"Hoje, o grande desafio é construir um Estado mais democrático. Para isso, ele precisa ser eticamente exemplar" |
Em 1; de abril, quando Waldir chegou a Brasília, vindo do Rio de Janeiro, já com o golpe em marcha, Jango recomendou que ele e o chefe do Gabinete Civil, Darcy Ribeiro, ficassem no Palácio do Planalto garantindo a normalidade do governo e dessem ciência ao Congresso de que ele fora para ao Rio Grande do Sul com o intuito de organizar a resistência e evitar ;o esbulho da vontade popular;. Juntos, redigiram o comunicado que Darcy levou ao Congresso, na sessão da madrugada de 2 de abril, em que, apesar da leitura do ofício, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, perpetrou o golpe civil, declarando vaga a Presidência da República e empossando o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli.
Waldir e Darcy viveram então uma aventura cinematográfica na tentativa de se juntarem a Jango em Porto Alegre: dormiram no mato, perto da base aérea, onde embarcaram clandestinamente em um monomotor de lona, e fizeram escala em uma fazenda de Jango em Mato Grosso. Lá, souberam que Jango se exilara no Uruguai. Só lhes restava também deixar o país, o que fizeram, carregando latas de gasolina no colo e pousando numa pastagem uruguaia. Depois que ali chegaram sua mulher, Iolanda, e os cinco filhos, Waldir radicou-se na França, em exílio que duraria 15 anos.
Encerrada a ditadura, Waldir Pires foi ministro da Previdência de José Sarney e elegeu-se governador da Bahia em 1986, pelo PMDB. Deixou o cargo dois anos depois, para ser vice de Ulysses Guimarães na primeira eleição direta da fase atual, a de 1989, elegendo-se deputado federal pelo PDT em 1990. No governo Lula, foi ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), que implantou, e ministro da Defesa. Hoje, aos 87 anos, com a saúde e a memória em forma, é vereador em Salvador, de onde falou com o Correio sobre os idos de 1964.
O senhor era uma das pessoas mais próximas de Jango. O golpe o surpreendeu ou de alguma forma era esperado?
O golpe veio se preparando, não foi algo improvisado. Na verdade, começou com o veto dos militares à posse de Jango, depois da renúncia de Jânio em 1961. Aquilo já foi um ato de intolerância e de violência dos militares, por meio dos ministros das três Forças, bem como de toda a direita brasileira, contra a ordem constitucional vigente e contra a soberania popular. Naquele tempo, votava-se separadamente para presidente e para vice-presidente. Jango integrou a chapa do general Lott, mantendo a posição que ocupou na chapa encabeçada por Juscelino em 1955. Naquela ocasião, ele teve 500 mil votos a mais que o próprio Juscelino. Cinco anos depois, teve mais de 1 milhão de votos a mais do que o candidato vitorioso para a Presidência, que foi o Jânio, apoiado pela UDN. A violência de 1961 também foi algo muito alem dos quartéis, com apoio em setores civis de direita. Por isso, sempre tivemos clareza de que o governo de Jango seria uma batalha duríssima e que poderiam tentar o golpe que não conseguiram dar em 1961.
Os últimos atos de João Goulart, especialmente o discurso no Comício da Central, foram determinantes para o golpe?
Não creio. Para mim, a partir do momento em que o presidente recupera os poderes presidenciais, em 1963, as coisas começam a mudar. Em 1961, por conta do veto militar, e graças à campanha da legalidade, ele toma posse aceitando o acordo de governar sob o parlamentarismo. Contrariou o próprio Brizola, que, tendo liderado a campanha da legalidade, queria a resistência sem composição. Jango portou-se com muita sabedoria e habilidade, aceitando o acordo para evitar o conflito armado, a guerra civil. Teve os poderes limitados, mas criou as condições para recuperá-los por meio do plebiscito de 1963. Ele obteve uma vitória extraordinária. Foram quase 80% dos votos a favor da volta ao presidencialismo. Apesar disso, a resistência a admiti-lo como chefe da nação também voltou com força total. A reação começou aí e ampliou-se no segundo semestre daquele ano, quando ele anunciou o programa de reformas para a transformação do país e a criação de uma sociedade mais justa. Começou, então, o clima de conspiração, reunindo todos os adversários internos ; a UDN, toda a mídia, os latifundiários, boa parte do empresariado, especialmente de São Paulo ; e também os Estados Unidos, que, em plena Guerra Fria, queriam controlar toda a América Latina. O golpe já estava em marcha quando acontece, por exemplo, o Comício da Central do Brasil, que foi uma grande demonstração de apoio popular ao presidente e às reformas de base.
