Jornal Correio Braziliense

Trabalho e Formacao

Redação pede soluções para intolerância

Candidatos do Enem deste ano precisaram propor caminhos para que manifestações de preconceito contra as religiões sejam coibidas. No DF, 31,8% dos inscritos não compareceram às provas

A abstenção no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no Distrito Federal foi de 31,8%, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). O índice é maior que a média nacional, de 30%. O destaque do segundo dia de provas, aplicadas ontem, foi a redação. Assim que os candidatos começaram as provas, às 13h30 de ontem, o Inep divulgou, na internet, o assunto que nortearia os textos: ;Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil;. Em até 30 linhas, era preciso discorrer sobre a questão e oferecer soluções para um problema que se mostra atual. Neste ano, o DF criou uma delegacia para cuidar de crimes desse tipo, depois que vários terreiros de candomblé foram incendiados.

[SAIBAMAIS]O tema foi considerado excelente pelo coordenador de redação do colégio Sigma, Eli Guimarães, que tinha cobrado o assunto em uma avaliação recente dos alunos, em outubro. ;Passamos exatamente o mesmo tema para redação, pois já considerávamos como um dos cinco mais prováveis;, relatou. Para ele, há uma grande necessidade de discutir a dimensão religiosa do preconceito. ;Quando falamos de intolerância no Brasil, ficamos muito focados na perspectiva do racismo ou da discriminação com pobres. Falamos pouco sobre o lado da religião;, argumentou. Por ser um assunto polêmico, a intolerância religiosa nem sempre é abordada nas salas de aula. ;Nem todas as escolas têm a prática de levar um tema como esse para debate, porque não é muito fácil;, detalhou.

;Era esperado que, em algum momento, esse tema caísse, especialmente por conta do crescimento do Estado Islâmico, maior exemplo de intolerância religiosa atual;, afirmou o professor de redação Flávio Melo, do Sistema Ari de Sá. Em relação à realidade brasileira, foco do Enem, ele lembra que manifestações de intolerância acontecem há séculos, principalmente contra religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. ;Elas estão vinculadas a grupos com pouca representatividade e que, historicamente, não gozam de prestígio social, diferentemente do cristianismo. Se o aluno não tiver essa visão muito clara, pode ter tido grandes dificuldades;, avaliou.

No ano passado, uma menina de 11 anos foi atingida por uma pedra na cabeça por vestir roupas de candomblé. O incidente aconteceu em junho no Rio de Janeiro. Nos meses seguintes, no Distrito Federal e no Entorno, houve quatro ataques a terreiros de candomblé. A situação foi tão alarmante que, em janeiro deste ano, o governo do DF criou uma delegacia especializada para investigar crimes de intolerância religiosa. ;A maior inclusão desse tipo de delegacias poderia ser citada pelos alunos como uma solução para o problema;, acrescentou Flávio Melo.


Critérios

Os estudantes tiveram cinco horas e meia para responder às 90 questões sobre linguagens e matemática e escrever a redação ontem, segundo dia de provas do Enem. Os especialistas também ressaltam que os candidatos precisaram ficar atentos aos aspectos a serem avaliados pelos corretores no texto. ;A argumentação não deve ser baseada na fé, mas em fatos, leis e princípios laicos, ou na ausência desses pontos. Quem for muito engajado na religião e não conseguir separar as coisas ao falar sobre o direito de seguir qualquer credo vai ter um texto incoerente;, observou o professor do Sistema Ari de Sá.

O estudante Gabriel Costa, 17 anos, é católico, e disse que não teve problemas para escrever o texto, apesar de esperar por temas ligados à tecnologia ou legados das Olimpíadas. ;Eu participo de um grupo na minha igreja e sempre discutimos a intolerância religiosa. Eu não puxei para o lado católico e me lembrei do fato de o Brasil ser laico e não existir uma religião mais certa que a outra;, defendeu. O aluno, que pretende cursar ciência da computação ou engenharia civil, fez um balanço dos dois dias e acredita ter ido bem. ;Se não me saí bem em química, biologia, acredito que compensei em matemática e a redação;, garantiu.

Entre as sugestões que poderiam ser apresentadas no fim da dissertação, o professor Flávio Melo cita maior publicidade dos meios de denúncia. ;Muita gente não sabe que o disque 100, do Ministério Público, recebe denúncias de intolerância religiosa;, comentou. Além disso, ele acredita que ganhou pontos quem argumentou que é preciso que as leis brasileiras sejam mais específicas. ;Na prática, a intolerância é tratada de forma genérica, como crime de ódio. Não é tipificado, como ocorre com o racismo.;

Segundo ele, também é importante, nas redações do Enem, que o candidato tenha propostas que incluam a sociedade, e não apenas o governo. Campanhas públicas de combate à intolerância religiosa ou incentivos a grupos defensores de direitos humanos, para que cobrem medidas do Estado, provavelmente serão vistas como boas sugestões. Ele lembra, ainda, que 60% da redação leva em conta aspectos como argumentação, criatividade e qualidade do texto, independentemente de o candidato escrever bem ou mal. ;Ou seja, o Enem dá mais importância a esses aspectos do que apenas ao domínio da língua escrita;, disse Flávio Melo.

Bons de palpite

Antes de cruzar o portão para fazer a prova, a estudante Natália Maria Santos Melo, 19, acertou o palpite sobre o tema da redação. ;Eu apostei com meus amigos que seria intolerância religiosa, porque teve muita ocorrência sobre isso este ano;, frisou. Além da tranquilidade de estar preparada para a redação, Natália ganhou uma cerveja no bolão dos amigos. ;Discutimos sobre o assunto, cada um disse o que achava que cairia. O prêmio é um litro de cerveja no bar, depois da prova;, destacou. O estudante Igor Alves, 18, também acertou o tema da redação. ;Aposto que vai ser intolerância religiosa;, disse, certeiro, enquanto conversava com os amigos pouco antes de entrar no local de prova.

Confiança abalada no Cemab


Os candidatos que estavam inscritos para fazer a prova do Enem no Centro de Ensino Médio Ave Branca (Cemab) e que assinaram a lista de presença no primeiro dia de avaliação, no último sábado, precisaram voltar para fazer a segunda parte da avaliação ontem. Por causa de um erro de comunicação do Inep, no sábado, todos os inscritos receberam mensagens avisando que, devido à ocupação da escola, o exame não seria aplicado na instituição. Entretanto, alguns estudantes foram ao local e encontraram as salas preparadas para recebê-los. Esse foi o caso da aluna Eva Carla dos Reis, 22 anos. A estudante recebeu uma mensagem no celular, às 11h, duas horas antes do início da prova, e ficou intrigada. ;Eu não acreditei. Eu sabia que a escola estava desocupada e pensei que poderia ter sido ocupada novamente, mas não achei nada na internet;. Ela acrescentou: ;Eu voltei com a confiança abalada, porque toda essa confusão gera um estresse.; Os alunos que perderam a prova poderão respondê-la em 3 e 4 de dezembro.

Colaborou Alessandra Modzeleski