Jornal Correio Braziliense

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Ensino contra a covardia

Conteúdo sobre direitos da mulher agora é obrigatório nas escolas do DF. Medida estimula crianças a contar o que sofrem em casa

A expectativa de mais segurança e de um ponto final para o sofrimento de crianças abusadas dentro de casa está exposta na redação de uma menina de 11 anos. Ela escreveu o texto impulsionada pelo sentimento de justiça, após conhecer o nome da mulher em que deposita todas os projetos de mudança: Maria da Penha. O despertar para o conhecimento da lei não ocorreu com interferências ou por meio de amigos. Veio da escola. Joana (nome fictício) aprendeu na sala de aula que não precisava aceitar a violência doméstica contra ela e a mãe. Resolveu desabafar na aula de redação. ;Fui estuprada e ainda sinto medo. Já sofri muito e minha mãe também, mas agora existe essa lei. Temos que ter a confiança de que tudo vai mudar;, relatou.

A educação sobre os direitos da mulher e outros assuntos com o recorte de gênero passou a ser obrigatória no fim do ano passado. O Conselho de Educação do DF (CEDF) estipulou a inclusão do conteúdo no currículo dos ensinos fundamental e médio, por meio da Resolução n; 01/2012. No fim do mês passado, uma recomendação inédita no país, formulada pelo CEDF, em parceria com a Secretaria da Mulher, orienta a atuação dos professores nas salas de aula. Segundo o documento, os docentes devem trabalhar a Lei Maria da Penha de forma interdisciplinar, além de usar documentos como as convenções de direitos humanos nacionais e internacionais. O objetivo: eliminar todas as formas de preconceito e de violência contra as mulheres.

O tema não é uma disciplina. Ele deve ser abordado de forma específica em cada etapa do ensino básico, de acordo com o nível dos alunos. Pode ser estudado por meio de projetos da escola ou aprofundado com recursos como músicas, redações, palestras e filmes. ;Tivemos níveis altos de violência contra a mulher no DF. Decidimos fazer uma abordagem pedagógica sobre o tema. A escola é um espaço social de aprendizagem para formar a consciência dos estudantes e reduzir os índices crescentes;, explicou a integrante do CEDF e subsecretária de Educação Básica, Sandra Zita Tiné.

A instrução sobre o assunto provocou nos alunos a ligação com a realidade que vivem em casa. Muitos perceberam que aquelas leis se aplicavam a momentos que presenciam no dia a dia. Segundo dados da Secretaria da Mulher, em 70% dos casos de violência doméstica, as crianças assistem à agressão contra a mãe ou a irmã. No Centro de Ensino Fundamental 1 de Planaltina, o efeito foi instantâneo. Lá, cerca de 800 estudantes, dos 1,5 mil matriculados, receberam cartilha sobre a Lei Maria da Penha. O documento aborda desde a história da legislação até o que fazer em casos de violência.

Diversidade

Em um projeto amplo, a instituição optou por lutar contra todos os tipos de preconceito: racial, por orientação sexual ou de gênero. Intitulada Diversidade na Escola, a iniciativa resultou na conscientização dos alunos e até na denúncia e prisão de um homem acusado de estupro. ;Teve uma menina que sofreu o abuso e procurou a direção. Entramos em contato com a mãe, o Conselho Tutelar e a Polícia Civil. Tudo de uma forma muito discreta, a fim de não constranger a criança. Houve uma investigação e ele foi preso;, conta o coordenador da Escola Integral no CEF 1, Alexandre Magno.

A forma de abordar temas polêmicos é uma das preocupações de Tânia Fontelene, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Aplicada da Mulher. Ela reconhece a importância de projetos que apresentem aos estudantes assuntos delicados. ;A iniciativa é muito boa, pois a escola é formação para as crianças;, diz. Ela alerta, no entanto, sobre a necessidade de os professores estarem preparados para lidar com as situações. ;É preciso ter um acompanhamento muito bom, saber o processo de capacitação dos docentes. É importante que tenham preparo com assuntos delicados e sejam reciclados com o objetivo de fundamentar o que estão repassando;, exemplifica.

Mestre em psicologia social, Tânia Fontenele ressalta que é preciso ter cuidado com uma possível exposição dos estudantes. ;Quando o professor detecta que aluno sofreu ou sofre algum tipo de violência, precisa estar preparado para fazer o acompanhamento e ajudar a vítima;, destaca.

