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MEC exclui 'violência contra a mulher' de edital de livros didáticos

"Quilombolas" foi outro tema retirado de orientações éticas do documento. Publicidade também passa a ser permitida nas publicações. Regras para obras que serão usadas por alunos de escolas públicas em 2020 haviam sido publicadas ano passado, e o prazo para inscrição de editoras já acabou. Alterar as normas apenas agora tem gerado polêmica

Atualização: MEC volta atrás e suspende mudanças de edital de compra de livros didáticos

O Ministério da Educação (MEC) alterou o edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2 de janeiro. A nova versão do documento, que estabelece critérios para as obras que serão usadas do 6; ao 9; anos do ensino fundamental nas escolas públicas em 2020, suprimiu trecho que estabelecia que os livros não devem ter erros de revisão ou impressão, como antes. Segundo o edital, só seriam barradas obras com "erros crassos" de revisão ou impressão, o que compromete a qualidade do material.

Também ficou de fora do novo texto parte que proibia obras sem referências bibliográficas (a não ser obras de projetos integradores, para as quais a bibliografia continuou sendo pedida), o que abre margem para uso de materiais didáticos sem base em pesquisa, já que não será necessário comprovar o que é dito nas páginas. O veto à publicidade (mesmo no caso de análise e interpretação de texto) nos livros também foi retirado do edital. Propagandas nesse tipo de material são consideradas abusivas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).[SAIBAMAIS]

Alguns temas foram retirados da parte do edital que orientava que determinados assuntos fossem trabalhados nas obras. Entre as temáticas excluídas estão a promoção da cultura quilombola e dos povos dos campos e o combate e a prevenção da violência contra a mulher. Outra orientação deixada de fora do documento atualizado era a que previa que as ilustrações dos livros retratassem a diversidade étnica, social e cultural do povo brasileiro.

Entenda o documento

O edital do PNLD, publicado originalmente em 2018, serve como guia de orientação para editoras prepararem material didático que possa ser usado nas escolas públicas. Todos os prazos para editoras inscreverem obras para participar do PNLD terminaram no ano passado, então, empresas do mercado editorial prepararam livros com base na versão original e, agora, temem ter o material reprovado na fase de análise, que se estende pelo primeiro semestre de 2019. A questão poderia ser até judicializada, já que editoras podem se sentir lesadas.

Veja algumas mudanças na prática

Confira o item 2.1.2, do edital, que aborda a ;Observância aos princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano;, e alterações aplicada nessa parte:

A obra deve:
a. Estar livre de estereótipos ou preconceitos de condição socioeconômica, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade, de linguagem, religioso, de condição de deficiência, assim como de qualquer outra forma de discriminação, violência ou violação de direitos humanos.

b. Estar livre de doutrinação religiosa, política ou ideológica, respeitando o caráter laico e autônomo do ensino público.

c. Promover positivamente a imagem da mulher, assim como a imagem de afrodescendentes, considerando sua participação em diferentes trabalhos, profissões e espaços de poder, valorizando sua visibilidade e protagonismo social, com especial atenção para o compromisso educacional com a agenda da não violência contra a mulher;

d. Promover positivamente a cultura e história afro-brasileira, quilombola, dos povos indígenas e dos povos dos campos brasileiros, valorizando seus valores, tradições, organizações, conhecimentos, formas de participação social e saberes;

e. Representar a diversidade cultural, social, histórica e econômica do país;

f. Representar as diferenças políticas, econômicas, sociais e culturais de povos e países;

g. Promover condutas voltadas para a sustentabilidade do planeta, para a cidadania e o respeito às diferenças.

Saiba mais

Confira no link a versão atual do edital do PNLD.

Ponto a ponto com Lucília Garcez

Escritora, professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), doutora em linguística aplicada ao ensino de línguas, Lucília comenta as alterações do edital:

A supressão de trecho que exigia q ue os livros não contenham erros de revisão ou impressão

;Eu acho um absurdo admitir erro. Esse item é imprescindível. Qualquer editora, qualquer publicação deve passa por um filtro, por várias revisões para que não passe nenhum erro. Isso é o básico do básico. O primeiro passo de uma publicação é o cuidado para que não haja erros.;

A ausência de fontes bibliográficas (a não ser em obras de projetos integradores)

;As referências bibliográficas são importantíssimas para promover a atualização do professor, uma formação continuada, pois é por meio delas que o educador pode ir atrás, se aprofundar. Cada livro didático tem uma linha teórica, que tem de estar registrada na bibliografia para que o professor possa compreender. Não acredito que a retirada da exigência de bibliografia dos livros coloque em risco a veracidade das informações, pois não uma relação tão direta disso com a bibliografia indicada. Não há essa necessidade de comprovação imediata. Porém, ausência de referências empobrece o livro; e o professor perde a chance de poder buscar novas fontes de informação.;

Alteração no edital após o fim das inscrições

;É muito esquisito mudar as regras do jogo durante o jogo. Você se submete a um edital e, depois que você já se inscreveu, ele passa por mudanças como essas; Isso é contraditório.;

Exclusão do termo ;quilombolas;

;Retirar esse termo é uma redução das reflexões sobre a realidade brasileira. Essa é uma questão candente, atual e que leva à reflexão sobre a igualdade, sobre a diferença, sobre a tolerância racial, sobre o fim do preconceito contra a raça negra; A história do Brasil passa pela questão dos quilombolas, faz parte da nossa identidade nacional. E nós devemos muito aos africanos.

Exclusão do termo ;povos dos campos;

;Os povos dos campos são as populações rurais. Você reduz o horizonte de reflexão a que as crianças e adolescentes teriam acesso ao retirar o contato com esse assunto.;

;Violência contra a mulher; fora do edital

;Os índices de feminicídio no Brasil são assustadores. É um tema absolutamente atual. E a escola é um importante agente de transformação.;

A retirada da exigência de que ilustrações retratem a diversidade étnico-racial, social e cultural do povo brasileiro

;Com essa mudança, estamos reduzindo todos os espaços de reflexão sobre a diversidade cultural, como se o Brasil pudesse ter um pensamento único. E nós não podemos ter um pensamento único porque somos um povo diverso, somos um povo multirracial. E qualquer esforço para promover a tolerância e a igualdade e diminuir os índices de preconceito é meritório.;