Enem

Tema da redação do Enem de 2018 pode parecer fácil, mas traz pegadinhas

É o que analisam professores de português. A maior cilada em que o candidato poderia cair seria falar apenas sobre fake news e acabar fugindo ao tema

Ana Paula Lisboa
postado em 04/11/2018 17:13

"Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet". Esse é o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018. Apesar de a maior parte dos estudantes acessar a rede mundial de computadores diariamente, isso não quer dizer que o assunto não traga dificuldades ; um grande equívoco seria falar só sobre notícias falsas no texto, pois esse não é o assunto proposto. Coordenadora de redação do Centro Educacional Sigma, Carolina Darolt, avalia que não é um tema exatamente fácil se for pensado sem o auxílio de textos motivadores. ;O aluno precisa se guiar pela coletânea de apoio apresentada na prova, pois, se não, fica muito técnico;, aponta.

Carolina Darolt, professora do Sigma

;Pode soar como algo aparentemente fácil, e as pessoas até se demonstram entusiasmadas com o tema, mas, refletindo um pouco, é possível ver que esse conteúdo traz armadilhas.; A professora de redação Carol Achutti, do curso pré-vestibular on-line Descomplica, acredita que o maior desafio, porém, não é entender a temática, mas saber estruturar argumentos em torno dela, além de fugir de ciladas. ;O tema pode soar técnico, mas, na segunda leitura, o aluno vai entender o quão global e atual é essa discussão. Acho que o estudante de ensino médio, em geral, está preparado para abordar esse tópico;, diz. ;Todo mundo tem que o falar sobre isso, pois o mundo inteiro hoje se comunica pela internet.; Segundo ela, ideias do que escrever não devem faltar.


;O estudante pode falar de big data, o fornecimento de informações nas redes sociais e nos sites, o processo eleitoral do Trump e do Bolsonaro, como a gente acaba sendo manipulado;; Vinícius Beltrão, consultor pedagógico da plataforma de educação SAS, não se surpreende com o tema, pois faz parte da realidade cada vez mais digital dos últimos anos. Casos de exposição extrema na internet por parte de usuários e da apropriação de dados por empresas não são novidade. Por isso, avalia a proposta como ;coerente; e ;oportuna;, tendo potencial de comprovar o conhecimento dos alunos também sobre atualidades. ;Os estudantes devem analisar questões globais e não somente de sua vivência pessoal;, orienta.

Estudantes não sentem dificuldades

Aluna do 2; ano do ensino médio, Luana Mendonça, 16 anos, fez o Enem como treineira e considerou o teste fácil. ;Ano passado eu fiz, mas não tinha muita bagagem. Agora, tenho mais conhecimentos." A jovem não estranhou o tema da redação. "Meu professor havia comentado algo parecido em sala de aula, sobre influência na internet", conta ela, que quer estudar publicidade na Universidade de Brasília (UnB).

Luana Mendonça fez a prova na Faculdade Icesp, no Guará


A candidata Mônica Oliveira, 37 anos, tentou o Enem pela terceira vez e avaliou o tema do texto como fácil. ;Eu achei que abordariam outro assunto, mas foi um assunto muito atual e relevante para a sociedade por discutir a influência da internet." Segundo a moradora de Ceilândia, algumas questões do exame tinham a ver com o assunto tratado na redação, o que também ajudou.

Mônica Oliveira, no Centro de Ensino Médio (CEM) 9 de Ceilândia

Não caia em cilada

;O meu maior medo com essa proposta de texto é que o aluno só fale de fake news, só que o tema é muito maior do que isso;, afirma Carol Achutti. A docente acredita que as notícias falsas poderiam embasar um argumento, por exemplo, mas não nortear toda a dissertação. A professora Carolina Darolt concorda. ;Tem que tomar cuidado porque a frase temática não faz menção direta às notícias falsas. Se o aluno se centrar nisso, ele corre o risco de fugir ao tema ou só tangenciar o tema, o que compromete o desempenho;, aponta.


