Lorena Fraga*
postado em 02/07/2020 18:44 / atualizado em 16/09/2020 10:33
Dificuldade de contato e localização dos responsáveis. Risco de contágio com troca de materiais, apostilas e livros. Falta de aparelhos eletrônicos, como celular e computador. Burocracia no acesso à plataforma Google Sala de Aula. Essas são algumas das situações enfrentadas por estudantes e educadores da rede pública na adaptação ao ensino remoto emergencial.
A Secretaria de Estado e Educação do Distrito Federal (SEEDF) adiou a volta às aulas em regime de ensino remoto emergencial para 13 de julho. A partir desta data, haverá obrigatoriedade de presença. O prazo de retomada on-line foi postergado como resultado da solicitação de educadores para que houvesse mais tempo de adaptação e identificação dos problemas e dificuldades dos alunos.
O levantamento dos principais obstáculos dos estudantes com a plataforma Google Sala de Aula é feito por professores; enquanto as escolas coordenam a identificação de problemas e apontam soluções. A partir desta semana, docentes iniciaram uma busca ativa dos alunos que ainda não aderiram ao sistema.
Adaptação em área rural no Gama
No Centro de Ensino Fundamental Tamanduá (CEF Tamanduá), localizado na Ponte Alta do Gama, o corpo estudantil é formado por moradores de chácaras, acampamentos e assentamentos da região, na maioria estudantes carentes. Carla Geórgia de Freitas, 44 anos, é professora da escola e relata que as dificuldades começaram já no contato com as famílias. Para chegar até os alunos, foi necessário bater de porta em porta.
“Muitos não tinham sequer como colocar crédito no celular para receber as chamadas. A grande maioria não possui notebook ou computador, apenas o celular com internet, que no caso é o celular dos pais”, diz. Carla conta que apenas na segunda-feira (29/6), os professores conseguiram autorização para o acesso dos estudantes ao Google Sala de Aula.
Enquanto esperam a autorização dos pais para criar um e-mail institucional para cada aluno, os docentes criaram grupos no WhatsApp com os pais que têm acesso à internet. A procura pelos responsáveis faz parte das sugestões incluídas nas estratégias de acolhimento e ambientação sugeridas pela SEEF.
O Guia de Acolhimento à Comunidade Escolar tem quatro diretrizes para orientar os educadores: acolhimento e ambientação; avaliação diagnóstica; revisão dos conteúdos e objetivos de aprendizagem; e por fim, a realização de busca ativa dos estudantes.
“Era para começar a adaptação dia 22 de junho, mas só conseguimos no dia 29. Para nos organizarmos, mandamos todas as atividades por WhatsApp, incluindo vídeos e outros materiais.” Além disso, os professores montaram kits com apostilas para os alunos irem buscar. Essa opção foi proposta pela SEE-DF para ajudar os estudantes sem acesso a dispositivos digitais (já que, para os que têm esses equipamentos, mas não têm internet, a secretaria pagaria um plano de conexão).
“No caso da nossa escola, o material impresso não foi uma opção, ele foi a alternativa. Mandamos os livros para casa, complementamos com apostilas e atividades”, explica Carla. Alguns pais não tiveram condições de buscar os materiais. Então, a escola se organizou para entregar.
Achando soluções
Para correção das tarefas sem correr riscos de contágio na troca de materiais, os pais tiram fotos das atividades, enviam para os professores e devolvem para os alunos. O Google Sala de Aula é usado por ser uma regra, mas acaba sendo algo mais burocrático: no dia a dia, é quase dispensável, segundo a professora Carla. “Como sabemos da dificuldade da nossa comunidade, nós estamos alimentando a plataforma por ser uma obrigatoriedade, uma exigência da SEEDF.”
Carla conta que, em algumas turmas, os professores ainda não conseguiram contatar os pais. Para ela, as dificuldades enfrentadas no ano letivo da pandemia trarão impacto por algum tempo na educação. “Principalmente nas séries iniciais, vai ficar uma falha muito grande. Ano que vem, teremos alunos com defasagem pedagógica significativa. A SEEDF tentou se organizar, mas teremos grandes problemas com nossos jovens por conta dessas aulas, que ainda são muito falhas”, prevê.
Lidando com a falta de tecnologia no Sol Nascente
Há quase trinta quilômetros de distância do CEF Tamanduá, fica o Centro de Ensino Fundamental 27 (CEF) de Ceilândia, na entrada do Sol Nascente. Lá, o professor de ciências Victor Diego Lisboa, 25, ministra aulas para sete turmas do 9° ano. Adaptado ao uso da tecnologia e com o treinamento proporcionado pela gestão da escola, ele não encontra dificuldades com a plataforma Google Sala de Aula.
O problema começa na acessibilidade dos alunos. “Muitos são de famílias carentes e não têm nem internet em casa nem aparelhos necessários para essa nova etapa”, percebe. Para amenizar a desigualdade, a escola, além de entrar em contato com as famílias dos alunos para saber o motivo da falta de adesão, também está fazendo campanhas de arrecadação e doação de aparelhos para eles utilizarem durante o período do ensino remoto.
