A Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) prepara-se para debater o projeto de lei (PL) que dispõe sobre o ensino domiciliar no DF, matéria que tramitará em regime de urgência é alvo de polêmicas, até mesmo com discussões no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O texto é de autoria do Executivo local e busca instituir o homeschooling como modalidade educacional permitida na capital. Ou seja, caso aprovado, pais e familiares podem promover o ensino pedagógico de crianças e adolescentes em casa, sem a obrigação de que eles sejam levados à escola, desde que seguidos alguns critérios.
Uma das representantes da Câmara Legislativa que participaram da articulação para o encaminhamento da proposta foi Júlia Lucy (Partido Novo). Ela acredita que o momento é propício para a regulamentação. “A covid veio para mostrar que a educação pode ser realizada de diversas formas. Precisamos quebrar o tabu de que ela é monopólio da escola. Tanto o ensino quanto a socialização não são exclusivos das instituições de ensino tradicionais”, argumenta. Lucy afirma que o projeto será colocado para apreciação logo após o recesso da Casa, e que há apoio da maioria dos distritais. “O que queremos é dar a liberdade para que os pais escolham o modelo que acharem melhor. O homeschooling existe e é praticado no DF, mas precisa dessa regulamentação para dar dignidade a essas famílias”.
A Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) estima que 7,5 mil famílias praticam, atualmente, o ensino domiciliar no país — um crescimento de 2.000% na adesão, entre 2011 e 2018. A entidade considera, agora, que Brasília tem mais de mil casas aplicando esse modelo, e pode ser a “capital do homeschooling”. Essa é a primeira vez que um chefe de Executivo — estadual, municipal ou distrital — envia um PL pedindo regulamentação do tema, que foi apresentado, na esfera Federal, em 2019, pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “Essa proposta do governador Ibaneis é de extrema importância para a educação do DF e pode, ainda, criar repercussões positivas para outras unidades da federação”, diz Rick Dias, presidente da Aned.
Na prática
Rick aplicou a educação domiciliar com os filhos, quando eles tinham 12 e 9 anos, em 2009. Para ele, os anos de homeschooling mostraram, na prática, o ganho de aprendizado. “A qualidade do ensino muda muito. Vi em casa duas crianças e, depois, dois adolescentes, que não apenas memorizavam o conteúdo, mas que começaram a aprender as coisas de verdade. Porque a essência da educação do Brasil é muito conteudista, mas a educação domiciliar ensina a aprender, a estudar e a ser um autônomo do conhecimento”, avalia.Ele afirma que os filhos saíram de um estágio em que estavam se sentindo desestimulados no ambiente escolar para uma realidade em que conseguiram conhecer e ampliar as próprias capacidades. “Às vezes, o modelo tradicional mata a criatividade de um artista ou de um cientista para colocar dentro de uma caixinha, dando a ele o conteúdo que dizem que é preciso estudar”, critica. A filha foi aprovada para o ensino superior no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), aos 16 anos, e precisou recorrer à Justiça do DF para ingressar na faculdade. “Hoje, meu filho é analista de dados de uma empresa, e minha filha empreendeu uma escola de idiomas virtual. Ou seja, é um modelo de sucesso para nós e muitas outras famílias, mas que provoca medo, porque elas temem ser denunciadas e processadas, já que estamos em um momento de limbo jurídico”, pontua.
Críticas
O modelo é encarado com preocupação por parte de pesquisadores e profissionais da educação. O Sindicato dos Professores no Distrito Federal (Sinpro) afirma que a educação domiciliar é “uma ameaça à profissão de professor” e algo que coloca em risco valores sociais que são aprofundados na convivência escolar. O secretário de Educação, Leandro Cruz, destacou, em entrevista esta semana ao CB.Poder — parceria do Correio com a TV Brasília —, que “o melhor local para educar uma criança é a sala de aula, com a convivência na escola”.
O Sinpro frisou, em notas oficiais, que essa proposta faz parte de uma série de “investidas de grupos ultraconservadores, como as do Movimento Escola sem Partido”, que argumentam haver uma “doutrinação ideológica nas escolas”, queixa recorrente de pais a favor do homeschooling.
O aspecto religioso, também, é muito presente entre os apoiadores, que defendem os nomeados valores tradicionais. Porém, entidades como a Associação Nacional de Educação Católica (Anec) pedem pela não adoção da educação domiciliar no sistema de ensino do DF, considerando a proposta inconstitucional. “Não são poucos os estudos que demonstram que a questão do vácuo de socialização e a vedação da oportunidade de conviver com a heterogenia típica de uma sociedade em ambiente escolar são lacunas perigosas na formação dos indivíduos. Sabemos das limitações que o Estado demonstra ter em acompanhar e fiscalizar o ensino regular e presencial em estabelecimentos públicos, então há sérios questionamentos sobre a possibilidade que este mesmo Estado tem de avaliar práticas pedagógicas, de socialização e de frequência dentro da residência dos cidadãos”, considera Hugo Cysneiros, advogado da Anec.
Atualmente, não há uma legislação específica para a educação domiciliar no país. Por isso, o STF discutiu, em 2018, a possibilidade de o modelo ser considerado como algo lícito. O debate surgiu após a Secretaria de Educação do Município de Canela (RS) negar pedido para que uma criança de 11 anos estudasse em casa, orientando os pais a matricularem-na em uma instituição regular, o que gerou um mandado de segurança impetrado pela família. O Supremo decidiu, porém, que “o pedido formulado no recurso não pode ser acolhido, uma vez que não há legislação que regulamente preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino”.
Caso aprovado o PL do Executivo local, os pais da capital passam a ter segurança jurídica para aplicar o homeschooling. Atualmente, com a obrigação legal de matricular e manter crianças e adolescentes, dos 4 aos 17 anos, na escola, pais que aderem ao formato do ensino domiciliar podem ser denunciados por abandono intelectual.
Para saber mais
Diretrizes
O projeto de lei estabelece critérios de cadastro, avaliação e fiscalização para a realização do ensino. O texto diz que um registro deve ser feito direto pelo responsável na Secretaria de Educação, que vai emitir um Certificado de Educação Domiciliar (CED). O documento tem como objetivo comprovar a regularidade
educacional para todos os fins. Também é necessária uma demonstração de aptidão técnica da família para o desenvolvimento das atividades pedagógicas. Proposta da Associação Nacional de Educação Domiciliar sugeriu mudança por entender que a expressão “aptidão técnica é ampla demais” e que “não é o requisito prévio, mas, sim, o acompanhamento que evidencia a qualidade do resultado”. Ainda de acordo com o projeto inicial, haveria a elaboração de um laudo psicossocial, a cada seis meses, para comprovar que a família está promovendo a convivência necessária,e a realização de avaliações para que se obtenham as certificações de conclusão dos ciclos.
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