Jornal Correio Braziliense

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Do exercício da autoridade e do resgate da autonomia fundante da UnB

Assistindo ao primeiro jogo da Copa do Mundo e me recuperando de uma cirurgia fui interpelada por uma cena midiática que me impactou como pesquisadora das múltiplas linguagens de violência de que se nutre o repertório imagético e sensacionalista da mídia e fecunda o imaginário social. No meio de um quebra-quebra nas ruas de São Paulo, em um confronto de manifestantes e policia, em bloqueios de ruas, confinando moradores em suas casas impedidos do direito de ir e vir saltam imagens de vidros estilhaçados, lojas incendiadas, prédios públicos depredados.

Neste caos um fragmento discursivo transborda da tela e assistimos - um pai em desespero que procura o filho no meio da confusão e imediatamente o reconhece no meio de outros também com rostos tampados e, emocionado, aproxima-se dele e pede em sua autoridade filial - que ele volte para casa, tire aquela máscara, pare de quebrar o patrimônio público e que vá trabalhar e pagar suas contas. Em voz suplicante, retirando-lhe das garras da polícia afirmava sua autoridade: Ele é meu filho, esta não foi a educação que lhe demos em casa. E o filho indignado aos berros gritava: este é meu direito e você não pode me impedir. Deixe-me protestar porque nós queremos saúde e educação melhor. Mesmo eu sendo menor eu tenho o direito de protestar e quero um governo melhor. Não este que deixa as pessoas morrerem na porta do hospital como semana passada. Você não estava nem falando comigo e agora vem me buscar e me impedir.

E o pai retrucou: Agora não é a hora. Eu te amo meu filho. Você ainda vai entender que o mundo não é assim. Tem que trabalhar meu filho para você entender...

Estes episódios de crescente violência têm consumido o cenário audiovisual, como o cotidiano vivido nas cidades e instituições nacionais nos últimos anos, estão marcando a cotidianidade da comunidade universitária. E com a legitimidade de uma ex-aluna, militante, mãe, feminista e professora comprometida com a cultura da paz, que pontuo estes argumentos indignados. Estou na UnB desde 1976, primeiro como aluna e depois como docente. Também aqui estudou meu filho e por aqui vivi os momentos mais importantes e desafiadores da minha vida pessoal e profissional. Tive participação ativa como aluna no movimento estudantil, sendo detida na greve de 1977, grávida e aconselhada pelos meus professores a pedir transferência depois que ajudei a reabrir o Centro Acadêmico da Faculdade de Educação, que foi uma das unidades da UnB que mais ofereceu resistência ao autoritarismo que reinava dentro no campus. Estive aqui lutando pela democratização da Universidade quando enfim tivemos uma eleição direta para reitor ; tumultuada ; mas repleta de participação e mobilização de professores, alunos e funcionários que tinham um inimigo comum: o autoritarismo do Estado. Nestes anos efervescentes, defendíamos o patrimônio da UnB dos agentes da ditadura que adentravam em salas quebrando carteiras, retirando professores e alunos, ameaçando nossa integridade física e saúde mental. Mas ousadia e um espirito de inquietação e liberdade envolviam e envolvem a mítica criação desta Universidade ; Cidade!

Participo da vida desta comunidade há mais de 30 anos e assisti muitos tipos de protestos de estudantes, servidores e professores; e fui partícipe na UnB de embates históricos nas assembleias da ADUnB, quando aprendi a ouvir o outro, garantir a palavra, observar manipulações e a perder em votações que tínhamos certeza da vitória. Isso sem falar no aprendizado das votações dos colegiados e do duro embate sobre unificação da carreira docente (de que até hoje me arrependo meu voto). A UnB sempre foi um barril de pólvora, livre, linda, autônoma e, somente com um pensamento autônomo pode gerir os conflitos que se colocam no dia a dia da vida no campus.

