A pouco menos de duas semanas da aplicação da maior prova do país, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), todo cuidado aos pormenores da avaliação é pouco. É hora de aparar as arestas do que pode não estar claro na mente dos candidatos. Ter as artes presentes nos estudos e no cotidiano é desses ;detalhes; que valem mais do que um desavisado candidato na prova ; e um cidadão, na vida ; pode supor. Em tempos turbulentos como estes, pensá-las em sua completude estética, política, histórica e social pode ajudar a entender o exame e muito mais do que vem além dele.
Temas envolvendo artes plásticas, teatro, música, instalação, performance e outras expressões artísticas compõem, tradicionalmente, ao menos cinco questões da prova de linguagens, códigos e suas tecnologias. Essa teve, em 2017, sete questões de artes. Desde 2009, segundo levantamento da plataforma SAS, 88 questões de linguagem envolveram leitura e artes, compondo uma média de 12,1% da prova.
Em 2017, a área de ciências humanas trouxe outras três questões que envolviam diretamente a leitura e a compreensão de manifestações artísticas. ;As artes não ficam somente em linguagens, definitivamente;, sublinha a professora Ana Carolina Machado, da plataforma Qconcursos.com. ;Elas figuram também em temas de humanas, em questões que envolvem história e filosofia. Observando o Enem ao longo dos anos, é possível ver o aumento gradativo da presença da disciplina.;
Verônica Rodrigues, 17 anos, mantém a arte sempre perto de si, como algo muito além de um conteúdo exigido no Enem ou na escola. Neste ano, ela fará o exame de olho em uma vaga em artes visuais no ensino superior e se ressente da falta de apoio da escola em relação à disciplina. ;Com o ensino semestral, só temos seis meses de aula. Não dá para ver quase nada, e a escola não incentiva tanto para o Programa de Avaliação Seriada (PAS) ou Enem;, lamenta.
A jovem estuda por conta própria e paga por um curso de preparação pela internet, já que não tem dinheiro para comprar um curso presencial. A paixão pela disciplina começou ainda quando criança e se relaciona com a própria personalidade, acredita Verônica. ;Tudo o que penso gosto de expressar e passar para algum lugar, como no papel. Eu tenho dificuldade em falar, prefiro desenhar ou fazer alguma coisa para me expressar.;
Modernismo
;As palavras-chaves serão sempre crítica social;, sintetiza Nathália Furtado, professora de artes do Colégio Presbiteriano Mackenzie, a respeito da abordagem do exame. Para ela, é característica intrínseca do Enem promover a integração e a interdisciplinaridade das áreas de conhecimento. ;Ao falar de artes nessas provas, estamos sempre falando sobre uma relação mais social e cultural com ela. O exame quer que o estudante entenda outras culturas e a nossa própria com o auxílio da produção artística, entendendo e pensando o contexto no qual a obra foi produzida.;
;O exame exige contextualização;, acrescenta Rodrigo Retka, que leciona história da arte, participa do programa Hora do Enem e comanda o canal Arte de Segunda, a questão do entendimento artístico, saber o que é pintura, o que é performance. ;O exame exige entendimento artístico, saber o que é pintura, teatro, performante, etc. Mais do que isso, saber como a arte se manifesta, o que ela tem a dizer sobre o seu tempo.;
Desse modo, temas envolvendo vanguardas europeias, como expressionismo, cubismo, futurismo e dadaísmo, têm papel de destaque. Da mesma forma, a influência desses movimentos no Brasil do início do século 20 à atualidade merece atenção redobrada. ;No atual panorama, é essencial estudar a arte moderna, que começa nas vanguardas europeias e chega ao Brasil na Semana de 1922, movimento muito importante na nossa procura por identidade;, diz Fernando Gonzales, professor do colégio Marista João Paulo II.
Diversas possibilidades
Os desdobramentos dessas escolas ressoam ainda hoje, marcando lugar na arte contemporânea e no Enem. A última edição do exame trouxe, por exemplo, questões envolvendo grafite nos muros, mosaico figurativo exposto em estação de metrô e instalação. Esta propunha reflexão, a partir de obra interativa da mineira Marilá Dardot, sobre a função da obra de arte como possibilidade de experimentação e construção.
