Caminho para o emprego inclusivo
Pessoas com deficiência e quaisquer outras que tenham tido dificuldades de aprendizagem no período escolar (por motivos como pobreza e desestrutura familiar) sofrem para se inserir no mercado de trabalho. Para mudar esse quadro, especialistas defendem investimentos no ensino básico e mudança na abordagem das escolas, que precisam se tornar acolhedoras
Um mercado de trabalho e uma sociedade inclusivos começam na escola. A conclusão é de especialistas que participaram do Colóquio Internacional Sesc-UFC, em Caucaia (CE), município na região metropolitana de Fortaleza, este mês. Professores e pesquisadores de Brasil, França, Canadá, Suíça e Itália discutiram ;inclusão social e diversidade na educação;. O evento, organizado pelo Serviço Social do Comércio do Ceará (Sesc-CE), em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC) e com a colaboração da Universidade Paris Descartes, reuniu cerca de 450 pessoas. ;A educação é a base de todo e qualquer desenvolvimento. Ela transforma vidas e contribui para formar uma sociedade mais justa. E, para isso, precisa ser inclusiva;, defende Maurício Cavalcante Filizola, presidente da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado do Ceará (Fecomércio-CE). Para que, lá na frente, seja possível se inserir com qualidade no mundo do emprego, é primordial dar acesso à educação ; mas não só isso: é preciso garantir que todos aprendam efetivamente.
;A pessoa que não tem boa formação terá muita dificuldade em exercer atividade profissional. Isso é regra, mas é mais cruel e excludente quando a gente pensa na pessoa com deficiência. É alguém que tem limitações impostas pela própria condição e passa a ter barreiras impostas pela formação deficitária. Assim, fica difícil que se torne um adulto autônomo, capaz de interagir no meio social e no trabalho;, analisa Rita Vieira, doutora em psicopedagogia pela Universidade Laval e pós-doutora em linguagem escrita e deficiência intelectual pela Universidade de Barcelona. ;Uma instituição de ensino eficiente ajuda pessoas com deficiência em relação à construção de autoestima positiva e ensina as demais crianças, sem deficiência, a conviverem com diferenças. A inclusão social começa na escola;, decreta ela, que é professora da UFC. ;Todo mundo é capaz de aprender e superar limitações. Um ambiente pedagógico acolhedor e que se transforme para trabalhar com todas as pessoas só ajuda;, comenta. Num país em que faltam a muitos colégios estruturas básicas, trata-se de um desafio ainda maior. É preciso, porém, parar de reclamar e partir para a ação.
;Há mais de 40 anos, discutimos a questão de a escola não estar pronta. Mas ela nunca estará pronta enquanto a pessoa com deficiência não estiver lá dentro. Os professores e os colégios aprenderão a lidar com isso à medida que interagirem com esses alunos e enfrentarem os desafios envolvidos nisso.; Para Rita Vieira, essa e outras carências só mudarão com recursos. ;A solução para tudo isso tem um único nome: investimento em educação;, alerta. ;Precisamos de escolas decentes e que respeitem a dignidade humana. Ninguém tem prazer de trabalhar ou de estudar num ambiente feio, com teto caindo, paredes sujas. O Brasil tem condições de mudar o jogo, só precisa priorizar. Outra necessidade é a escola de tempo integral porque, em metade de um dia, não dá para trabalhar tudo o que se precisa fazer pedagogicamente;, conclui. Com tantos problemas, o processo de aprendizado fracassa em muitos casos, o que resulta em altos índices de reprovação, defasagem idade-série e evasão ; conhecidos de longa data do país. Dados do Censo da Educação Básica de 2017, divulgados no início do mês, mostram que o Brasil tem falhado em trazer de volta para a escola os 1,5 milhão de jovens que abandonaram as salas de aula antes do tempo, quantidade que equivale a 15% do total de adolescentes de 15 a 17 anos.
