As redes estaduais e municipais de ensino ensaiam a volta às aulas após meses de paralisação ocasionada pela covid-19. A abordagem mais comum para o desafio posto é o de tentar reproduzir ao máximo o modelo de ensino praticado antes da pandemia, mesmo com restrições em acesso à escola, número de alunos por sala e uso de espaços compartilhados. No entanto, uma alternativa pouco explorada e discutida são novos caminhos de aprendizado que podem ser percorridos por estudantes e professores, potencializando as novas condições que nos foram impostas, em vez de apenas tentar mitigá-las.
Antes de estarmos prontos para ouvir e discutir essas novas possibilidades, precisamos primeiro desconstruir algumas premissas e práticas educacionais, como a importância das avaliações tradicionais, o tamanho dos currículos escolares e as atividades pedagógicas descoladas da realidade prática dos alunos.
Um grupo de pesquisadores brasileiros que realizam estudos em ciências da aprendizagem, vinculados ao Transformative Learning Technologies Lab da Universidade de Columbia (EUA), escreveu um artigo com algumas orientações a alunos e educadores sobre como criar novas experiências de aprendizagem neste novo contexto, em vez de tentar reproduzir o cenário anterior.
Dentre as sugestões apresentadas, uma delas é reduzir o currículo, focando alguns conteúdos prioritários atrelados a cada campo do conhecimento em vez da manutenção do modelo de cinco horas diárias de aulas separadas por disciplinas.
Outro aspecto central nas discussões acadêmicas sobre oportunidades de aprendizagem durante a pandemia é a proposta de colocar o aluno e seu contexto — em casa, no bairro, na cidade — como o cenário no qual o conhecimento será construído. Essa abordagem requer a participação ativa dos alunos em tentar compreender a realidade ao seu redor, conectando-a com os campos de conhecimento formal. Cito a seguir alguns exemplos de como esta proposta se traduz na prática.
Os professores podem propor atividades nas quais os alunos aprendem conceitos da química ao observar seus pais cozinhando em casa. As aulas de biologia podem propor aos alunos que trabalhem em projetos de pesquisa sobre vírus, bactérias e doenças infectológicas, conectando o conteúdo com os desafios enfrentados pela humanidade neste momento. Já na geografia, os estudantes podem fazer um mapeamento das principais rotas de fluxo de pessoas no mundo, avaliando os impactos da globalização nas esferas econômica, política e social, especialmente em momentos de crise sanitária.
Saiba Mais
As aulas de história podem traçar paralelos entre a situação atual e outros eventos históricos semelhantes, fazendo os alunos pesquisarem sobre a Gripe Espanhola e a Peste Negra, por exemplo, e comparar os diferentes recursos com os quais essas doenças foram combatidas no passado. Professoras e professores de língua portuguesa podem propor uma série de redações intitulada ‘Diário de Aprendizagem 2020’, para que os alunos registrem seus desafios, reflexões e aprendizados a nível escolar e pessoal durante este ano escolar atípico, servindo também de registro para a posteridade.
Esses são apenas alguns exemplos de ideias que tive sobre como podemos aproveitar o contexto atual para alavancar o aprendizado dos estudantes, colocando-os no centro do processo, valorizando a conexão entre teoria e vivência prática (especialmente em tempos difíceis) e fazendo-os construir e não apenas absorver conhecimento.
Devemos também considerar que a maioria dos alunos brasileiros vive em condições de vulnerabilidade social, sem acesso aos recursos tecnológicos necessários para acompanhar uma rotina de aulas completamente ou parcialmente remotas. A abordagem proposta, ancorada na redução do currículo, modificação das atividades pedagógicas e com maior foco na investigação e produção de conhecimento pelos alunos, mitiga a necessidade de manutenção do formato da sala de aula tradicional, na qual os estudantes são passivos e ouvintes em grande parte do tempo, exigindo transmissão de conteúdo diária por horas a fio.
Alunos de regiões periféricas podem engajar-se em projetos de etnografia de suas comunidades, nos quais investigam os impactos da quarentena e pandemia nos diferentes aspectos que regem a vida individual e coletiva, como a divisão de tarefas domésticas, o trabalho dos adultos, os índices de violência no bairro e sua experiência de aprendizado.
Todos nós aprendemos a todo momento em nosso cotidiano, em contato com experiências diversas que fazem da vida a maior escola. Com a mediação de educadores bem preparados, há muito potencial para que os estudantes despertem o gosto pela aprendizagem mesmo em um contexto desafiador como o atual.
O maior aprendizado que nossas crianças e jovens podem ter agora é o de se tornarem investigadores de seu meio, usando os campos de conhecimento formal, as teorias e conceitos como suporte para desvendar os mistérios que os cercam, respondendo às suas dúvidas e curiosidades de maneira envolvente e ativa.
Momentos de crise testam nossos limites de maneira extrema em um curto intervalo de tempo, exigindo uma revisão, ou em muitos casos reafirmação de valores e formas inovadoras de lidar com dificuldades. Se estivermos abertos a experimentar o novo, podemos ter uma herança positiva para a educação pós-pandemia, mesmo em um cenário que parece desolador agora.
Ana Machado é mestra em educação pela Universidade Stanford, é especialista em psicossociologia da juventude e políticas públicas pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FEPSP) e bacharel em marketing pela Universidade de São Paulo (USP).
E-mail: anamach@stanford.edu