O programador Juliano Ribeiro (à frente) e a equipe que desenvolveu o Herocopter, que é jogado usando os movimentos do corpo e obedecendo a mensagens sonoras |
Um encanador corre pela grama e salta um buraco, caindo sobre a cabeça de uma tartaruga, nocauteando-a. Uma cabeça comilona encontra seu caminho em um labirinto cheio de fantasmas, numa busca frenética por bolinhas luminosas. Um jovem armado foge de uma multidão de zumbis em busca de sobreviventes numa cidade infectada por um vírus misterioso. Se qualquer dessas missões propostas pelos videogames parece complicada, experimente concluí-las com a tela apagada. Pegue o controle e procure chegar ao fim de ao menos uma fase sem espiar os gráficos coloridos. Pois é esse o desafio superado pelos deficientes visuais que se aventuram no mundo dos jogos eletrônicos.
Sem enxergar os cenários ou mesmo o personagem principal, os gamers cegos passam horas interagindo com os telejogos, numa clara desvantagem para os colegas dotados de visão: caindo em armadilhas óbvias, perdendo instruções em texto e procurando recompensas onde elas não estão. Mesmo com tantas dificuldades, eles persistem, principalmente por falta de opção melhor. Os audiojogos, criados especialmente para eles, não são exatamente sinônimo de diversão. A maioria dos títulos disponível não passa de variações de jogos de labirinto simples, em que o jogador obedece a instruções narradas para concluir a aventura, geralmente solitária ; fica difícil convencer os amigos que enxergam a participar da atividade limitada.
;Fico perdido num jogo convencional, e os audiogames não acompanham a evolução do mercado;, confessa o programador Juliano Cesar Ribeiro, 30 anos, cego. Interessado por títulos de aventura como Resident evil e Battle field, ele teve de deixar de lado as tramas mais complicadas e jogar apenas as que não exigiam tanto da visão. ;Já joguei muita luta, ia apertando tudo sem saber, e até ganhava. Mas sempre tinha alguém do lado ajudando;, conta.
Foi no ano passado, num curso do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), que ele pôde dividir essa frustração com um grupo de pessoas dispostas a mudar esse quadro. Seu professor, o empresário Bruno Kenj, 28 anos, procurava uma ideia original para participar de uma competição internacional e viu na dificuldade de Juliano uma oportunidade de contribuir com algo novo. Depois de oito meses de trabalho, nasceu o Herocopter, um game para computador criado especialmente para deficientes visuais, mas que oferece diversão para todos os tipos de pessoas.
No jogo, um helicóptero precisa resgatar pessoas perdidas em diferentes cenários, passando por uma densa névoa que impede a visão do caminho. Cabe ao jogador se guiar por um fone de ouvido, pelo qual sons em 3D dão dicas de onde estão as vítimas e indicam a aproximação de obstáculos. ;Tentamos inovar nesse sentido. Sem a visão, as pessoas podem se divertir juntas, quebrando barreiras sociais. Desconhecidos podem até jogar o Xbox Live do outro lado do mundo sem ter a necessidade de saber se o outro é deficiente;, explica Kenj. E a brincadeira dispensa os controles: o próprio jogador levanta os braços e incorpora o veículo-herói com a ajuda do detector de movimentos Kinect.
Americanos desenvolveram luva que vibra para ajudar cegos a brincarem com o Guitar hero |
Fatia esquecida
Herocopter foi semifinalista da Imagine Cup da Microsoft deste ano, e aprovado por Juliano, que testou e deu ideias para o jogo. O grupo pretende agora aprimorar o game para a plataforma Xbox, um console que, como todos os outros, praticamente ignora o público de 300 milhões de deficientes visuais que existem no mundo. Em uma pesquisa conduzida a pedido da desenvolvedora de videogames PopCap em 2008, constatou-se que 20,5% dos jogadores sofrem de alguma limitação física, motora ou mental ; uma estatística que deixa muita gente de fora dos títulos mais populares.