Acolhimento
Grande dificuldade para a efetivação da integração em sala de aula é a formação de professores. ;No Brasil, em geral, os cursos de pedagogia abordam educação inclusiva apenas de modo superficial, em uma disciplina ou módulo com foco em conhecer as características de alunos com deficiência;, analisa Jean-Robert Poulin, doutor em ortopedagogia pela Universidade de Montreal. O problema é que inclusão no ambiente escolar não se trata apenas de atender ou promover acessibilidade para pessoas com deficiência. A fim de ser inclusiva, uma escola precisa promover condições de aprendizagem para todos os que a frequentam, inclusive alunos que apresentem algum tipo de dificuldade de aprendizagem ; seja por causa de alguma deficiência ,seja por qualquer outro fator desafiador a que um aluno pode estar submetido, como pobreza, racismo, estrutura familiar problemática. ;Na escola, não se deve dar atenção para ;quem mais precisa;, mas para todos. Colégios precisam ser comunidades abertas;, comenta Michel Chauvi;re, diretor emérito de pesquisa da Universidade Paris II.
Éric Plaisance, professor emérito da Universidade Paris Descartes, pós-doutor em sociologia, doutor em letras e educação, defende que a inclusão ocorre quando há acessibilidade, não apenas física, mas pedagógica, de modo que cada estudante consiga ter aprendizado efetivo. ;É preciso que a escola se adapte ao aluno e não o contrário;, ensina. ;E isso deve ocorrer levando em conta a heterogeneidade da classe. Se não houver mudanças na didática, voltaremos para o modelo de simples transmissão de conteúdo. E a adaptação não deve ser só para algumas pessoas, mas para cada uma e para todas;, concorda Lucia de Anna, professora de didática da Universidade de Roma. ;Ou seja, precisamos trabalhar em conjunto, mas olhando as especificidades.; Esse, porém, é o grande desafio. ;Como fazer isso se cada criança é diferente? É preciso adotar diversos modos de ensino dentro de uma mesma sala de aula;, afirma Éric Plaisance. Ele destaca ainda que só permitir o acesso não basta.
;Garantir a entrada de negros na universidade por meio de cotas (algo que o Brasil e os Estados Unidos adotaram) não acaba com a desigualdade. Muitas vezes, um aluno está na escola, mas é visto como visitante ou é excluído. Por isso, não é só uma questão física: importa o laço social;, aponta. ;A ideia não é só transmitir conteúdo para todos, mas observar diferença de nível e de ritmo dos alunos;, acrescenta François Gremion, doutor em educação e professor da Haute École Pédagogique, em Berna. ;Inclusão leva em conta ainda a pessoa no seio familiar, o ambiente no qual vive a criança. Não é só projeto pedagógico, mas projeto de vida;, completa Lucia de Anna. O desafio de conseguir fazer tudo isso, no entanto, é tão grande que, não raro, inclusão fica só na teoria. Nathalie Bélanger, doutora em educação pela Universidade Paris V e professora da Universidade de Ottawa, no Canadá, explica que, para se tornar realidade, ;o conceito precisa ser aplicado em todas as instâncias, refazendo projeto pedagógico, currículo, recursos, participação dos pais e da família.;
Falta adaptação
Segundo o Censo da Educação Básica, apenas 61,1% das creches têm banheiro adequado à educação infantil e apenas 33,9%, berçário. Na educação infantil, só 32,1% das escolas contam com banheiro adequado a alunos com deficiência ou mobilidade reduzida. No ensino fundamental, o percentual é de 39,9%. Mas só 29,8% têm espaços e vias acessíveis para cadeirantes. No ensino médio, as condições são um pouco melhores: 62,2% dos colégios têm banheiro para pessoas com deficiência.Condições para educação inclusiva
