;Abra seus olhos; é o comando-chave usado hoje para diagnosticar o nível de consciência de um paciente que acaba de sair do coma. Se ele é capaz de realizar essa primeira tarefa, é pedido, então, que tente falar e, em seguida, faça alguns movimentos. Dependendo de como o doente se comportar, poderá ser diagnosticado com outros problemas, como estado vegetativo, minimamente consciente ou síndrome de encarceramento ; na qual a pessoa percebe tudo ao redor, mas não é capaz de mover qualquer músculo. Esse protocolo usado para medir a consciência de um paciente pode gerar um grande sofrimento psicológico e ainda tem uma estimativa de erro próxima a 40%. A solução para esse drama desafiador pode estar nas mãos de um casal de brasileiros.
Em artigo publicado hoje na renomada revista Science Translational Medicine, uma equipe internacional liderada por Adenauer Casali, do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, relata uma técnica promissora para averiguar o estado de consciência de um indivíduo. O grupo partiu de um problema clínico conhecido há algum tempo. Inicialmente, um grande número de pacientes recuperados do coma são diagnosticados em estado vegetativo. Isto é, estão acordados, com olhos abertos, mas não são conscientes. Caso tenham sofrido uma lesão traumática e permaneçam 12 meses nessa condição, o prognóstico será de estado vegetativo permanente, significando que não deverá recobrar sua consciência novamente. Se o doente não tiver passado por uma lesão traumática, esse prazo é ainda menor: três meses.
Por outro lado, se forem percebidos sinais de consciência, ele passa a ser considerado minimamente consciente. O problema é que esse novo diagnóstico não é nada fácil. ;É preciso dizer se algum movimento desse paciente é voluntário, algo muito difícil de fazer na clínica;, explica Casali ao Correio. É preciso uma observação precisa, assim como um acompanhamento próximo. E erros podem ter consequências seriíssimas: em países da Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, o estado vegetativo permanente leva ao desligamento dos aparelhos que mantêm o paciente vivo. Um caso famoso e emblemático das limitações nesse tipo de diagnóstico aconteceu com o jornalista Jean-Dominique Bauby, autor de O escafandro e a borboleta.
Índice objetivo
Para trazer mais segurança às decisões médicas em casos desse tipo, os pesquisadores se preocuparam, inicialmente, em definir o que é fundamental para medir a consciência e, assim, alcançar um índice objetivo para mensurá-la. Para isso, baseou-se em teorias já consolidadas sobre o que é e como se manifesta a consciência no cérebro. A ideia é que a consciência sempre está acompanhada de muita informação: cores, formas, sons, sensação de corpo, temperatura, memória, emoção. Tudo isso preenche ou forma uma experiência consciente qualquer. Porém, informações diferentes são processadas em áreas distintas do córtex.
Se o cérebro é capaz de gerar uma cena consciente, diferentes regiões devem se comunicar e trocar informações. ;Quando elas não são capazes de interagir ou interagem de modo que a informação codificada é perdida, o paciente não é capaz de sustentar uma experiência consciente;, resume Casali. Com isso em mente, os pesquisadores desenvolveram uma técnica para medir o tipo de comunicação e interação entre as áreas do córtex. Foi nessa fase do trabalho que a bioengenheira Karina Casali, mulher do coordenador do estudo, se envolveu no projeto.
A técnica que resultou do trabalho é uma espécie de estímulo eletromagnético indolor aplicado no cérebro do paciente. Depois, é verificado, por meio do registro de eletroencefalograma, a resposta a esse estímulo (veja infografia ao lado). ;A grande vantagem do sistema, que ainda não existe no Brasil, é que a gente consegue obter a resposta a esse estímulo independentemente da percepção da pessoa;, ressalta Karina. Ela explica que, em geral, exames que buscam avaliar o desempenho da capacidade cerebral da pessoa são feitos com a ajuda de um estímulo auditivo, visual ou elétrico. ;Todas as técnicas que existiam até hoje são baseadas na percepção do paciente, mas essa metodologia específica aplicada no nosso trabalho independe disso. É um estímulo eletromagnético que pega a resposta dada (pelo cérebro) a ele.;
Testes
A metodologia permite detectar a conectividade do cérebro dos pacientes e, então, estimar se há algum processamento cerebral. Os testes foram feitos com 32 indivíduos saudáveis e 20 indivíduos divididos em grupos com diagnóstico de estado vegetativo, minimamente conscientes e síndrome de encarceramento. A primeira parte do trabalho serviu para caracterizar o que seria esse índice de consciência em sujeitos saudáveis, avaliados inclusive durante o sono ou sob efeito de anestesia.
Na fase seguinte, os testes foram realizados com os 20 pacientes diagnosticados nos diferentes níveis de consciência. ;Naqueles com a síndrome de encarceramento, foi verificado que a conectividade era equivalente à dos pacientes conscientes. Praticamente, conseguimos separar os níveis de consciênica e inconsciência, inclusive nos que estão conscientes, mas não se comunicam com o mundo;, comemora Karina Casali. Entre os próximos passos da equipe, estão a comprovação dos experimentos em um número maior de pacientes e, futuramente, a instalação de um laboratório no Brasil para a continuidade dos trabalhos.
Diagnóstico errado
Após um acidente vascular cerebral, Jean-Dominique foi diagnosticado em estado vegetativo e tratado como tal por muito anos. No entanto, um longo período depois, a equipe médica percebeu que o movimento do olho esquerdo realizado pelo jornalista era voluntário. Ou seja, ele estava plenamente consciente. Depois de aprender uma técnica de soletrar ao piscar os olhos, Jean-Dominique escreveu o livro O escafandro e a borboleta, no qual conta sua experiência. A obra foi transformada em filme mais tarde.
Palavra de especialista
Grande valor
;A principal vantagem dessa técnica é que a avaliação da consciência não depende da integridade de vias sensoriais específicas ou sistemas eferentes motores. A capacidade de indexar a probabilidade de que um estado do cérebro consciente está presente em um paciente sem evidência comportamental concomitante é de grande valor na clínica, uma vez que as taxas de erros de diagnóstico são elevadas quando as evidências comportamentais de consciência são limitadas. Uma limitação importante, porém, é que o índice é específico para o estado do paciente no momento da medição. Se esse estado variar dramaticamente no mesmo dia ou em dias, como acontece em pacientes com distúrbios de consciência, o índice não vai revelar o potencial para uma medição feita em um tempo diferente.;
Nicholas Schiff,
pesquisador do Instituto de Cérebro e Mente Feil Family, da
Faculdade de Medicina de Weill Cornell, nos Estados Unidos