Se você já tem a impressão de que há mais carros do que pessoas nas ruas brasileiras, prepare-se para o futuro. A tendência é que muito mais latas sobre rodas passem a compor o cenário urbano e criem episódios ainda mais graves do que o registrado na cidade de São Paulo no último 23 de maio. Naquela sexta-feira, às 19h, a metrópole brasileira teve o maior engarrafamento de sua história, com uma fila de 344km de veículos parados.
Para se ter uma ideia da tendência de inchaço no tráfego nacional, o Brasil fechou 2012 com cerca de 76 milhões de veículos, mais do dobro do número registrado 11 anos antes, quando havia 34,9 milhões de carros nas ruas. Hoje, há um veículo para cada quatro brasileiros. E a forma como as cidades brasileiras têm articulado seus sistemas de transporte não consegue acompanhar esse crescimento. Especialistas observam que o problema de mobilidade urbana é acompanhado de danos ambientais, econômicos e sociais, refletindo também em aspectos comportamentais dos brasileiros.
Não há dados sobre a qualidade do ar em todos os estados, mas uma pesquisa divulgada em 2012 pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade estima que 4,6 mil pessoas morreram no estado de São Paulo no ano anterior devido ao fluxo de veículos. Não vítimas de batidas ou atropelamentos, mas de problemas causados pela poluição veicular, que tira, em média, quase dois anos de vida dos paulistas.
É verdade que os carros têm se tornado menos danosos ao meio ambiente, e a emissão de monóxido de carbono diminuiu 52,1% entre 2002 e 2012, como demonstra o Inventário Nacional de Emissões Atmosféricas 2013. Porém, muitos automóveis nas ruas ainda significa poluição. ;O carro novo polui menos, mas continua poluindo. O excesso é um problema;, aponta Luiz Maranhão, subsecretário de Saúde Ambiental da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Distrito Federal (Semarh). ;O Distrito Federal ainda tem sorte em relação a lugares como São Paulo e Belo Horizonte. Diferentemente de lá, não somos cercados por indústrias, que prejudicam mais ainda a qualidade do ar;, completa.
Outro dano causado por um tráfego cada vez mais intenso é a violência que ele gera. Estudo divulgado em fevereiro deste ano pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, indica que, em 2008, a cada grupo de 100 mil brasileiros, 22 morreram em acidentes de trânsito. Os norte-americanos utilizaram dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) para calcular o total de vítimas no país, que ocupa o 42; lugar na lista de 193 nações estudadas. Além disso, a versão deste ano do Mapa da violência,
ligado ao Sistema de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, revela que, entre 2002 e 2012, os desastres aumentaram 38,3%. Entre 1980 e 2011, foram 980.838 vidas perdidas.
Segundo Maranhão, não adianta procurar paliativos para a situação. ;A nossa preocuapação deve ser a mesma de países da Europa. Queremos diminuir a quantidade de carros. A saída não é construir estacionamentos aéreos, subterrâneos, nada assim. Precisamos investir em transportes públicos e carros híbridos. A Semarh, por exemplo, já utiliza um carro movido por gasolina e eletricidade. Somente quando passa dos 60km/h, ele passa a funcionar com combustível. Em uma cidade engarrafada, ele pode ser a melhor solução;, aposta.
Momentos diferentes
Apesar de o tema ser cada vez mais discutido no Brasil, dificilmente o número de carros nas ruas diminuirá tão cedo. Augusto Brasil, professor da Faculdade de Engenharia do câmpus Gama da Universidade de Brasília (UnB), lembra que a indústria automobilística ainda é muito relevante para a economia brasileira e que uma larga parcela da população conquistou maior renda recentemente e deseja, finalmente, aproveitar o conforto de um carro. Em Brasília isso é claro. A capital tem uma taxa de motorização de dois veículos por habitante. Um índice, segundo ele, comparável ao de cidades como Los Angeles, nos Estados Unidos. ;Isso não é pecado nenhum, faz parte do crescimento. Não é ruim que as pessoas consigam comprar bens. Do ponto de vista socioeconômico, é positivo. O carro não é só a industria automobilística, mas também a dos setores petrolíferos, por exemplo, que regulam o preço do combustível;, aponta.
O especialista afirma que, embora os países europeus também tenham uma grande taxa de motorização, eles possuem transporte público eficiente. Cidades da América, como Nova York, também possuem renda suficiente para a aquisição de muitos veículos, mas a dificuldade de guiar em ruas onde o trânsito já está saturado afasta a população das concessionárias. O Brasil, aponta, vive um momento diferente, que viveu um salto na renda per capita. ;Uma sociedade assim, sem sombra de dúvida, vai querer mais qualidade de vida. Hoje vemos uma população que não tinha carro podendo comprar. E a nossa história está sendo construída assim. Por isso, faz sentido que estejamos ;atrasados; se comparados a eles. Vamos chegar ao ponto onde ter carro vai se tornar difícil. A maior renda vai permitir que as pessoas conheçam mais culturas e mudem de mentalidade. Aí, as exigências por transporte público vão aumentar;, prevê Brasil.
DUAS PERGUNTAS PARA...
Paulo César Marques, professor do Centro Interdisciplinar de Estudos em Transportes (Ceftru), da UnB
Por que os brasileiros querem tanto um carro?
Existe um grau de dependência das pessoas por seus veículos. Em Brasília, por exemplo, concebida em um momento em que se acreditava que o ideal era toda família ter um automóvel, todo mundo dirige para praticamente tudo. As pessoas atravessam a cidade para ir à padaria de que mais gostam. E o carro é mais que um veículo, é uma forma de se expressar socialmente. A marca, a forma de dirigir, tudo é uma maneira de expressão. Nem sempre é possível ter status pela casa onde se mora porque, para você saber como eu vivo, eu preciso te convidar. Mas todos estão no trânsito, e o automóvel vira mecanismo de exercício de poder. O tempo de quem está de carro, por exemplo, vale mais do que de quem está a pé. A pessoa não admite parar ou reduzir a velocidade para um pedestre. Então, a cultura do automóvel vai muito além do instrumento utilitário para fazer viagens.
Por que o Brasil não consegue seguir modelos como o holandês, que aposta em bicicletas para resolver problemas de mobilidade?
Existem várias diferenças a serem entendidas. Não é de agora que a Holanda é a Holanda. O crescimento do uso da bicicleta começou nos anos 1970 e veio em razão da crise do petróleo de 1973. Surgiu uma pressão que as próprias pessoas fizeram de, em primeiro lugar, garantir a segurança de quem andava de bicicleta na cidade, e a alternativa se construiu. Estamos falando de 40, 50 anos de história. Também tem a questão de dispersão da ocupação da cidade. Se você olhar o mapa de Amsterdã, verá que é cheio de edificações altas, mas tudo é muito perto, a cidade é compacta. Diante disso, vemos que a possibilidade de usar a bicicleta não depende só de ciclovias. Afinal, por que precisamos delas? Porque o Brasil tem um trânsito hostil. A bicicleta deveria andar na rua, e é assim que acontece em Amsterdã. Lá também há ciclovias, mas a maior parte dos ciclistas compartilha a rua com o carro, que está andando a 30km/h. Aqui, um veículo anda a 80km/h.