- Mescla heterogênea de diferentes perfis de alunos em sala de aula, em proporções naturais de acordo com o que existe na sociedade. Ou seja, metade da sala de aula não pode ter deficiência, a não ser que a população do local tenha essa quantidade de pessoas com necessidades especiais
- Sentimento de pertencimento ao grupo por parte de todos os alunos
- Aprendizagem simultânea, de modo que toda a classe aprenda ao mesmo tempo, embora existem objetivos individuais a serem alcançados
- O professor e o colégio devem ser preocupar tanto com a aprendizagem quanto com o desenvolvimento pessoal e social do aluno
- A instituição e os profissionais precisam acolher os estudantes, independentemente de sua condição, e fazer intervenções educativas adequadas
- Ter estratégias de ensino e gestão de classe e priorizar o desenvolvimento de competências
Fonte: Jean-Robert Poulin, doutor em ortopedagogia pela Universidade de Montreal
Problema mundial
Lidar com a diversidade não é uma dificuldade exclusivamente brasileira, como destacou Iêda Pires, membro da comissão organizadora do evento. ;É um desafio global;, comentou a pós-doutora em educação pela Universidade de Montreal. Ela trabalha com formulação de políticas públicas na Secretaria de Educação do Ceará e acredita que a solução para isso deve partir da formação de professores e de políticas públicas. Fernando Pires, pós-doutor em economia pela Universidade Paris XIII e professor da UFC, destacou, porém, que o caso do Brasil é mais grave. ;Vivemos num país e num continente em desenvolvimento;, justificou.Palavra da moda
Afinal, o que é inclusão? Especialistas em educação não entram em consenso quanto à resposta. No entanto, há um entendimento comum de que o termo é, muitas vezes, usado de forma errada, já que pode abarcar uma variedade de significados. ;É um termo polissêmico. Dá para falar em vários tipos de inclusão ; e não só da criança com deficiência ou necessidades especiais. Essa terminologia tem assumido, ao longo do tempo, diversas conotações;, observa Ieda Pires, integrante do grupo gestor da Rede da Primeira Infância do Ceará e do Fórum de Educação Infantil do Ceará. Antônimo de exclusão, cidadania, democracia, sociedade ideal são alguns termos que Michel Chauvi;re, doutor em sociologia, cita como praticamente equivalentes a inclusão. Na visão dele, trata-se de um conceito de questão política, jurídica, institucional, profissional e de qualidade. ;Digo que inclusão é também uma questão jurídica porque vivemos num estado democrático de direito. E direito não envolve só hierarquia e normas: existe uma dimensão positiva de liberdades fundamentais, como o direito ao trabalho, que é diferente de dar emprego.;
No entanto, essas garantias são, muitas vezes, descumpridas e terminam com pessoas processando o estado. ;Indenizações e compensações financeiras, porém, não são inclusão;, pondera. Professor emérito da Universidade Paris Descartes, pós-doutor em sociologia, doutor em letras e educação, Éric Plaisance observa que inclusão se tornou uma palavra da moda. ;Nos jornais, é possível ler matérias que falam em carnaval da inclusão, moda inclusiva; Há uma extensão sem limites do que o termo quer dizer;, critica. No campo pedagógico, o termo é usado, principalmente, para descrever necessidades educacionais de pessoas com deficiência. ;Primeiro, se falava em educação especial. Nos anos 1970, passou-se a usar o termo integração. Por fim, nos anos 2000, surgiu a educação inclusiva;, rememora. ;Acolhida e participação são palavras de ordem quando se fala em inclusão. Precisamos substituir acessibilidade e permanência por elas. Existe diferença entre fazer parte (integração) e participar (inclusão);, acrescenta Rinaldo Voltolini, doutor em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela Universidade de São Paulo (USP).