Vinícius Beltrão, do SAS, observa que a fuga ao tema pode zerar a nota da redação. ;Focar exclusivamente as fake news eria um erro gravíssimo;, explica o professor. ;Depende muito também dos textos motivadores: se eles estiverem falando muito sobre fake news, é possível falar mais sobre eles; se nem citarem ou falarem pouco, tome cuidado, pois pode ser uma cilada;, destaca Carolina. Ela ressalta que terão bom desempenho os que não forem impulsivos e os que fizerem uma leitura cuidadosa da coletânea de textos, guiando-se pela frase temática.

Possibilidades digitais

Marcelo Squarisi, graduado em análise e desenvolvimento de sistemas, explica que o tema da redação tem a ver com algo que muitos enfrentam no dia a dia: o rastreamento de informações. ;Se eu acesso o site do Correio Braziliense e, depois, navego em outro site, de repente, aparecem para mim anúncios oferecendo o jornal;, exemplifica. ;E não precisa ser algo da internet: se você vai pessoalmente à uma loja de materiais de construção, passará a ver publicidade desse tipo de loja na internet. Tudo é rastreado, inclusive o local onde você está.; Marcelo acredita que isso não é novidade para boa parte dos usuários da internet, especialmente os jovens.


;Muita gente sabe disso e do tanto que nosso comportamento é controlado por detentores de informações.; Ele confirma que isso abre brechas para a propagação de fake news. ;Não há um vínculo direto com o tema da redação, mas é perfeitamente possível relacionar. Por exemplo, um site pode direcionar a um usuário, de acordo com o perfil dele, notícias falsas em que ele tem mais chance de acreditar. A gente pensa normalmente na propaganda, mas os dados podem ser usados para manipulação de opinião também;, afirma. Os riscos à privacidade e à segurança são enormes.

;O Google consegue saber até se você tem insônia ou não por ver se a pessoa está on-line ou não durante a madrugada. Com relógios tecnológicos, smartwatch, é possível monitorar estado de saúde;, observa. ;Seus hábitos e seu poder aquisitivo também podem ser usados por pessoas de má intenção. Se você frequenta um lugar caro, podem concluir que você tem dinheiro, e você se torna um alvo para assalto.; Há também metadados, que seriam dados sobre outros dados. Você pode até nunca compartilhar sua localização nas redes sociais, mas, ao tirar uma foto, essa informação fica gravada no arquivo. ;E os sites podem usar isso se você postar algo.;

Recorte

Em comparação com temas de redações do Enem dos últimos anos, o de 2018 destoa do padrão. ;Ele é bem mais político, inovador e polêmico, fugindo das questões sociais das últimas edições;, comenta Carol Achutti, do Descomplica. Já Carolina Darolt, do Sigma, avalia que o assunto é muito mais comportamental do que político. ;É mais para falar do comportamento do usuário na internet, das escolhas que podem ser feitas em situações cotidianas, como compras e posicionamento nas redes sociais;, diz.


;Mesmo não sendo o recorte dos últimos cinco anos, quando predominaram os temas sociais, acredito que a maior parte dos alunos de ensino médio teve oportunidade de discutir esse tema em sala de aula, pois é muito comum falar sobre superexposição, comportamento nas redes sociais, fake news;, enumera. Na visão de Carol Achutti, a mudança do viés social não deve ser um problema para o desempenho dos candidatos. ;O aluno bem preparado está preparado para qualquer tema.

Propostas

Carolina Darolt dá a fórmula da boa redação: o primeiro parágrafo explica a frase temática; os dois parágrafos seguintes devem levantar os problemas; e o último parágrafo traz a proposta de intervenção. ;Um caminho seria pedir um posicionamento do estado, mais fiscalização. O outro é o da educação, até mesmo nas escolas, pois essa discussão cabe em sala de aula;, propõe. Carol Achutti sugere como propostas de intervenção possíveis de os alunos abordarem no texto a fiscalização e a educação digital midiática.


;Não é preciso criar nada novo. O aluno pode sugerir a fiscalização de algo que já existe: o Marco Civil da Internet. A outra possibilidade é falar da formação de usuários, da conscientização.; Vinícius Beltrão sugere que outra possibilidade é falar do impacto psicológico que a manipulação e o controle de dados pessoais pode trazer às pessoas, falando de modos de reduzir os efeitos.

*Colaboraram Darcianne Diogo e Tayanne Silva, estagiárias sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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