Jornal Correio Braziliense

Renato Russo

Correio tem acesso a material de peça nunca encenada de Renato Russo

A verdadeira desorganização do desespero, de 1982, revela um poeta cênico e convida os seguidores da Legião Urbana a (re)descobrir o ícone, muito além do rock

;Qual o seu signo?; A pergunta era um cumprimento. Seja quem fosse. Renato não deixava de inquirir sobre os astros, os ascendentes e os descendentes daqueles que estavam ao seu redor. E não fugiu à regra quando conheceu o adolescente de 14 anos que aparecia na Colina (residência dos professores da UnB) pela primeira vez. ;Capricórnio;, respondeu o garoto. Era o bastante para o ariano Renato ter certeza que o menino gostava de música e, sendo assim, recebê-lo no grupo.

Apesar da tenra idade, o jovem desfrutava de passe livre entre os círculos sociais que se formavam na púbere Brasília de 1979. ;Fui apresentado ao pessoal da Colina por meio do namorado da Helena, irmã do Fê e Flávio Lemos (do Capital Inicial e ex-integrantes do Aborto Elétrico);. A impressão inicial se perpetuou. O rapaz e Renato Manfredini Jr. (que ainda não era Russo) se tornaram melhores amigos. Da relação veio a intimidade, a confiança e a peça A verdadeira desorganização do desespero. Escrita em 1982, Renato presenteou o amigo com uma única cópia. Três décadas depois, por meio de uma extensa e persistente apuração, a reportagem do Correio teve acesso ao material ; inédito para o grande público ; ao encontrar o parceiro de outrora de um dos principais ícones da música brasileira. A aparição da peça amplia os ofícios do poeta, cantor e compositor, que morreu desejando ser cineasta e que, por um instante, foi dramaturgo e quase ninguém soube.

A incursão não surpreendeu nem a irmã, Carmem Manfredini, nem o filho, Giuliano. ;Era um artista completo, natural que tenha produzido esse material;, disse o herdeiro de Renato. Carmem, que recebeu uma cópia das mãos do antigo afeiçoado de Renato, conhece o teor desde os primórdios: ;(Ele) Escreveu ainda no apartamento em Brasília. Eu não entendia nada de teatro e achei uma loucura;, brincou. Mas a irmã faz uma ressalva: ;Quem quiser montar, deve antes procurar a família;, advertiu.

A dois

;Não éramos namorados. Mas, tiramos proveito da sexualidade compartilhada;, revelou o antigo amigo. A orientação atípica, pelo menos aos olhos da sociedade censurada e patriarcal da década de 1980, foi principal motivo da aproximação entre eles. ;Renato não tinha com quem conversar. Não podia elogiar os meninos, nem expressar os desejos. Quando nos conhecemos, foi muito gratificante para ambos;. O Trovador Solitário (alcunha que Renato adquiriu na fase transitória entre o Aborto Elétrico e a Legião) não estava tão sozinho como o epíteto sugere. ;Acampamos várias vezes. Aprontamos muito juntos;, garante.



Nem só de prazeres mundanos e descobertas da carne vivia a dupla de amigos. ;Discutíamos MPB (Chico Buarque e Milton Nascimento, principalmente), já que não era cool ele falar sobre o gênero com a galera do rock. Também foi Renato quem me apresentou Fernando Pessoa;. E o parceiro de agito soube retribuir. Não imaginava a grandiosidade do gesto quando apresentou Marcelo Bonfá ao Aborto Elétrico e, de alguma maneira, contribui para formação da Legião Urbana como a conhecemos.

Lembranças

A intensidade da relação entre eles esbarrou em percalços quando a Legião ganhou o país e Renato foi morar no Rio de Janeiro. ;Fui ao primeiro show deles no Circo Voador. Vendi sanduíche natural em entrada de vestibular em Brasília para conseguir chegar lá;, contou. Apesar da distância, o elo entre eles já era bastante sólido: ;Em alguns momentos decisivos, ele se perguntava qual seria minha opinião antes de dar o próximo passo;, como, por exemplo, antes de gravar Geração Coca-Cola (inicialmente uma música country). Cumplicidade construída a partir de inúmeras lembranças, ainda na capital.

;Teve um dia que saí às pressas do apartamento do Renato e ele veio pelo corredor com a letra de Soldados na mão, dizendo que tinha escrito para mim. Pedindo para eu ficar;. O amigo nem lembra o motivo da correria, mas o apelo não funcionou. ;Fui embora do mesmo jeito. Até porque eu e ele sabíamos que não era verdade. Foi apenas uma tentativa de sedução;, comentou, com um inegável sorriso.

Talvez Soldados não se refira ao amigo (talvez sim), mas um dos versos de Quase sem querer (;Me disseram que você / Estava chorando;) parece não deixar dúvidas: ;Foi quando ele me ligou perguntando pelo Beto (Roberto Zanettini) que eu vi andando e chorando pela rua;. Tanto Renato quanto o amigo achavam Beto detentor de uma beleza ímpar.

;Era uma alma libertária. Renato foi preso uma vez, flagrado cheirando loló e passou a noite na delegacia do Lago Sul, cantando blues;, diverte-se o companheiro. ;Ele podia tudo. Por isso escreveu a peça. Por pura pretensão. Para mostrar que era capaz. ;Duvida? Escrevo;. E fez. Só na intimidade não conseguiu ser pleno. E, talvez, tenha morrido por isso;. Quando soube da notícia, o amigo de outrora já vivia no exterior. Desligou o telefone e chorou. O trovador estava, enfim, solitário.

Escute algumas canções de Renato Russo

Soldados
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Quase sem querer
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Geração Coca-Cola
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Eduardo e Mônica

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