ENTREVISTA - CIDA RAMOS ;
Ana Paula Lisboa
"Sempre tive de arrombar portas"
Secretária de Desenvolvimento Humano da Paraíba, ela tem deficiência física e conta que nada veio fácil em sua vida
Maria Aparecida Ramos de Meneses, conhecida como Cida Ramos, é símbolo de superação entre pessoas com deficiência. Natural de Sapé (PB), filha de um caminhoneiro e de uma dona de casa, teve paralisia infantil aos 3 anos, motivo pelo qual usa muletas. Enfrentou desafios no seio da própria família, nos ambientes escolar, acadêmico e laboral e, com liderança nata, acabou se tornando referência em todos esses contextos. Aos 53 anos, é realizada tanto na vida pessoal quanto na profissional: casada há 30 anos, mãe de duas advogadas de 24 e de 25 anos, é secretária de Desenvolvimento Humano da Paraíba desde 2011 e professora da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Graduada e mestre em serviço social pela mesma universidade, fez doutorado na área na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Começou a se engajar politicamente ainda na adolescência. Em 2016, disputou a eleição para a prefeitura de João Pessoa e ficou em segundo lugar na disputa. No último carnaval, participou do bloco Portadores da Folia e discursou sobre a importância da presença de pessoas com deficiência em todos os espaços.
Como foi sua infância e como sua família encarou sua deficiência?
Meus pais tiveram 13 filhos, dos quais sobraram sete filhas. Quando eu era pequena, teve aquele surto de pólio na minha cidade, por isso há um grande número de pessoas com deficiência lá. Para a minha mãe, a carga de trabalho era pesada: ela me levava para fazer fisioterapia todos os dias. Minha avó teve papel fundamental na minha criação: me ensinou a não aceitar que ninguém me tornasse menor e me impulsionou a estudar. Na escola e entre minhas irmãs, sempre assumi posição de liderança.
A acessibilidade foi realidade durante sua vida escolar?
Que dificuldades enfrentou?
O primeiro problema não era a acessibilidade, era o transporte: era preciso que alguém me levasse. A escola tinha escada, era difícil de subir. Mas eu adorava ler e isso modificou minha vida. Estudar, para mim, era algo fantástico. Claro que houve dificuldades: os próprios profissionais não sabiam lidar com a presença de uma criança com deficiência, eu que forçava a inclusão. Quando a professora de artes organizou uma apresentação de teatro para o Dia das Mães, sugeriu que, em vez de participar, eu entregasse flores para a minha mãe. Não aceitei e subi ao palco como todo mundo. Eu sempre procurava uma posição para mim. Não sofri com preconceito de colegas porque meu comportamento forçava liderança e respeito. Sempre tive de arrombar portas.
A senhora se mudou para João Pessoa para fazer o ensino médio longe da família. Como foi esse processo?
Quando as filhas terminavam o primeiro grau, meus pais as mandavam para fazer o segundo na capital e, assim, ter mais chances de passar no vestibular. Quando chegou a minha vez, foi um problema. Diziam que eu não deveria ir, que seria muito difícil. Minha tia não queria que eu estudasse no mesmo colégio da filha dela. Os outros tios achavam que meus pais deviam comprar uma máquina de costura para mim e me deixar fazendo trabalhos manuais. Mais uma vez minha avó foi incisiva e determinou que eu viria como todas as outras irmãs. Então, vim. Mais uma vez, a escola não estava preparada para me receber e achei voz no movimento estudantil secundarista.
Por que fez serviço social?
Para lidar com pessoas e políticas públicas. Sempre achei que o acesso a políticas públicas, inclusive a educação, pode mudar as coisas. Quando entrei na UFPB (e andava a pé dois quarteirões e pegava dois ônibus para chegar lá), já fazia parte de lutas sociais, tinha descoberto essa cidadania, compreendido o que é o preconceito e continuei engajada. Eu me tornei presidente do Centro Acadêmico de Serviço Social e, depois, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Durante as eleições, a chapa contrária chegou a fazer charge, me desenhando como uma tartaruga. Mas ganhamos e fomos uma das chapas mais combativas de todos os tempos. Em 1984, a universidade estava em crise e o restaurante universitário fechou. Peguei minha bolsa e viajei para Brasília sozinha procurar o ministro da Educação, que, na época, era o Marco Maciel. Fui sem hotel nem nada reservado. Fiquei lá na frente do ministério até ser recebida e consegui o dinheiro para a universidade reabrir o restaurante. Foi um fato inusitado porque o reitor tinha falado com o ministro três vezes e não tinha conseguido.