;Instalações e performances são sempre as que trazem mais dificuldade para os alunos. Eles entendem os conceitos, mas nem sempre a aplicabilidade;, afirma Retka. ;Sempre os aconselho a frequentar museus e galerias de arte, é a melhor maneira de aprender. Hoje em dia, a internet é um caminho aberto também. Nela, você pode ouvir o que artistas e especialistas têm a dizer sobre as obras.; Nathália Furtado concorda: ;Ele precisa se dedicar às artes não somente em sala de aula, mas participar da cena cultural da cidade. Notar, em seu dia a dia, a arte itinerante, percebê-la no cenário urbano;.
No exame, as artes cênicas também extrapolam a presença nos espaços consagrados para chegar às ruas. Além de textos de peças, a edição de 2017 trouxe questão sobre uma montagem de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, encenada na rua pelo Grupo Galpão. Raquel Silva, 17, acredita que sentirá mais dificuldade justamente no teatro. A estudante, que deseja fazer medicina veterinária, está ciente de que a preparação fica ainda melhor ao ver conteúdos artísticos na prática. ;Acho muito interessante, porque faz a gente pensar assuntos relacionados à história;, afirma. ;Vale ler também o que vem sendo comentado na mídia;, acrescenta a professora Nathália.
Corpo, arte e política
O professor Fernando Gonzales alerta para a relevância política da arte engajada, disposta a pensar e intervir política e socialmente. Para ele, deve estar no campo de estudos dos secundaristas a representação do corpo, desde a idade clássica até a contemporaneidade. ;Diversas manifestações podem ser contextualizadas, como gosta o Enem. Hoje, falamos bastante da performance como ato político e a dança trazendo o corpo como elemento amplo de manifestação.;
Pensando nisso, o Correio acompanhou a visita de uma turma de terceiro ano do ensino médio à exposição Ex África, em cartaz até ontem (21) no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Os alunos do Centro de Ensino Médio Urso Branco (Cemub) do Núcleo Bandeirante tiveram uma experiência estética e política da mostra, que contou com quase 100 obras (entre pinturas, fotografias, instalações, vídeos, performance e música) de 18 artistas africanos e dois brasileiros. Elas revelam o passado e o presente do continente africano. Recentemente, a representação da cultura negra e periférica também figurou no exame em forma de música, com o clássico Fim de semana no Parque, do grupo de rap Racionais MC;s, sendo citado em questão.
Daniela Serrão, 17, aprovou a experiência. Ela conta que compensa a defasagem no ensino da escola em artes com o investimento em cursos preparatórios particulares. ;Faço curso particular, no qual temos aula de música, artes plásticas, visuais e cênicas. Aprendo mais por lá, porque na escola não temos esse apoio;, lamenta. A estudante, que gosta muito da disciplina, afirma que o colégio oferta apenas artes visuais. ;Mesmo assim, não tão aprofundado como deve cair no Enem.;
Ela deseja cursar geofísica e vê o futuro atrelado às artes. ;Eu gostaria de trabalhar em locais como o CCBB. A arte passa para a gente a nossa história. Ela conta até mais das nossas origens do que os próprios fatos;, afirma. ;Muita coisa que aprendemos em sala de aula se explica muito melhor aqui do que somente em sala de aula, com o professor citando. Conseguimos visualizar mais;, conclui.
Cleverson Lucas de Souza, 17, diverge da colega. Para ele, a abordagem da escola no ensino da matéria é satisfatório. ;Na escola, os professores arrumam várias formas de aplicar o conteúdo. Trazem a gente a eventos culturais, fazem feiras culturais e expressões artísticas;, conta. Ele sente mais dificuldade com artes visuais, embora se dê bem nas outras. O jovem não costuma ir a exposições, mas se envolve com a disciplina de outras formas. ;Gosto de ver monumentos e esculturas;, relata. Adepto de músicas e filmes para aprender no dia a dia, ele ficou muito satisfeito com a ida à exposição. ;Acho que contribui bastante, porque tudo o que vemos na escola aplicado à arte a gente consegue ver aqui. Em sala de aula, vemos muito conteúdo, mas quase não temos acesso direto a obras como estas;, compara.
[SAIBAMAIS]
*Estagiário sob supervisão de Ana Sá