Denuncie

Em Brasília, vários serviços
estão disponíveis para ajudar
a mulher vítima de violência:

; Disque 180 ; A Central de Atendimento à Mulher funciona
24 horas, inclusive
feriados. A ligação é gratuita

; Disque-Direitos Humanos da Mulher: 3322-2266

; Secretaria de Políticas para as Mulheres: 3961-1572/1514

; Núcleo de Atendimento às Famílias e aos Autores de Violência Doméstica: 3905-1478

; Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam): 3442-4300

; Centro de Referência para Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência: 3905-3981

; Núcleo de Atenção às Famílias e Vítimas de Violência: 3321-2280

; 1; Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: 3103-1874

; 1; Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - Paranoá:3103-2205

; 1;Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher - Sobradinho: 3103-3107

; 1; Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher: 3103-9377


Pela construção de valores

Todas as escolas têm autonomia para decidir a melhor forma de trabalhar o assunto. No CEF 1, de Planaltina, existe uma disciplina chamada Parte Diversificada, voltada ao aprendizado de temas diversos como meio ambiente, folclore e, neste ano, o universo ligado à igualdade e ao respeito à diversidade. Duas vezes na semana, o professor entra em sala para tratar dos temas. Nesse contexto, está Lorena de Araújo Calmo, 11 anos. Aluna do 6; ano, ela sabe de cor a história de Maria de Penha. ;Ela apanhava muito do marido. Lutou para conseguir justiça. Depois de conhecer meus direitos, sei que devo ir à delegacia registrar um Boletim de Ocorrência caso saiba de algo parecido;, contou.

O projeto também alcançou alunos da Unidade de Internação de Planaltina (UIP). São pelo menos 90 jovens, entre 15 e 21 anos, que cumprem medida socioeducativa e são atendidos por professores da rede pública. Muitos são vítimas de algum tipo de violência ou suspeitos de praticá-la. Professor de português, Alan Araújo da Silva é um dos docentes responsáveis por desenvolver a proposta e discutir com os infratores temas como violência contra a mulher. ;Eles têm, na figura da mulher, a mais importante, que é a da mãe. O vínculo afetivo norteia nosso trabalho, porque relacionamos a mulher a esse sentimento afetivo;, explicou.

Ressocialização

Alan ressalta que o trabalho com os jovens é, principalmente, de ressocialização. Para abordar o tema, os professores usam vídeos, textos e jogos. ;Precisamos mostrar a eles o que é certo e o que é errado. E mostrar que eles podem sair da internação não como transgressor e têm a possibilidade de provar que saíram com valores diferentes;, disse.

Um dos desafios dos professores que dão aulas na UIP é trabalhar a aceitação dos internos em relação aos infratores que praticaram crimes como estupros. ;Eles repudiam qualquer agressão sexual à mulher. Precisamos ficar atentos. Fazemos um trabalho separado com esses jovens, para ouvi-los e deixá-los à vontade;, contou Alan Araújo. Quando os professores detectam vulnerabilidade em algum dos alunos, trabalham para que o passado seja superado. ;Mostramos que existem diversas coisas que precisam ser vencidas. Tentamos tratar de forma sutil, tranquila. Trabalhamos na construção de valores;, complementou.

Crimes registrados

Veja as 10 primeiras cidades do ranking de ocorrências da Lei Maria da
Penha registradas nas delegacias do DF, de janeiro a agosto deste ano

Ranking Região Total de Percentual
administrativa ocorrências de participação

1; Ceilândia 1.629 16,1%
2; Planaltina 873 8,6%
3; Gama 685 6,8%
4; Samambaia 658 6,5%
5; Taguatinga 644 6,4%
6; Brasília 566 5,6%
7; Recanto das Emas 543 5,4%
8; Santa Maria 523 5,4%
9; São Sebastião 389 3,9%
10; Sobradinho 2 358 3,5%

Fonte: Secretaria de Segurança Pública do DF

Três perguntas para

Qual a importância de
levar o ensino sobre os direitos das mulheres para as escolas? Pode ajudar na redução
dos índices?
É determinante. Entendemos que a violência doméstica contra as mulheres resulta da construção social que as coloca numa condição de inferioridade, sexista. Quando investimos na educação, buscamos construir um novo paradigma. Começamos a trabalhar desde a educação infantil até o ensino médio, com uma outra construção que não diferencia pelo sexo. Acreditamos na mudança de cultura e na criação de uma nova maneira de ensino que possibilite esse resultado.

O que as escolas
devem fazer quando constatam que o aluno é vítima desse
tipo de violência?
Se é do ensino médio, pode orientar a fazer uma denúncia. Se a violência for contra meninas (do ensino fundamental), pode encaminhar o ocorrido à Delegacia da Mulher (Deam) para as devidas providências serem tomadas. Nesses casos, o Conselho Tutelar também deve ser acionado. É importante ressaltar que a escola pode fazer a denúncia. A única coisa que não pode ocorrer é deixar passar em branco. Conhecer o fato é a única forma de romper o ciclo da violência. Em caso de dúvida, as pessoas podem ligar para o 156, opção seis.

Houve crescimento
na violência contra a
mulher (entre janeiro
e fevereiro deste ano
em comparação com o
mesmo período de 2012). A quais fatores os índices são
relacionados?
Associamos muito mais ao aumento das informações do que ao crescimento dos crimes. Hoje, as mulheres têm a consciência de que violência contra elas não é só física, mas também patrimonial, moral. Elas têm mais informações. Faz a diferença ter conhecimento dos equipamentos do poder público, do governo. Temos a Casa Abrigo, centros de atendimento, de referência. Hoje, existem mais condições para que ela faça a denúncia.