Jornal Correio Braziliense

Trabalho e Formacao

Mães que trabalham

Cada vez mais, a sociedade passa a entender que cuidar da família e da casa não deve ser uma atribuição exclusivamente feminina. No entanto, as trabalhadoras com filhos ainda enfrentam desafios no mundo corporativo

Segundo levantamento do instituto de pesquisas internacionais Ipsos Mori, o Brasil foi o país do G20 em que ser mãe apresentou menos relevância como um desafio para a trajetória profissional: 74% das mulheres daqui estão confiantes de que é possível ter uma família sem afetar a carreira. Economista especializada em gênero, Tânia Fontenele vê nisso algo positivo.
;Antes, muitas deixavam de se inserir no mercado por causa da questão familiar. O percentual mostra que elas estão gerenciando melhor essa questão e priorizando a carreira, independentemente dos filhos;, comenta. Ela acredita que o avanço se deve ao fato de, aos poucos, o sistema de escola e creche ter melhorado. Também contribuiu a disseminação da consciência de que cuidar dos filhos não é uma missão exclusiva da mãe, pois também cabe ao pai.
Para Talita Frisoli, coach de mães na empresa Posture Coach, mais pessoas passaram a ter essa noção, mas isso ainda é insuficiente. ;Existe uma ação das feministas muito forte em relação à divisão de tarefas, mas vejo também uma mudança por parte das mulheres que não têm princípios feministas: elas entendem que precisam dar conta da casa sozinhas e de trabalhar fora. É o que muitas querem, inclusive. Há certa mudança de pensamento, mas ainda temos muito a avançar com relação a compartilhamento de tarefas;, analisa a consultora. Para isso, é necessário maiores esforços e iniciativas que busquem a equidade de gênero. ;É uma questão da comunidade como um todo: precisamos de políticas públicas, iniciativa por parte das empresas e das próprias mulheres;, diz a coach.
Desafios
Tânia Fontenele, mestre em psicologia social e do trabalho pela Universidade de Brasília (UnB), ressalta que as dificuldades de conciliar maternidade e carreira são muitas. ;As trabalhadoras pagam um preço alto ; especialmente as que são provedoras da casa e não têm com quem compartilhar o cuidado com os filhos e a casa. Muitas adoecem pelo excesso de trabalho.; Vânia Silva, 32 anos, sabe o peso da carga de ser ;mãe solo;. Ela é auxiliar de odontologia e tem quatro filhos, de 16, 12, 8 e 3 anos. Vânia se separou do pai das crianças no começo do ano e, como o ex-marido não mora mais em Brasília, as atribuições ficaram restritas a ela. ;Ele sempre foi de ajudar muito. Mesmo assim, com a licença-maternidade de quatro meses, no começo, é muito difícil. Quando tive que voltar ao trabalho, eles acabaram parando de mamar no peito;, conta.
[SAIBAMAIS]A auxiliar de odontologia acredita que as mulheres sempre têm mais dificuldades para crescer na carreira por causa da tripla jornada que envolve carreira; cuidados familiares e domésticos; e vida pessoal. ;Depois do expediente, a gente tem que se dedicar aos filhos e à casa. Enquanto os homens têm mais tempo para investir no trabalho e fazer algum curso, por exemplo;, compara. ;Minha sogra chegou a me dizer que, para ganhar pouco, não compensa trabalhar fora, mas sempre fiz questão de ter minha carreira. Meu primeiro emprego foi aos 14 anos;, conta ela, que ainda encontra tempo para fazer academia e cursos de atualização e sonha em fazer faculdade de enfermagem. Vânia revela que a maternidade demanda também abertura dos empregadores. ;Às vezes, é difícil, pois uma reunião de colégio pode se chocar com o horário de uma cirurgia na clínica. Por sorte, estou na mesma empresa há cinco anos, e meus chefes são bastante flexíveis.;
Gestão do tempo
Geni da Silva Souza de Araújo, 30 anos, é vigilante e cumpre um turno de 12 horas dia sim, dia não. Mãe de três filhos ; Lauana, 10, Miguel, 5 anos, e César Augusto, 4 meses ;, ela tem com quem compartilhar tarefas. ;Meu marido é parceirão. É ele quem faz a comida, por exemplo;, diz. ;Com minha escala de horário, tento me organizar para fazer qualquer atividade relacionada às crianças durante minha folga. Se houver alguma eventualidade, tenho um chefe muito bom que entende;, revela.
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No entanto, a flexibilidade ainda costuma ser ausente na maioria das empresas. ;Os horários tendem a ser fixos e com baixa tolerância para ausências;, observa Talita Frisoli, coach de mães. Outras dificuldades incluem questões inerentes à maternidade. ;A partir do momento em que a mulher se torna mãe, muita coisa deixa de fazer sentido, como trabalhar 14 horas por dia;, diz. ;Por fim, tem a questão da culpa materna, de sentir que precisa trabalhar, mas não querer terceirizar a educação.;
Todos esses desafios fazem com que parte das mulheres abandone a carreira. É o caso de Carmen Regina Pinto Barreto, 52, ex-digitadora do Itamaraty e mãe de filhos de 30, 21, 19 e 14. Ela parou de trabalhar em 1999 devido à dificuldade que tinha de arranjar empregada. Depois que os filhos cresceram, voltou a procurar emprego, mas não conseguiu. ;Acho que foi por causa da idade e também por causa do horário. Queriam alguém que trabalhasse sábados, domingos e feriados;, relata ela, que não aceitou a exigência. Embora financeiramente faça falta, Carmen alega que a educação dada aos filhos compensou o sacrifício. Atualmente, ela produz artigos caseiros, como sabonetes, velas e biscoitos, como hobbie e forma de ganhar uma grana extra.
