O que você vê na internet não é escolhido somente por você. A cada clique ou dado enviado, o internauta molda um perfil de acesso próprio, que é acessado e avaliado por uma série de protocolos capazes de determinar quais partes da rede são permitidas e quais estão fora de alcance. Esse é um procedimento conhecido como Digital Rights Management (DRM), recurso adotado por vários sites para a administração de conteúdo disponibilizado na web. A ferramenta é defendida pela indústria de entretenimento, que diz precisar dela para combater a pirataria. Ativistas, no entanto, acreditam que ela limita o acesso à internet.
O DRM já está presente em diversos portais e até mídias. Ao acessar o conteúdo de determinado site, o internauta passa por uma série de filtros que registram o quanto pagou, a região onde mora e até mesmo o que ele já abriu na web. Até hoje, esse tipo de restrição é controlada por meio de plugins, que precisam ser instalados no navegador antes que a pessoa acesse o conteúdo dos sites que utilizam essa medida de segurança. O internauta, portanto, precisa concordar com esse processo ao instalar a ferramenta no seu navegador ; mesmo que muitos ainda não se deem ao trabalho de ler os termos de uso antes de aceitá-los.
Mas isso pode mudar a partir do ano que vem. A Google, a Microsoft e a Netflix querem integrar essa ferramenta ao futuro padrão mundial de linguagem da internet, o HTML5. Essas empresas propuseram uma extensão, chamada Encrypted Media Extensions (EME), que dispensaria o uso das restrições escondidas nos plugins Flash e Silverlight para oficializá-la na própria ferramenta que deveria apoiar a rede livre.
;Vai mudar para cada browser, mas posso dizer, com certeza, que os navegadores Internet Explorer já virão com o padrão DRM da Microsoft. O Chrome, do Google, provavelmente virá com os componentes DRM da Google;, exemplifica Deivi Lopes Kuhn, secretário executivo do Comitê Técnico de Implementação do Software Livre do Governo Federal (CISL). O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) deve debater o assunto no Congresso Internacional de Software Livre e Governo Eletrônico (Consegi) a partir da próxima terça-feira.
Para alguns, a reprodução de conteúdo encriptado vai contra os princípios do próprio modelo HTML5, cuja proposta é diminuir o número de plugins e tornar a navegação uma atividade mais intuitiva e prática. Outro ponto criticado é o incentivo à cultura de licenças que limitam o acesso a vídeos, músicas, textos ou jogos oferecidos na web. ;Não vejo problemas em cobrar por um produto, mas não acho correto vender a mesma coisa várias vezes. É isso que eles querem, vender o conteúdo e continuar sendo dono, controlando como a pessoa vai usar. Isso não é correto;, critica Alexandre Oliva, conselheiro da Free Software Foundation Latin America (FSFLA).
É o que acontece com o Netflix, que disponibiliza conteúdos diferenciados de acordo com o país do cliente ; um norte-americano, por exemplo, tem acesso a mais episódios de uma determinada série do que um brasileiro. Outro caso é o Google Play, que cobra uma taxa pelo direito limitado para o cliente assistir a filmes. Se uma pessoa paga por um vídeo pela plataforma Google, tem apenas 30 dias para vê-lo e não pode acessar o conteúdo novamente depois de mais de 48 horas.
Limitações à vista
Outros especialistas acreditam ainda que o monitoramento de informações pode ser um risco para programas abertos, que podem enfrentar dificuldades para funcionar. O mesmo problema afetaria programadores que se interessam em personalizar ou mesmo criar jogos para um console conectado à rede, além de impedir o uso de games usados ou emprestados. Essa mesma preocupação já foi motivo de protesto contra o novo console da Microsoft, o Xbox One. Depois de violentas críticas do público, a companhia voltou atrás e aboliu a obrigação de validação on-line do game.
Para Deivi Kuhn, outra questão delicada nesse debate é o possível acesso de conteúdo sem autorização do internauta. Além de registrar os acessos a determinados conteúdos, o DRM poderia ser usado também para monitorar os hábitos de cada pessoa na rede. ;A especificação dessa proposta não define que ele (o DRM) só deva fazer isso. Ele pode fazer qualquer coisa, então, com toda a certeza, vai ser a porta de entrada de acessos ocultos, como aconteceu no NSA, e também vai querer fazer outros tipos de controle. Ele vai ter aplicações que vão além do direito autoral;, teme o especialista do Serpro. Casos de uso indevido do DRM já acontecem há anos, lembra Deivi (Leia a memória).
Os protestos contra a restrição padronizada já resultaram em cartas abertas, abaixo-assinados e até boicote dos sites que requisitaram a mudança. No entanto, o assunto precisa ser resolvido pelo W3C, o consórcio internacional que estipula o padrão usado na rede. O grupo ainda não recebeu comunicados oficiais de seus membros contra a adesão do DRM pelo HTML5.
;O W3C não é uma instituição vertical, é horizontal. Por enquanto, ele acatou a proposta da Net-flix, do Google e da Microsoft e entendeu que é preciso entregar conteúdos de entretenimento e que querem usar o padrão da web para fazer isso;, explica Yasodara Córdova, especialista em web na W3C Brasil. ;Isso significa que todos os desenvolvedores de sites que vão obedecer ao padrão HTML5 vão ter de concordar e aderir (ao DSM);, ilustra a representante. A questão, ressalta Yasodara, ainda é pouco discutida no Brasil, e tampouco é considerada pelo governo do país.
Para os opositores ao DRM, a maior arma do internauta é a informação. Assim como o público conseguiu reverter a política criada pela Microsoft para o console Xbox, é possível que assinantes, compradores e espectadores derrubem a medida ao deixar claro a posição contra ela. A própria Apple abriu mão da ferramenta em 2009 para conquistar mais usuários para a plataforma iTunes. ;O DRM abre uma porta para o cavalo de Troia entrar. Não temos de aceitar, pois o que eles querem no fundo é vender. Se um monte de gente não comprar, vão oferecer de uma forma que a gente aceite;, acredita Alexandre Oliva.
Brasil grampeado
Denúncias do ex-técnico da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA, em inglês) Edward Snowden revelaram que o país teve acesso indevido a 2,3 bilhões de telefonemas e mensagens de empresas e moradores brasileiros. A NSA mantém parcerias com grandes provedores de serviços na internet com o Facebook, Google, Microsoft e YouTube, e usa programas como o Prism e o Fairview para se apoderar de e-mails, mensagens e chamadas.
Memória
Relatórios
e sumiços
Em 2005, a Sony BMG colocou medidas contra cópias em 22 milhões de CDs. Essas ferramentas de DRM, que instalavam dois softwares no computador do comprador, evitavam a pirataria e enviavam relatórios para a gravadora com os hábitos musicais dos usuários. Anos mais tarde, em 2009, a Amazon deletou livros diretamente de diversos Kindles sem a permissão dos usuários. A loja virtual afirmou que os arquivos sofriam problemas de direitos autorais. Ironicamente, as obras que desapareceram dos leitores digitais eram justamente 1984, do escritor George Orwell. No livro, o autor descreve uma sociedade em que todos os cidadão vivem sob constante vigília do governo.