A senhora enfrentou barreiras para ser professora?
Pessoas se perguntavam como eu poderia dar aulas ;daquele jeito;, usando muletas. Quando fui fazer doutorado no Rio de Janeiro, houve colegas que diziam que eu não conseguiria sair da Paraíba para isso. Foram os mesmos comentários que ouvi quando me casei com uma pessoa que não é deficiente e quando engravidei. Na UFPB, não havia rampas, banheiros adaptados... A reitoria tinha uma escada enorme e, muitas vezes, a reunião era no último andar. Foi preciso muita luta para, finalmente, colocarem um elevador, em 2010, sendo que dou aulas lá desde 1992.
Como a senhora avalia as políticas públicas de inclusão?
A gente avançou muito no sentido de fazer com que a pessoa com deficiência seja protagonista da própria história. Antes a gente via muito a família indo atrás de direitos, alguém sempre falou por nós. Isso tem mudado. Mas falta muita coisa. Até para criar medidas de acessibilidade, é preciso que uma pessoa com deficiência participe: para um cadeirante ou quem anda de muleta, como eu, às vezes, uma rampa muito longa é muito problemática. Então é preciso que arquitetos escutem mais essa população, assim como todos os outros setores da sociedade. A sociedade, o estado, o país que é deficiente porque não é preparado para que todos os seres humanos vivam plenamente. Uma sociedade inclusiva começa no poder público, garantindo direito de se alimentar; de sair de casa; de ir à escola; de ter transporte para chegar lá; e, chegando lá, de ter a atenção especializada necessária para que o aprendizado seja possível. Isso é fundamental porque a escola é uma política pública que possibilita acesso a outras políticas públicas.
A falta de formação e as dificuldades no processo de aprendizagem impedem que mais pessoas com deficiência cheguem ao mercado de trabalho?
O grande problema é falta de vontade de incluir essas pessoas e ter respeito. Muitas empresas dizem que abrem vagas por cotas e não acham pessoas para preencher. De fato, faltam as duas coisas: abertura e formação. Quantos talentos não têm sido desperdiçados?
Por que não é raro que, no caso de um filho ter deficiência, a própria família vire as costas?
A família está dentro de um contexto social de uma sociedade que rejeita. Uma mãe sempre almeja que o filho seja mais do que ela foi. Quando vem com deficiência, a primeira reação é ter um susto, é duro porque sabe que a própria sociedade não tem estrutura para amparar, a sensação é de que será um filho eterno ; mas, se a pessoa for estimulada desde cedo, vai longe. A pessoa com deficiência é um ser humano e todo ser humano tem capacidade ilimitada. Você nunca pode dizer a um ser humano qual é o limite dele. O problema da pessoa com deficiência é que o tempo inteiro a sociedade aponta a limitação dela.
Que resultados a senhora tem alcançado como secretária de Desenvolvimento Humano?
Temos feito muito esforço em prol do registro e do laudo médico de pessoas com deficiência. Também temos atuado fortemente na profissionalização e no acesso a emprego e renda. Na Paraíba, 27,7% da população é deficiente, são 700 mil pessoas.
