Apaixonada por livros, Natália Francisca Frazão, de 32 anos, tinha como meta estudar na Universidade de São Paulo (USP). Surda desde que nasceu, a jovem viu o sonho se tornar realidade ao encarar uma pós-graduação e receber, no último dia 4 de setembro, o título de mestre em educação pela USP, em Ribeirão Preto (SP). O feito, inédito na universidade, foi registrado em uma banca totalmente traduzida em libras (língua brasileira de sinais).
Formada em administração de empresas por uma faculdade particular da capital paulista, Natália escolheu a área de educação para ajudar na inclusão e acessibilidade de surdos no ambiente acadêmico. ;Esse é o meu maior objetivo;, disse a jovem, em conversa que sua mãe, Nilza Neto Frazão, traduziu para a reportagem a partir da linguagem de libras, que pratica com a filha. ;Quero ajudar outros surdos a trilhar um caminho de sucesso, de prosperidade e fazer com que eles tenham acesso ao mundo como qualquer outra pessoa;, explica a jovem, reforçando seus planos para o futuro. ;Quero ser professora universitária e me preparar para o doutorado. ;
Nilza teve rubéola durante a gravidez e suspeitou que isso traria consequências para o bebê . Hoje, orgulhosa, lembra as dificuldades enfrentadas pela filha até alcançar esse objetivo: ;Você não imagina para mim, como mãe, a vitória que é. Quando ela dizia que queria ser professora, eu falava: ;Mas como ser professora se você não consegue falar;. Ela continuava: ;Eu vou ser professora;. E hoje esse objetivo dela está aí, ela conseguiu. Então, aquele momento da banca examinadora foi quando conseguimos realizar esse sonho;.
A descoberta da doença não foi fácil, conta: ;Quando Natália tinha seis meses, eu descobri que ela era surda. A surdez dela é profunda e ela não escuta nada. No começo é um desespero até você imaginar aonde vai buscar ajuda e como que você vai alfabetizar;.
Luta
O tempo passou e, mesmo após experiências que preocuparam a mãe, não só na fase da alfabetização, como na passagem pelo ensino médio, Natália chegou até a universidade, ultrapassando dificuldades que iam desde a falta de intérpretes até a busca de recursos que a permitissem interagir e avançar como os demais estudantes. ;Ela sempre gostou de estudar, de ler, sempre visou a USP;, relata Nilza. ;Ela falava para mim: ;Eu vou estudar na USP e vou fazer pós-graduação voltada a educação;. ;
Assim, Natália conquistou uma vaga na USP. Lá, buscou o campus de Ribeirão Preto e localizou a professora Ana Cláudia Lodi ; fonoaudióloga, ligada aos processos de aprendizagem e linguística, nos quais se inclui o estudo de libras. Desse momento até a fase final da pesquisa, o trabalho entre as duas foi marcado por grande parceria. ;A Natália lia bem, me falava em libras, ela discorria sobre conceitos, me contava sobre o que estava acontecendo, o estudo dela, eu passava para o português e voltava pra ela, pra garantir que eu tinha aprendido a ideia, para, então, a gente dar seguimento no texto;, explica a orientadora.
Nesse processo, ainda foi preciso que a instituição regularizasse a contratação de um intérprete para que Natália pudesse assistir às aulas. Ela mesma conta que foi necessário acionar a justiça para ter seu direito garantido. ;É importante mostrar que a Natália é a primeira da USP, mas já temos surdos e doutores desde 1998;, atenta Ana Cláudia. ;Sempre que tem um surdo na pós-graduação, um surdo na graduação, ele terá um tradutor de libras fazendo exatamente esse papel. Então, eu acho que as federais estão muito mais à frente do que as estaduais paulistas neste sentido. ;
Banca
A avaliação da banca examinadora ao trabalho de Natália foi complexa. Durante mais de quatro horas e com auxílio de duas intérpretes, os sinais da estudante foram traduzidos para que a banca e a plateia entendessem, pois havia no local amigos e convidados da jovem que também eram surdos. Da mesma forma, a fala dos professores era transformada em libras para que Natália pudesse argumentar.
A dissertação do trabalho de Natália aborda as lutas sociais estabelecidas pela Associação de Surdos de São Paulo (ASSP) e contou com entrevistas feitas com fundadores e membros da instituição ; todos surdos. O material colhido em campo, em libras, juntamente às referências bibliográficas, foi finalizado em texto escrito.
Para a mãe da jovem, todos esses marcos legais representaram, na prática, a oportunidade para que a filha não desistisse de seguir com seus planos. ;Lá trás, quando descobri que ela era surda, a minha preocupação era de ela conseguir aprender a ler;, lembra. ;Eu nem imaginava uma faculdade naquele momento, mas ela foi descobrindo o mundo dela. ;