Victor conta que a instituição também aguarda as ações de inclusão prometidas pela Secretaria. “Já que a educação pública deve ser para todos, eles devem proporcionar a condição para a volta efetiva das aulas”, pontua. “Mas é um período complicado, muitos colegas relatam que ainda não estão seguros com as ferramentas, e os alunos também…”
Seguindo as orientações da SEEDF, a escola também optou por enviar material impresso para os estudantes. “Eu chutaria que 40% dos alunos ainda não acessaram a plataforma na nossa escola. Mas as condições de muitos dos que conseguiram são precárias, acessam dividindo um aparelho com vários irmãos, segundo relatos”, lamenta o professor.
Realidade de alunos em Ceilândia
A pouco mais de 20 minutos dali, no Centro de Ensino Fundamental 4 (CEF 4) de Ceilândia, as turmas de matemática do 8° e do 9° ano da professora Andressa Teixeira, 29, têm maior facilidade de adaptação tecnológica. “Até o momento, conseguimos atingir um número considerável de alunos acessando a plataforma. É uma novidade para todos”, diz.
“Semana passada foi a primeira semana de teste, fizemos uma live com os alunos da escola para explicar melhor como usar a plataforma”, conta. Rodas de conversa virtuais são recomendadas pela SEEDF. “Acredito que em torno de 80% dos alunos estão com acesso à plataforma. Estamos em contato direto com eles para tirar dúvidas e vamos tentando alcançar o máximo possível. Aos poucos, acredito que eles estão entendendo como funciona”.
Andressa avalia a própria adaptação como satisfatória. “Fiz alguns cursos na Eape (Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação) e a equipe de professores dá um bom suporte para quem ainda não entende muito bem”, relata.
Seguindo as recomendações do governo, a escola também está contatando os responsáveis. “Auxiliamos os alunos que ainda não acessaram a plataforma no primeiro acesso.” A escola também está verificando quem não tem condições de acessar para oferecer material impresso.
Desigualdades aprofundadas no Setor Oeste
Jacy Braga, diretor do Centro de Ensino Médio Setor Oeste (Cemso), na Asa Sul, pondera que cada escola tem ritmo e características próprios. “Desde o primeiro momento da suspensão das aulas, praticamos estratégias de envolvimento dos nossos alunos para que eles não ficassem completamente afastados do aprendizado”, conta.
A escola promoveu uma gincana chamada “Desafio Cemso”, que mediu o envolvimento voluntário dos estudantes e professores no Google Sala de Aula. “Dos mais de 1 mil alunos que temos na escola, posso dizer que por volta de 650 se envolveram.” Depois, quando foi decretado o ensino remoto emergencial, a instituição mapeou os alunos com dificuldades. Com essas ações, o diretor avalia que mais de 80% dos educandos estão na plataforma.
Ele se queixa da “burocracia” de acesso ao Google Sala de Aula, que acaba dificultando o que já é complicado. “Isso deu muita dor de cabeça para quem não tinha intimidade com a plataforma.” Para sanar as reclamações, a escola montou uma espécie de central de atendimento para resolver individualmente cada dificuldade. “Ninguém solta a mão de ninguém, assim vamos resolvendo”, diz o diretor.
Jacy também destaca que a situação gera o aprofundamento de uma desigualdade que já é grande. “Além de disputarmos com as estruturas que as escolas particulares têm, mais uma vez vamos lutar com armas desproporcionais… A rede privada tem muito mais condições de oferecer ensino remoto para os alunos”, compara.
Saiba Mais
Para diminuir o prejuízo educacional, o diretor defende transformar os anos letivos de 2020 e 2021 em um só. “Isso aconteceria com as devidas adaptações, para recuperar a aprendizagem desses alunos. Caso contrário, as avaliações do futuro vão provar que estamos andando para trás do ponto de vista da aprendizagem”, reflete.
Ele chama a atenção para a situação das crianças em processo de alfabetização. “Como fica a aprendizagem dos primeiros anos neste modelo que está sendo implementado? Será, com certeza, um fracasso. Nós estamos apenas fazendo por meio de mídias sociais um processo de ensino, isso não é educação a distância”, afirma.
Educadores cansados
Estudo realizado pela Nova Escola entre 16 e 28 de maio com 9 mil profissionais ligados à educação revela a situação dos professores brasileiros na pandemia. O levantamento capturou o cenário vivenciado por educadores em quatro eixos: situação do professor, situação da rede, participação dos alunos e famílias nas atividades e perspectivas para o retorno das atividades presenciais.
Baixo índice de participação de alunos e famílias nas atividades a distância, atraso no calendário letivo, falta de apoio da rede e saúde mental comprometida são alguns dos principais cenários desafiadores mapeados. Metade dos professores que atuam na rede pública afirma que poucos de seus alunos têm participado das atividades.
Em contrapartida, nas redes particulares, 59% dos docentes relataram que a maioria dos alunos têm participado das atividades remotas. A etapa com maior participação dos alunos é o ensino fundamental I, em que 47% dos docentes afirmaram ter a maior parte de seus alunos participando das atividades propostas.
No ensino fundamental II e no ensino médio, esse índice é de 38%, enquanto na educação infantil é de 28%. Os depoimentos revelam que a falta de equipamentos eletrônicos e a falta de acesso à internet são os principais motivos para a ausência de retorno dos alunos sobre as tarefas e incentivo e apoio das famílias ao ensino remoto.
Alguns professores relatam ainda a dificuldade dos alunos para acessar os aparelhos dos pais, seja porque estão fora de casa trabalhando, seja porque os celulares não têm recursos tecnológicos ou conectividade que suportem o recebimento e envio dos conteúdos pedagógicos.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa
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