Socialização e trabalho
Equipados com jalecos brancos, máscaras e luvas, 10 pessoas se debruçam sobre mesas para fazer higienização e recuperação de pilhas e mais pilhas de livros e arquivos no Centro de Informação e Biblioteca em Educação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Cibec/Inep). O trabalho é demorado, exige paciência, delicadeza e cuidado ao lidar com equipamentos, às vezes, em altas temperaturas. Os itens mais antigos do acervo superam até mesmo a idade do próprio Inep, que completou 80 anos em 2017. Os trabalhadores do local têm alto desempenho: o grupo chega a higienizar até 40 caixas de documentos e recuperar 10 livros por dia. Somente com um olhar mais atento se descobre que todos os profissionais que ali atuam têm algum tipo de deficiência intelectual e conseguiram o emprego por intermédio da Apae-DF (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais do Distrito Federal).
A mediação da entidade é importante porque essa parcela da população enfrenta fortes dificuldades para se inserir no mercado de trabalho ; por diversos fatores, incluindo preconceito, falta de adaptação das empresas para lidar com perfis diferentes e lacunas da educação básica. O período escolar, importantíssimo para trabalhadores de qualquer ramo, apresenta desafios ainda maiores para pessoas com algum tipo de dificuldade de aprendizagem, comunicação ou locomoção: falta de atenção individualizada e acessibilidade, por exemplo. Por isso, mesmo após passar anos no colégio, há quem saia sem aprender o que deveria. Clayton Costa, 23 anos, é exemplo disso. Ele trabalha na biblioteca do Inep há cinco anos. ;Eu sou da equipe de reparos. Conserto livro rasgado, com capa solta; A gente usa luva e máscara porque muitos têm poeira, bicho, mofo;, explica. Ele foi treinado para a função, em que faz jus a salário de R$ 1,3 mil, por meio de curso com duração de cerca de um ano ministrado na Universidade de Brasília (UnB).
;O que eu mais gosto é de mexer com capa, pegar uma que está solta e rasgada e refazer;, afirma ele, cujo primeiro emprego foi como lavador de pratos num restaurante, posição que conseguiu também com o apoio da associação. Clayton permaneceu na escola até os 15 anos, finalizando a 4; série do ensino fundamental na rede pública do DF, mas teve alfabetização incompleta: lê pouco e não consegue escrever sozinho. ;Só copiando do quadro;, conta. ;Eu gostava de ir à escola, tinha muitos amigos, mas não sei por que não consegui aprender direito. Não cheguei a reprovar: foram me passando de série para eu não ficar muito atrasado. Foi assim que eu fui parar na 4;.; A atuação da associação foi importante para ajudá-lo a se inserir em empregos em que os problemas de aprendizado não façam diferença. ;Se não fosse a Apae, eu não estaria trabalhando;, percebe Clayton, que mora no Instituto Dom Orione, no Lago Sul. Este é o quarto abrigo da trajetória de vida dele.
;Minha mãe me deixou na rua, na W3 Norte, quando eu tinha 7 anos. Depois fui adotado, mas não me quiseram mais e voltei para o abrigo;, lembra. As instrutoras da Apae Dalva Rodrigues e Marilene Saraiva, pedagogas, admiram a força de vontade, o caráter e a dedicação do jovem, que superou muitas dificuldades. ;Ele teria tudo para ir para o lado errado da vida, mas não foi. É muito responsável e concentrado;, elogia Marilene. ;O trabalho é de suma importância para pessoas como o Clayton se sentirem úteis e valorizadas. É uma forma de inclusão, porque a sociedade é bem preconceituosa e o mercado restringe muito;, observa. No tempo livre, Clayton participa de um grupo de escoteiros em Taguatinga, cuida dos cães e gatos que moram com ele e acessa a internet. Para o futuro, planeja voltar a estudar, casar e ter filhos. (APL)
Estude!
Estão abertas as inscrições para a 11; turma do curso de especialização em educação inclusiva da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Com carga horária de 480 horas, a formação tem 18 meses de duração. As inscrições custam R$ 70 e a matrícula, R$ 250. Investimento: 18 parcelas de R$ 250. Informações: (85) 3101-9866 / 9871 / www.ced.uece.br / ced@uece.br
*A jornalista viajou a convite do Sesc-CE