Somente nos últimos anos, os fabricantes começaram a olhar para essa fatia e passaram a oferecer características inclusivas nos jogos, como menus em áudio, controles personalizados e diferentes níveis de dificuldade. A EA, por exemplo, adaptou o título Dead space 2 para que os jogadores pudessem reconfigurar as funções dos botões de acordo com suas preferências, depois de receber uma enxurrada de pedidos em petições pela internet.
Com a evolução da tecnologia, novidades como o Kinect e acessórios de áudio e tato abrem portas para os jogadores sem visão. A Disney Research está trabalhando num videogame tátil que usa uma cadeira para dar ao indivíduo sensações mais reais, que podem apenas deixar um game mais divertido ou até mesmo serem usadas para facilitar a ação para quem não vê a tela.
A programadora Rupa Dhillon, da Universidade de Santa Cruz, nos Estados Unidos, combinou essa mesma ideia ao famoso jogo Guitar hero e desenvolveu uma luva que traduz a partitura colorida da televisão e facilita o manuseio da guitarra de plástico. ;Para jogar, a pessoa usa um dispositivo vibrador com cinco sensores diferentes, cada um representando uma barra de cores da tela. Quando é hora de apertar um botão, o jogador sente uma vibração num ponto específico do corpo e aperta o botão na guitarra ou na bateria;, resume a criadora num vídeo explicativo na internet. Dhillon agora procura doações para levar o projeto, batizado de Rock vibe, para o mercado.
"(Os games) podem ser úteis não apenas para a diversão e para a conexão com a sociedade, mas também como uma ajuda no desenvolvimento de importantes habilidades que eles precisam para se manter independentes" Lotfi Merabet, pesquisador da Escola de Medicina de Havard |
Benefícios
Especialistas ainda apontam que as vantagens dos games adaptados não se limitam ao lazer. Estudos da Universidade de Ontário apontam que pessoas com visão limitada passam a enxergar melhor com o uso de jogos de tiro. Outros ainda mostram que indivíduos totalmente cegos podem aplicar o que aprenderam nos jogos na vida real. ;Podem ser úteis não apenas para a diversão e para a conexão com a sociedade, mas também como uma ajuda no desenvolvimento de importantes habilidades que eles precisam para se manter independentes;, resume Lotfi Merabet, da Escola de Medicina de Havard. O pesquisador mostrou por meio de um experimento que exercícios com programas de computador semelhantes a videogames são um bom exercício para desenvolver a capacidade de navegação e a noção espacial.
Com a ajuda de um simulador de ambiente baseado em áudio, Lotfi ensinou deficientes visuais a atravessar um caminho virtual, guiados apenas por sons que indicavam a distância relativa de objetos. Colocados no espaço verdadeiro, os cegos que tiveram a ajuda do computador conseguiram chegar ao fim mais rápido do que o grupo que recebeu instruções tradicionais para completar a tarefa. ;O programa poderia ser usado no modo de game, como explorar o prédio para encontrar joias e evitar monstros, ou usado para aprender rotas específicas. De qualquer forma, participantes cegos aprendem o plano espacial de um prédio em que nunca estiveram;, atesta o pesquisador.
Para todos
Conheça algumas das características que podem facilitar o contato de deficientes visuais com videogames tradicionais:
; Ter como opção modos de assistência, como mira
automática ou pilotagem corrigida
; Permitir a configuração personalizada dos controles
; Número reduzido de menus necessários para a inicialização do jogo
; Tutoriais práticos e níveis de treinamento
; Todos os textos acompanhados de leitura em áudio,
inclusive as opções do menu
; Ter conversa em áudio entre jogadores on-line
; Controles de volume separados para efeitos,
vozes de personagens e música
; Sons nitidamente diferentes para as ações realizadas com cada objeto ou ferramenta do jogo
; Som em 3D que reflita a posição dos personagens e objetos na tela
; Ter a opção de repetir qualquer parte da narrativa ou das instruções
; Ter uma variedade de níveis de dificuldade
; Manutenção de todas as mudanças de configuração feitas pelo jogador mesmo depois que o jogo for desligado
Fonte: Game Accessibility Guidelines