Desde que fomos aos poucos perdendo a autonomia universitária fomos perdendo nossa identidade e este imaginário fundante da autonomia que nos fecundou. O avanço da privatização do ensino superior nos conduziu a ficarmos anos e anos sem concurso, sem aumento salarial e sem reposição de docentes, nos obrigando por vezes a dar mais de 24 créditos por semestre, e, ao mesmo tempo, desenvolvermos múltiplas atividades de pesquisa e extensão. Isto sem mencionar o terrível achatamento salarial, a ausência de um plano de cargos e salários que valorizasse a carreira, logo durante os oito anos de governo de um presidente advindo da academia, professor universitário, a aceitar incontáveis condecorações de honoris causa em outros países, inexplicável, simplesmente incompreensível e injustificável. Um presidente que incentivou, no lugar disto, uma inédita e nunca vista antes política de incentivo à abertura de centenas de faculdades privadas, investindo dinheiro público neste processo. Por que em lugar disto não se investiu na melhoria e expansão das instituições de ensino superior?

O projeto pedagógico e curricular foi cedendo espaço para uma burocracia de rotinas, relatórios, avaliações, e um excesso de trabalho perdido nas múltiplas legislações e normas da burocracia ineficiente do governo federal. Alunos e professores foram confinados em um modelo de ensino superior formatado na eficiência para o mercado de trabalho. As disciplinas de humanidades, comum a vários cursos (e aquelas que realmente formam cidadãos), foram retiradas dos currículos e um ensino quase profissionalizante tomou conta da criatividade que reinava em nossa autonomia. Em uma entrevista de que participei com Darcy Ribeiro, na gestão no governo do professor Paulo Renato no MEC, quando vivemos uma dos piores momentos desta Universidade, sem poder repor os docentes, Darcy falou: deixei esta Universidade rica para que vocês nunca dependam das esmolinhas do MEC. E em público no teatro de Arena, muito emocionado, disse ao Ministro - que a UnB não seria sua filha prostituída pela burocracia.

Mas o avanço sobre a autonomia universitária passou a ser politica de Estado. Com o Reuni ela atinge seu ápice. Cursos são abertos sem estudo da demanda profissional. A toque de caixa e sem o menor envolvimento dos docentes e da comunidade em geral na discussão do que seriam as prioridades de cada Universidade e respectiva comunidade estudantil alvo, em função de suas necessidades, singularidades, complexidades, dinâmicas, políticas de desenvolvimento, dentre outras variáveis, impõe-se uma agenda de metas que tem que ser cumprida (assim como fazem as corporações e empresas) e assiste-se à abertura de campi avançados sem a menor infraestrutura, jogando alunos, professores e técnicos no improviso e na indignidade.

A manutenção dos prédios edificados e com necessidade de reformas estruturais passou ao largo do projeto de expansão. Assiste-se passivamente à opção de um modelo de construção sem sustentabilidade com retiradas de árvores do cerrado (sem necessidade, porque hoje podemos construir de forma sustentável e repondo as áreas degradadas e temos professores reconhecidos nesta pesquisa na UnB), e a uma expansão de matrículas especialmente nos cursos noturnos que não vem acompanhada de admissão de novos quadros de técnicos em quantidade suficiente para secretarias administrativas e nem de mudanças para que um campus possa funcionar exemplarmente nos três turnos. A preocupação com o espaço universitário enquanto patrimônio ambiental e arquitetônico rui numa insanidade que envergonha qualquer manual elementar de desafios e metas do milênio. De pirex na mão junto ao MEC aceitamos passivamente sermos monitorados, cumpridores do dever de casa do MEC, assistindo à construção novos prédios sem nenhuma preocupação ambiental, devastando o cerrado e contribuindo para enchentes por falta de porosidade do solo para reter as aguas. Professores que lecionam das 16h às 22h e os alunos dos cursos noturnos, que trabalham durante todo o dia, chegam cansados, precisando realmente de um bom jantar, encontram um campus escuro e inseguro e um transporte e alimentação de péssima qualidade.

A abertura de novos concursos para docentes, em que a banca avaliadora, era submetida às pontuações por vezes impróprias pela natureza e especificidade de cada domínio do conhecimento, vêm com a tabelinha de valoração da pontuação independente da natureza do conhecimento. Professores são contratados em regime diferenciado abrindo uma fenda no movimento docente, priorizando a sala de aula em detrimento da pesquisa e da extensão que pouco a pouco migra para o Ministério da Ciência e Tecnologia e seus centros de excelência, que remuneram mais dignamente seus profissionais. Como por longo tempo não tivemos concurso para repor os docentes que se aposentavam e pela opção dos governos nos últimos quinze anos de privatização do ensino superior, as contratações e as esmolinhas do Reuni converteram-se em oásis redentores. Cria-se com isso um ambiente excludente, injusto e ameaçador alicerçado na competição entre docentes e Universidades e campo fértil para instalar um conceito de produtividade nocivo à harmonia e aos desafios de qualquer processo educacional.