Que informação o governo tinha sobre a movimentação do embaixador americano Lincoln Gordon e do general Vernon Walters, que conspiravam com alguns generais brasileiros?
De alguma forma, Jango sabia. Mas o que fazer? Estávamos na Guerra Fria e os Estados Unidos queriam controlar a América Latina. Tanto é que depois do golpe no Brasil, conseguiram colocar uma ditadura no poder em cada país. Caíram todas as democracias, inclusive a uruguaia e a chilena, com sua forte tradição.
João Goulart governou pisando em ovos desde o início. Uma atitude mais conciliadora teria evitado o golpe?
Jango estava apenas retomando o projeto nacional reformista iniciado pelo presidente Getúlio Vargas depois de eleito em 1950, enfrentando a resistência da UDN. Jango deu continuidade à política nacionalista para o petróleo, estendendo o monopólio também ao refino. Essa foi uma bandeira da minha geração, que, com 15, 16 anos, já lutava para que o Brasil entrasse na Segunda Guerra contra o nazismo. Na questão energética, o país precisava se industrializar, mas não dispunha de energia hidrelétrica suficiente. Era completamente dependente de trustes estrangeiros, como a Light. No Nordeste, o domínio era da americana Bond & Share. Falou-se muito contra a corrupção, mas depois do golpe, não conseguiram fazer-lhe uma só acusação de ordem moral. Ele era filho de um proprietário de terras do Rio Grande do Seul e se tornou um homem rico com seu trabalho, tornando-se o maior invernista gaúcho e o maior fornecedor dos frigoríficos. Não tinha nada de comunista, mas queria um Brasil mais justo. Quando Getúlio se recolheu a sua fazenda, depois de ser deposto em 1945, Jango se aproximou dele e se tornou uma pessoa amiga e querida. A mesma UDN que acusou Getúlio de governar num mar de lama acusou Jango de tolerar a corrupção e de conluio com o comunismo. O moralismo udenista, como sabemos, costuma gerar grandes fortunas para seus adeptos.
Jango viajou para Porto Alegre disposto a resistir. Chegando lá, desistiu. Teria sido porque soube do deslocamento da esquadra americana, objeto da Operação Brother Sam?
Acho que sim. Ou melhor, eu sei que foi por isso e por algo mais grave. No exílio, ele me contou um fato que foi determinante para a não resistência. Ele mencionou uma conversa que teve com o San Thiago Dantas, que era o seu ministro das Relações Exteriores, ainda no Palácio das Laranjeiras, nas primeiras horas da movimentação militar do Mourão Filho, confessando que ela o preocupou muito e foi decisiva em sua conduta posterior. O San Thiago o informou de que a esquadra americana já se deslocava, dizendo ainda: ;Presidente, tenha muito cuidado. Resista se for preciso, mas avaliando se tem forças para sufocar a sublevação, evitando a guerra civil. Pois, se ela vier, presidente, tenho informações seguras de que o Pentágono colocará seu plano em ação. Nesse caso, haverá a intervenção militar americana, e eles vão se valer da guerra civil para dividir o Brasil em dois;. Jango era muito racional, e era um patriota. Concluiu que, em defesa de seu mandato, não tinha o direito de impor tal sacrifício ao povo brasileiro.
Como o senhor avalia a fase mais longeva de democracia que hoje vivemos?
Hoje, o grande desafio é construir um Estado mais democrático. Para isso, ele precisa ser eticamente exemplar. É fundamental que a população creia no Estado democrático e que ele seja capaz de responder às questões essenciais, garantindo a liberdade em todas as iniciativas, da economia à literatura, mas criando uma nação que acolha todos os seus filhos. Durante séculos, este foi um país de segregação, miséria, abandono, sofrimento enorme, falta de acesso à educação e à cultura, privilégios de quem tinha dinheiro e berço. Avançamos, mas falta muito. Poucos países conseguiram organizar a vida social com ênfase nos direitos da pessoa humana. Esse ideário nasceu no século 18, mas a democracia acabou absorvida pelos mecanismos econômicos, pela ganância, pelos esquemas das organizações e pelos lobbies. Hoje, com todos os avanços científicos e tecnológicos, já deveríamos ter sido capazes de criar sociedades não excludentes. E isso terá que vir pela política, não há outro caminho.