Organização é tudo
A podóloga Ray Ibiapina, 39 anos, dominou a arte de administrar os deveres profissionais e os cuidados com os sete filhos: Felipe, 23, Júnio, 22, Joyce, 19, Eduardo, 16, Raissa, 14, Camila, 11, e Daniel, 7 anos. Antes de abrir o próprio negócio, a clínica especializada em podologia Doutor dos Pés na 313 Norte, com a qual conseguiu maior flexibilidade de horário, enfrentou uma longa jornada. Foram muitos revezes, desde horários que não comportavam a rotina familiar a comentários desagradáveis de colegas de trabalho sobre a quantidade de filhos. Ray tentou diversas manobras, como morar perto do trabalho e até deixar de trabalhar por um tempo. No entanto, percebeu que se sentia mais realizada inserida no mundo profissional. ;Gosto do contato com o público e não ia conseguir ficar sem trabalhar. Claro que tem o lado da necessidade, mas também tem o da satisfação pessoal. O trabalho é muito positivo: faz bem para a autoestima e os aspectos físico e psicológico;, afirma.
Há bastante flexibilidade com relação aos horários em que há clientes na clínica. ;Foi um dos motivos pelos quais eu quis empreender. Às vezes, eu preparo café da manhã antes de trabalhar. Às vezes, não, mas eles se viram. Não há rotina;, revela. Até conquistar esse estágio, teve que superar barreiras na família: o marido não queria que Ray trabalhasse, mas, hoje, divide os afazeres com ela. ;Agora, muitas vezes, ele faz almoço e traz para mim. Com compartilhamento de tarefas, tudo fica bem melhor; mas acho que muita coisa ainda pesa mais para a mãe.;
Para a coach de mães Talita Frisoli, equilíbrio de papéis e estratégias de organização e produtividade são fundamentais para que seja possível conciliar tarefas e apaziguar a sobrecarga. ;O segredo é equilibrar os vários papéis: mãe, empresária, profissional, esposa, amiga, irmã. Primeiro, a mulher tem que fazer uma escolha e saber o que quer, com quem ela pode contar e, a partir daí, estipular uma agenda. É necessário montar uma rotina, verificar quais atividades são importantes e quais podem ser eliminadas ou delegadas para outras pessoas;, recomenda a consultora.
Pesquisa
Elas estão desmotivadas
Num contexto de desigualdade e de uma carga de atividades domésticas que pesa mais para a mulher, talvez não seja de se estranhar o fato de elas serem a parcela de trabalhadores mais desanimada. Pesquisa feita com 1.659 pessoas pelo site Vagas.com e finalizada em outubro mostra que 41% das profissionais estão desmotivadas ou extremamente desmotivadas. Entre os homens, 40% estão motivados ou extremamente motivados.
Rafael Urbano, analista de negócios do Vagas.com, observa que entre os motivos para o descontentamento geral da mão de obra estão sobrecarga de trabalho, desequilíbrio entre vida profissional e pessoal, arrocho salarial e sentimento de insegurança por conta da crise. ;Uma hipótese é que, no caso da mulher, além desses fatores, acaba pesando o fato de que, depois que ela vai para casa, tem que cuidar do aspecto familiar;, percebe.
;Assédio e discriminação são outras barreiras que elas acabam vivenciando, pois há ainda resquícios de machismo na sociedade que podem interferir na produtividade e na motivação;, comenta.
Coach de carreira, professora de gestão de pessoas, comportamento organizacional e outras disciplinas em MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV), Daniela do Lago observa que motivação tem a ver com uma necessidade que impulsione a pessoa ; o que é indiferente a gênero.
;No entanto, acredito que a mulher fica mais desmotivada por ter mais papéis a desempenhar. O foco do homem é o trabalho e, por mais que seja considerado um superpai ou marido, deixa a responsabilidade pela casa para a esposa. Acredito que as trabalhadoras se sentem cansadas e atribuem isso ao trabalho;, cogita.
Ela defende que as próprias mulheres se julguem e se critiquem menos e, em segundo lugar, estabeleçam prioridades, pois não dá para ter tudo ao mesmo tempo. ;Se você entra em todas as brigas, isso te desgasta muito. Saiba as brigas que você compra e o nível que dedicará a elas;, diz.
;Estamos a cada dia derrubando obstáculos, mas, por enquanto, não chegamos lá. O jogo no trabalho ainda é masculino ; eles têm mais liberdade e oportunidades. A mulher tem que lutar mais para alcançar coisas especiais, é mais difícil. Não precisamos aceitar essa situação, mas entender e lutar como mulheres.;
Para acabar com o estigma
Mulheres que criam os filhos sozinhas têm sido chamadas de ;mães solo;, termo criado em substituição a ;mães solteiras;, numa tentativa de eliminar o teor pejorativo. ;Afinal, mãe não é estado civil! É um movimento recente;, ressalta a coach de mães Talita Frisoli. ;Esse título abrange solteiras, viúvas, divorciadas, mulheres que adotaram ou fizeram inseminação artificial sozinhas;, explica. O termo é defendido por personalidades da internet, como Helen Ramos, youtuber brasiliense conhecida como Hel Mother.