Veiga pensa ser muito cedo para fazer uma avaliação. ;Acho que não está acontecendo da forma que foi propagada, mas acho que vai ser uma consequência. Não dá para dizer que a reforma não cumpriu a promessa ainda. Tem um período de amadurecimento.; Renê Koerner, da OAB-Pinheiros, concorda. ;Eu entendo que ainda não temos tempo significativo para análise de dados em relação a novos empregos. O que a gente tem visto é que, por causa dessas novas modalidades de contratação, houve aumento, sim, na abertura de empresas, de autônomos e de terceirizados;, afirma. De acordo com a advogada trabalhista Ana Paula Bouças, alguns pontos da reforma já funcionam bem.
Desafogamento da Justiça ou negação de acesso?
De acordo com o juiz do trabalho do DF (10; Região) Rogério Neiva, o Brasil acumula muitos processos na área trabalhista, por isso a necessidade de dispositivos que diminuam essa carga na Justiça é real. A fórmula encontrada foram os honorários de sucumbência (quando a parte perdedora paga os custos do advogado da parte ganhadora) e a possibilidade de acordos. Aparentemente está funcionando: houve diminuição de 45% na quantidade de processos, de acordo com o TST. ;Estatisticamente, esse fato é inegável. Isso não significa que podemos afirmar que é uma causa direta da reforma, mas não dá para dizer que não há impacto dela;, explica .
Para Rogério Neiva, juiz auxiliar da vice-presidência do TST e membro da Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, o que contribui para a diminuição dos processos é a possibilidade de serem feitos acordos entre empregador e trabalhador, depois só é preciso levar para um juiz homologar. ;Isso significa menos ações sendo ajuizadas.; De acordo com Neiva, os tribunais receberam em torno de 4 mil acordos desse tipo, dos quais 85% foram homologados. ;Os que não foram podem ter sido por problemas formais na elaboração ou por resistência de juízes que não querem aplicar esse mecanismo, por acharem que é inconstitucional;, explica. Isso porque, nessa manobra, o trabalhador corre o risco de ter menos direitos do que o assegurado e depois não poder reclamar. ;Se tiver uma cláusula dizendo que, naquele acordo, serão quitados todos os direitos, o interessado pode até voltar à Justiça, mas o natural é que nada seja reconhecido a ele;, diz. Outro problema, alerta ele, é que muitas empresas não têm pessoas capacitadas para negociar esse tipo de acordo.
O que dizem centrais sindicais
Com bandeiras contra a reforma trabalhista desde o início, as centrais sindicais continuam criticando as mudanças. O presidente da União Sindical dos Trabalhadores (UST), Carlos Borges, porém, não sentiu as consequências da legislação. ;Não houve nenhum efeito prático por enquanto. Na verdade, as mudanças eram sob o argumento de que o trabalhador é que oneram, mas isso não é verdade. Tanto que a população continua a pagar pela crise;, queixa-se. Adilson Araújo, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), concorda.
;O Brasil acumula mais de 12% da população desempregada. Então, esse discurso cai por terra porque a reforma, na prática, não vem correspondendo às expectativas;, afirma ele, que tem muitas críticas à insegurança jurídica da regulamentação. ;A negociação se sobrepõe à lei. Isso dificulta as relações de trabalho, inclusive correndo o risco de perder tudo o que demorou tanto tempo para ser conquistado.; O trabalho intermitente e a presença de gestantes e lactantes em locais insalubres também preocupam Adilson. ;O governo disse que daria respostas, mas, até agora, não resolveu. Tem muitas inconstitucionalidades. Por isso, temos de seguir na resistência;, afirma.
Leia!
Reforma Trabalhista ; Comparação da CLT com a Lei n; 13.467/17 e a Medida Provisória n; 808/17: comentários e quadro comparativo
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O processo do trabalho e a Reforma Trabalhista ; as alterações introduzidas no processo do trabalho pela lei n; 13.467/2017
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A Reforma Trabalhista no Brasil ; com os comentários à Lei n; 13.467/2017
Autores: Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado
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* Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa