"Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet". Esse é o tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018. Apesar de a maior parte dos estudantes acessar a rede mundial de computadores diariamente, isso não quer dizer que o assunto não traga dificuldades ; um grande equívoco seria falar só sobre notícias falsas no texto, pois esse não é o assunto proposto. Coordenadora de redação do Centro Educacional Sigma, Carolina Darolt, avalia que não é um tema exatamente fácil se for pensado sem o auxílio de textos motivadores. ;O aluno precisa se guiar pela coletânea de apoio apresentada na prova, pois, se não, fica muito técnico;, aponta.
;Pode soar como algo aparentemente fácil, e as pessoas até se demonstram entusiasmadas com o tema, mas, refletindo um pouco, é possível ver que esse conteúdo traz armadilhas.; A professora de redação Carol Achutti, do curso pré-vestibular on-line Descomplica, acredita que o maior desafio, porém, não é entender a temática, mas saber estruturar argumentos em torno dela, além de fugir de ciladas. ;O tema pode soar técnico, mas, na segunda leitura, o aluno vai entender o quão global e atual é essa discussão. Acho que o estudante de ensino médio, em geral, está preparado para abordar esse tópico;, diz. ;Todo mundo tem que o falar sobre isso, pois o mundo inteiro hoje se comunica pela internet.; Segundo ela, ideias do que escrever não devem faltar.
;O estudante pode falar de big data, o fornecimento de informações nas redes sociais e nos sites, o processo eleitoral do Trump e do Bolsonaro, como a gente acaba sendo manipulado;; Vinícius Beltrão, consultor pedagógico da plataforma de educação SAS, não se surpreende com o tema, pois faz parte da realidade cada vez mais digital dos últimos anos. Casos de exposição extrema na internet por parte de usuários e da apropriação de dados por empresas não são novidade. Por isso, avalia a proposta como ;coerente; e ;oportuna;, tendo potencial de comprovar o conhecimento dos alunos também sobre atualidades. ;Os estudantes devem analisar questões globais e não somente de sua vivência pessoal;, orienta.
Estudantes não sentem dificuldades
Aluna do 2; ano do ensino médio, Luana Mendonça, 16 anos, fez o Enem como treineira e considerou o teste fácil. ;Ano passado eu fiz, mas não tinha muita bagagem. Agora, tenho mais conhecimentos." A jovem não estranhou o tema da redação. "Meu professor havia comentado algo parecido em sala de aula, sobre influência na internet", conta ela, que quer estudar publicidade na Universidade de Brasília (UnB).
A candidata Mônica Oliveira, 37 anos, tentou o Enem pela terceira vez e avaliou o tema do texto como fácil. ;Eu achei que abordariam outro assunto, mas foi um assunto muito atual e relevante para a sociedade por discutir a influência da internet." Segundo a moradora de Ceilândia, algumas questões do exame tinham a ver com o assunto tratado na redação, o que também ajudou.
Não caia em cilada
;O meu maior medo com essa proposta de texto é que o aluno só fale de fake news, só que o tema é muito maior do que isso;, afirma Carol Achutti. A docente acredita que as notícias falsas poderiam embasar um argumento, por exemplo, mas não nortear toda a dissertação. A professora Carolina Darolt concorda. ;Tem que tomar cuidado porque a frase temática não faz menção direta às notícias falsas. Se o aluno se centrar nisso, ele corre o risco de fugir ao tema ou só tangenciar o tema, o que compromete o desempenho;, aponta.
Vinícius Beltrão, do SAS, observa que a fuga ao tema pode zerar a nota da redação. ;Focar exclusivamente as fake news eria um erro gravíssimo;, explica o professor. ;Depende muito também dos textos motivadores: se eles estiverem falando muito sobre fake news, é possível falar mais sobre eles; se nem citarem ou falarem pouco, tome cuidado, pois pode ser uma cilada;, destaca Carolina. Ela ressalta que terão bom desempenho os que não forem impulsivos e os que fizerem uma leitura cuidadosa da coletânea de textos, guiando-se pela frase temática.
Possibilidades digitais
Marcelo Squarisi, graduado em análise e desenvolvimento de sistemas, explica que o tema da redação tem a ver com algo que muitos enfrentam no dia a dia: o rastreamento de informações. ;Se eu acesso o site do Correio Braziliense e, depois, navego em outro site, de repente, aparecem para mim anúncios oferecendo o jornal;, exemplifica. ;E não precisa ser algo da internet: se você vai pessoalmente à uma loja de materiais de construção, passará a ver publicidade desse tipo de loja na internet. Tudo é rastreado, inclusive o local onde você está.; Marcelo acredita que isso não é novidade para boa parte dos usuários da internet, especialmente os jovens.
;Muita gente sabe disso e do tanto que nosso comportamento é controlado por detentores de informações.; Ele confirma que isso abre brechas para a propagação de fake news. ;Não há um vínculo direto com o tema da redação, mas é perfeitamente possível relacionar. Por exemplo, um site pode direcionar a um usuário, de acordo com o perfil dele, notícias falsas em que ele tem mais chance de acreditar. A gente pensa normalmente na propaganda, mas os dados podem ser usados para manipulação de opinião também;, afirma. Os riscos à privacidade e à segurança são enormes.
;O Google consegue saber até se você tem insônia ou não por ver se a pessoa está on-line ou não durante a madrugada. Com relógios tecnológicos, smartwatch, é possível monitorar estado de saúde;, observa. ;Seus hábitos e seu poder aquisitivo também podem ser usados por pessoas de má intenção. Se você frequenta um lugar caro, podem concluir que você tem dinheiro, e você se torna um alvo para assalto.; Há também metadados, que seriam dados sobre outros dados. Você pode até nunca compartilhar sua localização nas redes sociais, mas, ao tirar uma foto, essa informação fica gravada no arquivo. ;E os sites podem usar isso se você postar algo.;
Recorte
Em comparação com temas de redações do Enem dos últimos anos, o de 2018 destoa do padrão. ;Ele é bem mais político, inovador e polêmico, fugindo das questões sociais das últimas edições;, comenta Carol Achutti, do Descomplica. Já Carolina Darolt, do Sigma, avalia que o assunto é muito mais comportamental do que político. ;É mais para falar do comportamento do usuário na internet, das escolhas que podem ser feitas em situações cotidianas, como compras e posicionamento nas redes sociais;, diz.
;Mesmo não sendo o recorte dos últimos cinco anos, quando predominaram os temas sociais, acredito que a maior parte dos alunos de ensino médio teve oportunidade de discutir esse tema em sala de aula, pois é muito comum falar sobre superexposição, comportamento nas redes sociais, fake news;, enumera. Na visão de Carol Achutti, a mudança do viés social não deve ser um problema para o desempenho dos candidatos. ;O aluno bem preparado está preparado para qualquer tema.
Propostas
Carolina Darolt dá a fórmula da boa redação: o primeiro parágrafo explica a frase temática; os dois parágrafos seguintes devem levantar os problemas; e o último parágrafo traz a proposta de intervenção. ;Um caminho seria pedir um posicionamento do estado, mais fiscalização. O outro é o da educação, até mesmo nas escolas, pois essa discussão cabe em sala de aula;, propõe. Carol Achutti sugere como propostas de intervenção possíveis de os alunos abordarem no texto a fiscalização e a educação digital midiática.
;Não é preciso criar nada novo. O aluno pode sugerir a fiscalização de algo que já existe: o Marco Civil da Internet. A outra possibilidade é falar da formação de usuários, da conscientização.; Vinícius Beltrão sugere que outra possibilidade é falar do impacto psicológico que a manipulação e o controle de dados pessoais pode trazer às pessoas, falando de modos de reduzir os efeitos.
*Colaboraram Darcianne Diogo e Tayanne Silva, estagiárias sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa