A companhia Carroça de Mamulengos é um exemplo de profissionalismo: sobreviveu à separação do casal fundador para continuar a todo vapor com apresentações em diversas partes do Brasil. ;Criamos nossos filhos nos palcos. Independentemente da separação, a companhia continua junta;, conta Schirley França, uma das fundadoras. O grupo reúne um público fiel e, quando que vem à capital federal, garante teatro lotado. No entanto, trabalhar em família nem sempre é sinônimo de sucesso na profissão. A parceria que existia no espaço cultural Mapati, outra instituição artística em Brasília, acabou há cinco anos, quando Tereza Padilha, antes acompanhada do ex-marido e da filha, passou a tocar o negócio sozinha para manter a harmonia da família. ;Deu certo por um tempo, mas, depois, fez a relação familiar se deteriorar. Cada um foi seguir seu próprio caminho;, conta.
;A arte em família é muito boa quando você entende que é preciso aprender todas as áreas, como produção, administração, vendas. Um ator não pode se limitar a atuar. O ego e a vaidade de cada um trazem muitos problemas para a convivência familiar. Fazer teatro aos berros e com brigas não dá;, comenta a professora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), Sonia Paiva. Ela explica que o negócio tem de ser visto como economia criativa e que os grupos precisam estudar a forma de ganhar dinheiro com isso.
Empreendedores
Para que os negócios de família ; em arte ou em qualquer outro ramo ; deem certo, é preciso levar o empreendimento a sério, com foco na gestão. É o que acredita Fábio Zugman, mestre em administração e autor de livros sobre empreendedorismo e criatividade. Artistas não podem esquecer que também são empresários e precisam estabelecer metas, além de planejamento e organização para serem bem-sucedidos.
;O espetáculo precisa ser algo original. Até na rua, se a apresentação é batida, as gorjetas são menores;, explica Zugman. Companhias artísticas, muitas vezes, não estabelecem cargos, mas é importante ter uma função diferenciada. Apesar de todos se ajudarem, é bom segmentar para não dar briga. ;A Disney, por exemplo, foi fundada por irmãos. O Walt Disney desenhava e o Roy Disney administrava. Eles somavam habilidades complementares.;
O trabalho em família, porém, não apresenta apenas aspectos positivos (veja quadro). ;Os irmãos Disney brigavam muito, mas como o problema era em família, eram obrigados a resolver;, pondera Zugman. Para diferenciar o papel de membro da família e de integrante da companhia, o autor recomenda uma postura profissional. ;Nos ensaios, por exemplo, uma opção é não usar títulos como ;pai; e ;mãe; para não misturar trabalho com relacionamento;, sugere.
Segundo o professor de administração Helcio Miziara Filho, saber controlar problemas e manter a transparência entre os familiares minimiza incompatibilidades. ;O melhor remédio para a saúde do negócio é o diálogo. Conversando, falhas são diagnosticadas e conflitos são resolvidos;, avalia. O consultor em carreiras Julio Sergio Cardozo analisa que muitos grupos artísticos se separam e as desavenças podem deixar cicatrizes. ;A Banda The Jackson 5 acabou e o Michael Jackson foi trabalhar sozinho. O Trio Ternura da Jovem Guarda também não funcionou. É preciso analisar se vale a pena trabalhar em família, sob o risco de destruir as relações sentimentais.;
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Gerações de artistas
A Carroça de Mamulengos é uma companhia itinerante de teatro e de música que surgiu em Brasília em 1977, fundada por Carlos Gomide, 57 anos, acompanhado de Schirley França, 49. O casal está divorciado há sete anos, mas continua a trabalhar junto com os oito filhos, Maria, 29, Antonio, 27, Francisco, 24, João, 22, Pedro e Matheus, 18, Isabel e Luzia, 15; as duas netas, Iara, 2, e Ana, 4 meses; além da nora, do genro e de amigos. Com carinho e respeito, o grupo dificilmente briga. ;É um privilégio trabalhar com os filhos. Cada um se desenvolve e assume uma função;, diz Schriley. Ninguém da família pensa em seguir outro caminho, como conta Maria. ;Somos diferentes de quem cresce e escolhe uma profissão. Eu nasci escolhida. Passamos por tempos de vacas magras e gordas com renda de espetáculos e patrocínios, mas trabalhar com as pessoas que mais amo é só alegria;, diz Maria.
Talento de pai para filho
Para encontrar Júlio Macedo, 48 anos, que dá vida ao palhaço Mandioca Frita, basta ir ao Parque da Cidade, onde ele diverte as crianças. Juntam-se a ele os palhaços interpretados por seus filhos: Macaxeira, Aipim, Xodó, Foli Foli e Fulêro. Júlia, 20, Davi, 17, Luiza, 12, Luana, 9, e Luis, 3, aprendem com o pai a arte de fazer rir. Em sinaleiros, festas infantis e exposições, eles passam o chapéu. Cada filho ganha o próprio dinheiro e contribui com as contas da casa em que moram juntos, em Santa Maria. ;A arte é a melhor herança que posso deixar. Os caminhos que me levaram a ter um retorno financeiro e de amizade deixo para eles;, explica Júlio. Trabalhar em família tem um valor especial para Júlio, que cresceu na rua até se juntar à Carroça de Mamulengos, em que trabalhou durante alguns anos. O exemplo é seguido por Júlia: ;Os filhos do meu pai já aprendem a andar andando de perna de pau. É uma brincadeira que, depois, vira trabalho;.
Tribo de andarilhos
Em 1996, Eliana Carneiro, 51 anos, fundou a companhia itinerante de teatro e de dança Os Buriti. Os filhos Naira, 24, e Guian, 14, sobem ao palco desde a infância. ;Estar no palco com os filhos é uma benção porque o amor é muito grande;, conta Eliana. Integram o grupo também o sobrinho de Eliana, Nilo Santos, o genro Daniel Pitanga, e os músicos Jorge Brasil, André Togni e Carlos Frasão. Todos se sentem da mesma família ou da mesma tribo, que dá nome ao grupo. O respeito mútuo é o segredo para dar certo. ;Confiamos um no outro e temos uma relação íntima, mas profissional;, explica Naira. O lucro não é o foco do grupo. ;Não temos luxos, mas pagamos nossas contas. Prefiro ter um trabalho bonito a possuir bens. Além disso, arte e convivência familiar são riquezas que não têm preço;, finaliza Eliana.
Parceria de 22 anos
Casados desde 1991, Armando Villardo, 50 anos, e Alcinéia Paz, que não revela a idade, são donos da companhia teatral Néia e Nando. Eles vendiam brigadeiros até abrirem um bufê, que acabou falindo. ;Investimos na casa de festas para ganhar dinheiro e não deu certo. Resolvemos, então, fazer o que de fato gostamos: teatro. O sucesso foi consequência disso;, explica Nando. Hoje, a empresa de teatro conta com 63 funcionários, entre atores e técnicos. As apresentações ocorrem todo fim de semana em shoppings e no teatro da Escola Parque 307/308 Sul. A convivência entre marido e mulher não é problema. ;É bom estar com o Nando 24 horas por dia porque somos parceiros e amigos. Temos sintonia;, relata Néia. Eles vivem com conforto. ;Vivemos bem, mas o que paga as contas mesmo é o curso de teatro. Os espetáculos são investimentos, pelo menos no começo;, diz Nando.
Caminhos separados
Tereza Padilha, 57 anos, comanda a companhia teatral e o espaço cultural Mapati, presentes em Brasília há 20 anos. Até cinco anos atrás, a artista contava com a colaboração do ex-marido Marcos Martins, 61, da filha e advogada Patrícia Padilha, 38, e da neta, a estudante Aline Padilha, 17. Apesar do afeto envolvido, discordâncias sobre como gerir o negócio levaram a um rompimento. ;Foi muito positivo trabalhar em família, mas nossas ideias não batiam e cada um foi seguir um caminho. Levávamos problemas para casa e passávamos o tempo livre falando do teatro. Isso mina o relacionamento porque não há mais vida pessoal;, conta. Depois de trocar a equipe, Tereza percebeu mudanças. ;Em família, você tem confiança nos outros e não controla. Fiquei com medo de trabalhar sozinha, mas o negócio está indo bem. Vejo que a equipe tem muito mais profissionalismo e responsabilidade que antes.;
Prós e contras
Vantagens
; Há mais confiança nas pessoas
; Os filhos podem trabalhar com arte desde cedo e adquirir melhores habilidades
; Talentos complementares dos familiares contribuem para o sucesso
; A renda é mantida com a família
Desvantagens
; A hierarquia doméstica costuma ser mantida no trabalho
; Despreocupação com honestidade abre brechas para atos incorretos
; É comum trazer problemas do trabalho para casa e vice-versa
; Conflitos e mágoas são levados para o lado pessoal
; O tratamento desigual dado a parentes e não parentes pode gerar desmotivação
; A cobrança tende a ser menor, o que pode levar a um desempenho medíocre
; Como não é fácil demitir um familiar, o esforço para resolver conflitos é maior
; Há tendência de competição e comparações, especialmente entre irmãos
*Fontes: Helcio Miziara Filho, Julio Sergio Cardozo e Fábio Zugman.