Renato Alves
Enviado especial
Santo Domingo - Haiti e República Dominicana dividem uma ilha. O governo do país devastado por um terremoto, porém, tem recusado ajuda do vizinho. Cinco dias atrás, as autoridades haitianas rejeitaram o reforço de 800 soldados dominicanos, forçando a Organização das Nações Unidas (ONU) a buscar mais soldados para a missão de paz em outro lugar. O incidente diplomático é apenas mais um episódio da história da tensa convivência entre as duas nações.
[SAIBAMAIS]Os haitianos não esqueceram o massacre de cerca de 30 mil conterrâneos na República Dominicana em 1937, sob as ordens do ditador Rafael Trujillo. Por seu lado, os dominicanos lembram-se do severo regime de ocupação que lhes foi imposto pelo governo haitiano de Jean-Pierre Boyer, entre 1822 e 1844. Há ainda diferenças culturais entre as duas sociedades que alimentam preconceitos na República Dominicana, onde a população reivindica uma herança índia e espanhola, enquanto os haitianos invocam a sua herança africana.
As relações também são dificultadas por causa dos direitos dos trabalhadores haitianos nos canaviais dominicanos. No começo do século 20, os haitianos deixaram suas casas para trabalhar nas plantações de cana-de-açúcar do país vizinho, que abasteciam fábricas construídas ou financiadas pelos norte-americanos. Isso levou a uma migração em massa para a República Dominicana.
Acordo celebrado nos anos 1960 regularizou a entrada de trabalhadores haitianos sazonais na República Dominicana apenas para a colheita da cana. No entanto, após a condenação desse acordo, durante a ditadura de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc (sucessor do pai, François Duvalier, o Papa Doc), haitianos continuaram a migrar para a República Dominicana, à procura de emprego.
Controle rígido
Com o terremoto de 12 de janeiro, em que cerca de 3 milhões dos quase 9 milhões de haitianos foram atingidos, o governo dominicano teme uma torrente de refugiados. Por isso, decidiu reforçar o controle nos postos fronteiriços. A República Dominicana mantém as fronteiras abertas, mas dá prioridade aos que chegam em busca de auxílio médico.
Por terra, a equipe do Correio encontrou muita dificuldade para deixar o Haiti. Os oficiais dominicanos só liberaram a entrada no país porque os jornalistas de Brasília estavam em companhia de colegas com passaporte norte-americano. Enquanto isso, haitianos imploravam para atravessar os portões, que fecham às 19h e só abrem às 6h.
Um policial explicou rapidamente o critério de liberação dos haitianos: "Tememos uma invasão. Se eles vierem com os documentos em ordem, podem passar. Caso contrário, têm de ficar. A não ser que estejam feridos. Se assim for, podem receber a ajuda necessária". O oficial não permitiu imagens nem entrevistas com os refugiados.
Em outra parte da fronteira, onde os países são divididos por um imenso e raso lago, haitianos transportam os compatriotas de forma clandestina. Eles levam os refugiados em pequenos barcos - e até mesmo nas costas. O serviço custa, em média, US$ 10 - uma fortuna para um haitiano.
Ajuda médica
Por outro lado, os haitianos feridos que chegam à República Dominicana não encontram dificuldades para receber atendimento médico. Eles são tratados em quatro hospitais dominicanos da região fronteiriça e em algumas unidades hospitalares militares da capital, Santo Domingo.
Somente no dia seguinte ao terremoto, três hospitais de Jimaní, no lado dominicano da fronteira, atenderam cerca de 2 mil pessoas gravemente feridas. Localizada 280km a oeste de Santo Domingo, Jimaní tem 11 mil habitantes. Ganhou um posto de controle para coordenar as operações de ajuda humanitária.
As vítimas do terremoto chegaram a Jimaní em ônibus, caminhões e todo tipo de carro, que deixaram o Haiti com crianças mutiladas e homens, mulheres e idosos com fraturas. Na pequena cidade dominicana, os feridos mais graves fizeram apenas uma primeira escala, antes de seguir viagem até a capital, onde seriam atendidos em hospitais mais bem equipados.
Outros feridos eram levados a hospitais de outras províncias do oeste dominicano, como Barahona, após o governo do presidente Leonel Fernández ordenar que os centros de saúde da área de fronteira com o Haiti ficassem disponíveis para atender as vítimas. Fernández foi o primeiro chefe de Estado, e até agora o único, que visitou o território haitiano após a catástrofe. Ele enviou helicópteros, ambulâncias e equipes médicas para assistir as centenas de feridos no país vizinho.
Uma autoridade da ONU confirmou a recusa da oferta do envio de 800 dominicanos por parte do Haiti, mas disse que a decisão pode não ser definitiva. Conversas estavam sendo realizadas para ver se o Haiti permitiria que uma equipe policial ou de resgate da República Dominicana colabore com os esforços de ajuda.