Jornal Correio Braziliense

Quando a infância perde o jogo

Sem fiscalização, meninos que sonham com a carreira acabam vulneráveis



Tão devastadora quanto os abusos sofridos por jovens atletas em categorias de base e escolinhas é a falta de fiscalização e proteção para esses garotos. Sindicatos, Ministério do Esporte e a entidade máxima do desporto no país, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), alegam que o assunto é caso de polícia e não possuem instâncias ou campanhas específicas sobre o tema. E o problema se estende ao tratamento dado após o abuso. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que somente 30% dos municípios têm cobertura dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), para onde as vítimas devem ser encaminhadas.

A legislação que trata de jogadores até 18 anos é a Lei Pelé, de 1998. Pela norma, os clubes devem oferecer aos atletas: educação, assistência médica, odontológica e psicológica, além de horas de folga e lazer e dispensa para visitar a família. A regra foi criada para garantir aos times um percentual na venda de jogadores nos quais eles investiram durante a formação. O termo clube formador foi criado e a legislação estabelece as exigências para que a agremiação possa solicitar no futuro um retorno pelo investimento no atleta. ;Há pessoas que criticam a Lei Pelé, dizem que é uma lei do empresário, mas ela trouxe garantias para o atleta profissional e amador. O problema é verificar se os clubes cumprem;, avalia a procuradora do Ministério Público de Goiás, Laura Bueno. A entidade responsável pela fiscalização da lei é o Conselho Nacional do Esporte (CNE), vinculado ao Ministério do Esporte. Procurada pelo Correio, a pasta disse que abusos sexuais são casos de polícia e não faria comentários.

A CBF lançou uma norma interna no início deste ano, propondo-se a regulamentar a definição de clubes formadores. Dos 650 times profissionais credenciados à entidade, somente seis possuem o selo. O diretor de Registros e Transferências da CBF, Luiz Gustavo de Castro, explica que, como a regulamentação começou no início de 2012, foram poucos os times que tiveram tempo de mandar os documentos. Por isso, inclusive, a CBF não é capaz de informar quantos atletas em categorias de base existem no país.

Situação semelhante acontece nos sindicatos. Como não são consideradas profissionais, as entidades alegam ser impotentes em relação aos garotos abusados. Wilson Melo de Oliveira, dirigente do Sindicato dos Atletas de Futebol do Mato Grosso do Sul, onde foi identificada uma rede de pedófilos que agiam em escolinhas itinerantes nos bairros pobres, ressalta que a organização atende basicamente ex-jogadores e treinadores. ;As crianças que jogam nessa escolinhas não têm vínculo com o sindicato. É claro que, recebendo alguma denúncia, nós podemos ajudar. O problema é que, quando chega ao nosso conhecimento, o professor já fugiu;, diz.

Os aparelhos públicos de atendimento às vítimas também não são satisfatórios. Os Creas cobrem apenas 30% dos municípios brasileiros. E os Conselhos Tutelares, apesar de terem maior capilaridade ; segundo a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) estão em quase todos as cidades ; sofrem com falta de estrutura. A SDH reconhece a necessidade de reforço aos Conselhos: muitos enfrentam problemas de acesso à internet e, até, a ausência de veículos para a investigação de denúncias. O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que já foi juiz da Vara de Infância, tentou firmar convênio com a CBF em 2003 para garantir a fiscalização dos clubes pelos Conselhos Tutelares, mas não houve entendimento.

Parceria
Para o coordenador nacional do Programa para Eliminação do Trabalho Infantil, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Renato Mendes, uma solução para dificultar os abusos seria o investimento no esporte nas próprias escolas, onde, em tese, existe uma estrutura de proteção da criança sem negligenciar a educação. ;Tendo em vista que dentro dos colégios você ainda não tem uma política nacional que una o direito de aprender o esporte ao de aprendizagem, a melhor saída seria um acordo entre os órgãos públicos, ministérios e as secretarias da educação com entidades privadas para que essas escolinhas estivessem vinculadas às escolas;, sugere.

Na avaliação de Mendes, essa mudança tornaria menos perverso o funil de escolha dos atletas, que dependem de olheiros e intermediários. ;Não podemos criar dois tipos de situação: a dos que caíram na rede dos olheiros e aqueles que, apesar de terem habilidade e vontade, não terão o direito pelo simples fato de não terem sido vistos;, avalia.

30%
Porcentagem de municípios que contam com o atendimento dos Creas

"Uma coisa que os clubes devem levar em consideração é a parte intelectual do jogador porque os jogadores chegam muito jovens no clube e, às vezes, logo de cara, abandonam o estudo. Só querem jogar, acham que isso aqui é uma maravilha. Os clubes que são grandes e têm uma estabilidade é porque têm uma base boa. Isso aí é fundamental", Muricy Ramalho, Técnico do SantosA07-bra-1308