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Como escolher livros para crianças pequenas?

No mundo em que o politicamente correto é a nova regra, clássicos da literatura se tornam polêmicos - é o caso da obra de Monteiro Lobato. Especialistas defendem que é preciso usar algum filtro, mas sem deixar a criança numa bolha fora da realidade

Afinal, para que serve a literatura na primeira infância? E se a leitura é importante nessa fase, que tipo de livro deve ser entregue a crianças de 0 a 6 anos? Devemos ler os clássicos que hoje são considerados politicamente incorretos? Essas são algumas das perguntas que o seminário internacional Arte, palavra e leitura na primeira infância tentou responder. Entre terça-feira (13) e quinta-feira (15) da última semana, 700 pessoas interessadas pelo tema se reuniram no Sesc Pinheiros, em São Paulo, para tratar do assunto.


O evento foi realizado pelo próprio Serviço Social do Comércio (Sesc) e pela Fundação Itaú Social. "A primeira infância define quem seremos no futuro, então é fundamental discutir sobre a cultura, a arte e a leitura - ferramentas importantes para formar pessoas críticas - nessa fase", destaca Dolores Prades, diretora do Instituto e do Laboratório Emília, consultora editorial, especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona, além de doutora em histórica econômica pela Universidade de São Paulo (USP).

Para o escritor, editor, tradutor e professor Rodrigo Lacerda, as narrativas precisam passar por algum tipo de filtro antes de serem apresentadas ao público infantil. "Os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen fizeram uma filtragem para poder contar histórias às crianças. Nos contos que não passaram por um processo desses, há muita violência", comenta o autor do livro infantil Fábulas para o século XXI. Até para o público mais velho, existem filtros importantes.

"O Shakespeare, que não era de fugir de violência, fez certa adaptação para que Hamlet (peça baseada numa história dinamarquesa em que se cozinham pessoas) pudesse ser exibida na corte sem chocar sua majestade", exemplifica Rodrigo, autor de O fazedor de velhos (vencedor, como melhor livro juvenil, da Biblioteca Nacional e do prêmio Jabuti e, como melhor romance, da Fnlij, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) e O mistério do leão rampante (ganhador do prêmio Jabuti de melhor romance).


[SAIBAMAIS]Rodrigo chama a atenção, porém, para o risco de exagerar. "Hoje em dia, no mundo politicamente correto, ficou difícil lidar com isso. Vide o caso do Monteiro Lobato, um escritor que, até a minha geração, era leitura obrigatória para crianças e, agora, é visto com desconfiança por muita gente", comenta, fazendo referência a críticas de movimentos sociais com relação ao racismo presente em obras do criador do Sítio do picapau amarelo.
"Um exemplo é quando a Emília chama a tia Anastácia de ;nega beiçuda;. Ler a frase isolada é chocante, mas quem lê o livro todo e conhece os personagens precisa ser muito insensível para não ver o quanto a boneca ama a tia Anastácia", defende. "O segredo para não sair taxando tudo de politicamente incorreto é manter a sensibilidade a fim de compreender uma frase ou personagem dentro de um contexto mais amplo e verificar se é um preconceito real e até conversar e refletir sobre isso com as crianças", ensina.

"Esse é um caminho para lidar com textos folclóricos difíceis, sem perder a sensibilidade", completa Rodrigo Lacerda. "Um dos meus livros preferidos na infância era a tradução de Olavo Bilac de uma obra alemã, chamada Juca e Chico, que trazia travessuras, como torturar animais e colocar pólvora no cachimbo do pároco, atos cruéis, que hoje seriam considerados inadmissíveis numa história infantil", afirma. Segundo ele, tirando essas partes da história, ela ficaria sem sentido.

Ao mesmo tempo em que é preciso tomar cuidado para não incentivar discriminação ou crueldade, os livros infantis também não devem censurar tanto a realidade a ponto de deixar os leitores numa bolha. "Algo que teria acontecido se o Antoine de Saint-Exupéry, autor de O pequeno príncipe, tivesse escutado o editor dele. O editor se incomodava com o fato de que o pequeno príncipe morria no fim e queria que o autor mudasse o desfecho. Naquela época, mais de 70 anos atrás, o Exupéry não aceitou e disse que as crianças não se assustem com que é natural, como a morte."


Sara Bertrand, escritora, historiadora e jornalista, defende que retirar elementos da realidade de histórias infantis a fim de criar um mundo cor-de-rosa não é positivo. "Vamos suprimir toda morte, todo sexo, toda traição? Então, vamos criar um mundo de hipocrisia", critica. Eva Martínez, professora, terapeuta e especialista em educação emocional, tem posicionamento semelhante. "Se você está sempre contente, como os personagens estereotipados da indústria cinematográfica norte-americana, isso não é autêntico, há algo faltando", observa a pedagoga sistêmica, especializada em terapia Gestalt e acompanhamento com contos e narrações.

"Nós também temos um lado sombrio. Somos essa parte de que também não gostamos." O problema é que muitas obras de ficção, especialmente as feitas para crianças, tentam esconder isso. "Na nossa sociedade, é muito difícil para um homem admitir que precisa de ajuda e demonstrar sensibilidade. A educação emocional pode ser feita com contos reais e não com histórias que ensinam a não sentir raiva e ciúme, por exemplo. Esses também são sentimentos reais e autênticos e precisamos compreendê-los", argumenta Eva, coautora dos livros publicados na Espanha Emociones y familia: El viaje empieza en casa e Bajo la piel del lobo: acompañar las emociones con los cuentos tradicionales.