Deste processo resultam basicamente três resultados, brutalmente desastrosos: a contratação de professores com tímida experiência de docência, pesquisa e extensão, a queda vertiginosa na qualidade de ensino e a desvalorização da pós-graduação como lugar de produção de conhecimento. O preço cobrado pelo Reuni sempre foi muito claro: aumentar o número de oferta de vagas e de alunos no ensino superior, mostrando ao país e ao mundo a ;elevação no país do índice de alunos em cursos superiores;. Na prática isto resultou em salas de aula com até 50 até 100, 120 alunos por professor.

Campi novos são inaugurados sem nenhuma infraestrutura, segurança e amparo aos professores, técnicos e alunos. Professores em estágio probatório (inseguros) são jogados em salas de aulas e cobrados em avaliações periódicas que desconsideram o estado das coisas. Abandonamos nosso excelente e conceituado vestibular, que trazia questões reflexivas sobre a realidade do Centro Oeste e passamos a adotar o tal Enem, que cheio de problemas e escândalos, desloca alunos de um canto a outro no território nacional sem uma politica realista de assistência estudantil.

Os gestores das Universidades, acuados entre as demandas da comunidade acadêmica (flexíveis por natureza do processo ensino aprendizagem) e a burocracia do centralismo democrático, são constantemente acionados a responder processos no emaranhado que virou contratar e comprar qualquer coisa para as Universidades. Partidos políticos aliciam as associações docentes que passam a se preocupar com uma suposta politica salarial (que não existe ; exemplo: a diferença salarial do vencimento básico de docente associado I para associado II é de R$ 14,29) e fazem da militância um trampolim para candidaturas a deputados distrital, federal ao senado e nunca mais voltam para nos ajudar. O movimento discente passa a receber dinheiro do governo para depois ser desmoralizado na mídia por desvios de verbas. Alunos como massa de manobra são incitados a ocupar a reitoria de várias universidades e aplaudidos pelo governo quando convém e depois; quando não convém são taxados de vândalos oferecendo elementos que formam um consenso perverso sobre a liberdade democrática das Universidades e justificam a necessidade de tutela autoritária. Sem autoridade e acuados professores, alunos e técnicos cada vez mais sofrem de depressão e doenças decorrentes do stress e da péssima qualidade de vida.

Pergunto: por que o Estado que não consegue nem manter suas Universidades Federais ainda financia as instituições privadas de ensino? Por que Capes e CNPq financiam programas de pós-graduação e bolsas destas instituições? Elas têm suas próprias fontes de renda. As federais pouco e quase nada têm. No fundo a questão está na completa indiferença do Estado para com a educação, em todos os níveis. Enquanto isto não mudar, pelo menos não nos obriguem a sermos seus escravos e algozes de alunos.

Nós da UnB não sabemos tratar mal nossos alunos, professores e servidores. Este nunca foi historicamente nosso desígnio. Como Universidade transgressora e livre não vamos aceitar que estudantes, professores e servidores sejam culpabilizados pelo degradante estado que chegamos.

Voltando a mediação entre realidade e ficção; entre o pai que busca seu filho que tem direito de protestar, e nós educadores e pais da UnB o direito e dever de mostrar a sociedade e aos nossos alunos que este estado de coisa de - violência difusa ; física e simbólica - que se abate sobre a esta comunidade não foi nós que criamos e alimentamos.

O bom processo educacional conduziria a outro patamar civilizatório e de urbanidade em situações de conflito. Antes de processar reitor, alunos, professores e servidores sejamos autônomos e livres para desobedecer e transgredir este novo estatuto de autoritarismo de Estado que vem se impondo nos últimas décadas.

Temos que crescer com crises e conflitos e neste momento, deixar as redes sociais fictícias e edificarmos redes sociais verdadeiras e reais em defesa de um pensamento autônomo . Podemos e devemos andar com nossos pés. Só assim vamos construir a paz e a tolerância e inaugurar um novo diálogo assentado no respeito. Pois respeito é conquista da autoridade que não pode ser confundido com práticas e processos eivados de autoritarismos!