Belo Horizonte ; Um dos cinco sentidos que permitem a percepção do mundo, a visão é mais aguçada em alguns animais do que nos homens. Cães e gatos, por exemplo, têm grande acuidade visual, enxergando de longe tudo o que se move ante seus cristalinos refletores. Um mal, contudo, vem atacando cada vez mais a sensível membrana responsável por resguardar tão importante ferramenta: a córnea. A alta incidência de lesões na camada protetora das duas espécies é agravada pela baixa disponibilidade de recursos para tratamentos adequados ; duas fortes razões que levaram a Escola de Veterinária da Universidade Federal de Viçosa (UFV) a estudar e propor novas formas de aplicação de biomateriais em substituição aos métodos convencionais de sutura, obtendo redução de atrito na área lesionada e recuperação em até 30 dias.
Iniciada em 2005, a pesquisa, liderada pela doutora em ciência animal e professora Andrea Pacheco Batista Borges, trata de ferimentos muito comuns no ambiente doméstico: queimaduras, irritações constantes, conjuntivites e arranhões, quase sempre causados durante brigas ou exposição à poeira. Como os animais não demonstram incômodo com o ferimento, o dono do bicho só percebe o problema quando a lesão já se encontra em estado avançado. ;As consequências de lesões de córnea são evolutivas e culminam com a perda da visão. O tratamento busca impedir que elas progridam a uma perda da visão e permitir a regeneração das áreas lesadas;, diz Borges.
Membrana fibrosa e transparente situada sobre a íris, na parte frontal do olho, a córnea é diferente em cães e nos homens. Enquanto nos humanos ela tem seis camadas, nos animais são quatro: epitélio, estroma ou substância própria, membrana de Descemet e endotélio. Geralmente, o procedimento adotado em feridas no globo ocular animal consiste na aplicação de curativo ou gaze sobre a área atingida.
Ainda na fase experimental, o estudo da UFV consiste na aplicação de membrana de bolsa amniótica extraída de cadelas parturientes sobre a área afetada no globo ocular dos cães pacientes. O método de aplicação de sutura não se mostrou satisfatório, uma vez que houve reação inflamatória com o material aplicado (fio). Por outro lado, a membrana amniótica demonstrou boa adaptação como revestimento da lesão. ;Foram registradas reações como fotofobia e blefarospasmo, secreção ocular, hiperemia conjuntival, quemose e edema de córnea, mostrando evidências de atenuamento no sétimo dia da cirurgia. Restava um método para unir o biotecido ao corpo sem provocar reações;, explica a pesquisadora.
A partir de 2007, os procedimentos deixaram a fase experimental e, com aporte da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e novos equipamentos, as suturas foram associadas à membrana amniótica, o polímero adesivo de cianoacrilato (N-butil-2-cianoacrilato), em quatro grupos de animais. A espécie também foi alterada: os testes passaram a ser realizados em coelhos da raça Nova Zelândia ; não havia disponibilidade de gatos para o procedimento cirúrgico, segundo a pesquisadora. ;Apesar de o tratamento ter sido desenvolvido principalmente para cães e gatos, os coelhos foram escolhidos pela docilidade do animal e melhor resposta biológica.;
Métodos
Em cada grupo de cobaias, buscou-se analisar qual composição química de biomaterial mostrava-se mais eficiente. As lesões foram induzidas nos coelhos com o uso de trépano, instrumento cirúrgico em forma de broca. No decorrer do tratamento, o grupo 1 recebeu aplicação do butilcianoacrilato, ao passo em que o grupo 2 foi tratado com N-butil-2-Cianoacrilato como agente aderente associado à membrana amniótica de tamanho maior que o da lesão de córnea. O terceiro conjunto de animais foi sujeito a método semelhante, mas com mais uma camada de membrana na porção externa da córnea, suturada com a aplicação de fio de náilon. Por fim, o grupo 4 recebeu a membrana amniótica suturada com o fio de náilon. Na comparação ao fim da fase de testes, observou-se que o grupo 2 apresentou a recuperação da lesão no menor tempo e melhor acomodação do biomaterial.
;A técnica cirúrgica estudada, pela associação dos biomateriais, permitiu a eliminação das desvantagens demonstradas em pesquisas anteriores quando eles foram utilizados separadamente e atuou na preservação do bulbo ocular e da visão dos animais. A membrana no G2 e G3 funcionou como barreira contra o extravasamento do humor aquoso, mantendo a superfície seca para a aplicação do adesivo, impediu o seu contato com as estruturas intraoculares e, associada ao adesivo, acelerou a reparação da lesão. Como conclusão, indica-se a membrana amniótica associada ao N-butil 2-cianoacrilato no tratamento, mas sua manipulação deve ser cuidadosa para evitar a formação de catarata;, ressalta Borges.
A linha de pesquisa associada ao N-butil-cianoacrilato como método de tratamento havia sido finalizada em 2011, destacando-se na veterinária como método mais seguro para esse tipo de trauma. Desde então, tornou-se tema de diversas dissertações de mestrado e teses de doutorado. ;O método é usado com sucesso por profissionais de todas as áreas da veterinária, como a rural, além de já ter sido empregado, por certos oftalmologistas, no tratamento de pacientes humanos;, sustenta a pesquisadora, que concluiu nova tese sobre o desenvolvimento in vitro de membranas sintéticas à base de celulose bacteriana, em fase de análise de dados.
Fique por dentro
Três coisas que você precisa saber sobre a úlcera animal:
O que é
Condição patológica em que o animal sofre uma erosão sobre a córnea, perdendo o revestimento exterior da membrana, o epitélio
Causas
Podem surgir em decorrência de arranhões, exposição à poeira, produtos químicos, vegetais, queimaduras, irritações, infeções ou traumatismos
Consequências
Baixa tendência à cicatrização, penetrando nas camadas inferiores da córnea e, em último caso, perfuração total da membrana. Pode provocar obstrução da visão, fortes dores oculares, lacrimejamento excessivo, contrações involuntárias da pálpebra e inflamações. Se não for tratada pode levar ainda à infecção e hemorragia nas estruturas internas dos olhos