O escritor Rodrigo Lacerda acredita que as típicas histórias com final feliz apresentadas em filmes da Disney, por exemplo, também ajudam a ensinar sobre emoções. "Sinto que há um enfraquecimento nas versões higienizadas de histórias, mas não sou tão contra a Disney. Eu chorei e me emocionei quando a mãe do Bambi morreu, por exemplo. Será que o Walt Disney não é o Hans Christian Andersen do século 20?", questiona. Eva rebate:"Emocionar a criança, como faz a Disney, é fácil; Difícil é educar emocionalmente, algo que esses filmes não fazem".

Livro é livro!

A livreira e promotora de leitura espanhola Lara Meana defende que um bom livro é para adultos, jovens e crianças. "Como criança, tive uma sorte incrível porque meus pais compravam muitos livros. Na infância, eu lia de Kafka a novelas românticas porque ninguém me disse que aqueles livros não eram para mim, não havia adulto dizendo o que era ou não apropriado", relata.

"Apesar disso, acredito, sim, que há livros para bebês, mas falta a muitas obras ditas do tipo realmente usar a parte tátil que a criança explora nessa fase com qualidade. Vi, certa feita, um livro tátil para usar na banheira que trazia os sinais de multiplicação, algo que, para o bebê, não faz nenhum sentido", observa a escritora, especialista em literatura infantojuvenil e formadora de mediadores de leitura. "E tem livro para criança sem nada dessa parte tátil ou de pop-up que é muito significativo, o que, nessa fase, vai depender da leitura que um adulto faz."


Mediação

Entra aí o trabalho dos mediadores de leitura. "Um bebê de 1 ano e um adolescente de 14 podem se interessar pelo mesmo livro. E a experiência de cada um será diferente", esclarece a coautora do guia Rustas de lectura. E quem pode ser mediador? "Só há uma resposta possível: qualquer leitor. Porque não dá para infectar os outros com um vírus que você mesmo não tem", afirma, reforçando a importância de ser apaixonado por leitura para exercer a atividade.

"Um educador que vá ser mediador tem que se distanciar do papel de professor, pois, para apresentar um livro com efetividade, ele não deve estar numa posição de poder, deve ser algo lado a lado", orienta. "É importante que a pessoa que vai mediar a leitura na primeira infância leve em conta a opinião dos leitores e não só o que acha que meninos e meninas buscam", defende ela, que foi bibliotecária rural, responsável por um projeto de promoção de leitura que ganhou vários prêmios.

"O mediador tem um papel importante, pois será o responsável por apresentar um acervo com diversidade em quantidade e qualidade, que mostre realidades diferentes e ajude as crianças a conhecerem o mundo e a conhecerem a si mesmas", ensina a a autora do livro Maya e Selou (selecionado em 2016 pela Fundação Itaú Social. Patrícia Diaz, diretora de Desenvolvimento Educacional da comunidade educativa Cedac, percebe que possibilitar a escolha de livros por crianças, ainda mais na fase de 0 a 3 anos, é um desafio, que se torna maior em instituições de ensino públicas.

"Como propiciar essa escolha? O mediador faz esse papel", resume. Independentemente de poder fazer essa escolha, o simples acesso à leitura já traz resultados positivos. "Tivemos programas de distribuição de livros que trouxeram bons acervos. A literatura é um convite para entrar num mundo desconhecido, em que tudo é possível", observa a pedagoga, mestre em didática, teorias de ensino e práticas escolares. Isso, porém, não implica abrir mão de qualidade. "Qualidade importa mesmo! Com um livro que tenha linguagem empobrecida ou cujas ilustrações sejam muito óbvias, não tem como o mediador falar ou fazer muita coisa."

Exemplo

Uma bibioteca-modelo localizada num cemitério em Parelheiros, bairro periférico de São Paulo. Essa é a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura. A antiga casa do coveiro foi adaptada para receber, além de livros, uma série de atividades culturas. A iniciativa é do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), no qual a educadora social Bel Santos Mayer é gestora do programa de formação de jovens e do programa de direitos humanos. Para garantir que, mesmo numa biblioteca comunitária, o acervo tenha diversidade e qualidade, é preciso ter alguns critérios antes de aceitar doações de obras.

"O acervo das bibliotecas públicas não pode ser formado por livros que a gente não quer mais, livro faltando a última página (ou seja, a pessoa vai ler tudo e não vai conseguir descobrir o final). Livro para biblioteca comunitária tem que ser aquele que a gente quer dar para o nosso melhor amigo de tão bom", defende ela, que, desde 1988, atua em organizações não governamentais, facilitando processo de criação de bibliotecas comunitárias por adolescentes e jovens. A realidade da biblioteca de Parelheiros mudou por meio de doações que permitiram fazer compras.

"Recebemos R$ 20 mil para compra de acervo. Então, levamos 30 crianças para livrarias, de modo que elas comparassem edições e realmente escolhessem. Para quem estava acostumado a receber livros que eram resto das prateleiras dos outros, foi uma mudança muito grande", compara. "Em Parelheiros, nós temos privilegiado livros que sejam bons", revela a empreendedora social da Ashoka.

"Com essa experiência, a gente descobriu a beleza que é ficar com um livro na mão e, com isso, conhecer outros mundos. E vimos que isso é bom para quem trabalha no campo também", comenta. "E não temos medo de traduzir um conteúdo para que a comunidade possa entender", completa a graduada em ciências matemáticas e turismo, com especialização em pedagogia social e mestranda em lazer e turismo.

*A jornalista viajou a convite da Fundação Itaú Social