Há um dispositivo na filmografia do cineasta e etnógrafo Jean Rouch que sempre fascinou o diretor Sérgio Andrade: mostrar a realidade, com provas de que seja lisérgica e surreal. Esta ficção com ;algo verídico; interessa aos diretores Fábio Baldo e Sérgio, ambos à frente do longa Antes o tempo não acabava, produção amazonense, a ser mostrada hoje, às 21h30, no festival. ;Nunca sobrepomos a cultura e as tradições indígenas em detrimento de um ideal romântico da vida moderna ou do homem urbano. Queríamos tatear questões que pulsavam no choque entre culturas;, ressalva Baldo.
[SAIBAMAIS]Por quase cinco semanas, em Manaus e arredores, a fita foi rodada, há dois anos. ;A situação vivida por indígenas que deixam aldeias, no interior, para viver numa metrópole como Manaus é um componente nacional bem desconhecido pelo próprio Brasil. Nisso, há prova cabal de que as políticas públicas para os índios não funcionam;, comenta o diretor Sérgio Andrade. Ele diz que, no filme, integrado à mostra competitiva não abriu mão do lúdico nem da iconografia indígena. Presa a engrenagens sociais e burocráticas do Estado, a trajetória do protagonista Anderson Tikuna tem teor político. ;Brasília é um palco importantíssimo de discussão de cinema com este forte viés;, celebra Fábio Baldo.
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Na ousadia e na inventividade, Antes o tempo não acabava derivou de ;um nado sincronizado;, entre ambos criadores. O filme teve pesquisa de Carla Menezes para, por triagem, ter elenco definido. ;Ninguém melhor para fazer um indígena com veracidade do que o próprio indígena. Tivemos a preparação de elenco da Rita Carelli, experiente, e quase criada dentro de aldeias;, conta Andrade. O diretor recentemente destravou a produção amazonense, com o longa A floresta de Jonathas. ;O filme construiu a possibilidade de ; novamente ; se fazer cinema no Amazonas, de se produzir um longa com o recurso que uma política cultural eficaz nos concedeu. Houve repercussão no exterior, e acho que a pegada do ;filme de arte; tornou-se uma janela para desglamourizar a Amazônia;, explica.
Autoafirmação para um jovem em desacordo com traços de sua cultura, tida como anacrônica, movem a trama de Antes o tempo não acabava. ;As causas indígenas ganham cada vez menos destaque na política nacional e na mídia hegemônica: é preciso que o cinema faça esse papel. O índio torna-se um ser transfigurado, mas continua índio;, reforça Andrade. Programado para hoje, o longa sobre construção de identidade promete, de leve, dialogar com as fitas de Reiner-Werner Fassbinder. Bebendo ainda do cinema asiático, a dupla promete. ;Talvez pela dose de similaridade entre sonoridades de línguas e traços físicos, naturalmente, bebemos de Tsai Ming-Liang, Jia Zhang-Ke, Naomi Kawase, Apichatpong Weerasethakul e Lav Diaz;, conclui Fábio Baldo.
Três perguntas Fábio Baldo
Como Sérgio Andrade e você se dividem, na codireção?
É bastante desafiador. No fundo, são duas forças que buscam um mesmo ponto de partida, mas que nem sempre estão alinhadas nas diversas possibilidades de caminhos e narrativas. Nossas filmografias sempre conversaram, nossos interesses por personagens que vivem nas bordas nos uniu para construir o que há de mais autêntico no filme. O resultado é algo dicotômico e ambivalente e, por isso, acho que forte e autêntico.
Como desviar do viés de Brasil ecoglamourizado?
Olhar para estereótipos com olhar crítico é o primeiro passo para desconstruir este imaginário. Buscamos representar tipos com forte personalidade e questionadores. Não há muitas produções que humanizam o homem da região Norte, como motor de discussões políticas e culturais. Grande parte das produções feitas hoje na Amazônia são estrangeiras e repousa um olhar ainda muito preconceituoso acerca do índio e do caboclo. Trouxemos questões importantes sobre identidade e sexualidade. Dois filmes que nortearam o projeto, tanto nas questões estéticas quando na abordagem, foram Serras da desordem e As hiper mulheres.
Que proposta estética exploraram?
Por ser uma equipe reduzida, com abordagem documental, optamos por equipamentos compactos. Nosso maior desafio foi entender o papel da câmera na narrativa. O personagem de Anderson é expansivo e inquieto, ele se desloca o tempo todo tateando novos ambientes; quer descobertas e ruptura com o passado.
A passos da completa insanidade
No cinema do diretor Ricardo Alves Jr., um ator pode se mover dentro de um quadro, por minutos, num único plano. Na montagem do longa Elon não acredita na morte, do diretor estreante, existem elipses e lacunas de tempo, mas o filme é ;linear e com ponto final;, como ele adianta. Todo filmado em Belo Horizonte, com orçamento próximo a R$ 1 milhão, o longa segue, passo a passo, uma via-crúcis de desesperado homem que corre atrás de notícias da esposa desaparecida. Versado em teatro e em cinema, Ricardo Alves Jr. gosta do tráfego entre as duas artes. No palco, ele teve o contato profissional com o ator brasiliense Rômulo Braga, protagonista de Elon. Foi na peça Sarabanda que conheceu a capacidade de entrega de Rômulo, num texto que remete ao cinema, já que havia sido escrito pelo sueco Ingmar Bergman.
;Elon é um filme com fotografia escura. Penso nele como se fosse um pesadelo do personagem. Ele joga muito com a luz: com claro e escuro. É um recurso para ajudar o espectador a entrar no clima e na percepção do personagem central;, observa o diretor. Referências e gostos pessoais não faltam para Ricardo Alves Jr., admirador do grupo de renovação do cinema romeno que reverberou em filmes como 4 meses, 3 semanas e 2 dias, de Cristian Mungiu, A morte do senhor Lazarescu, de Cristi Puiu, e Corneliu Porumboiu, de A leste de Bucareste. ;Influências são diversas, mas não poderia dizer que seriam reflexos diretos para o meu longa. Há uma densidade nestes filmes, pela forma, da qual gosto;, comenta.
Na narrativa do filme, há peso para o som, mas com poucas músicas. ;Basicamente, pela edição de som, criamos uma atmosfera espacial que favorece a densidade do clima do filme. Não é um som direto mas, ele vem em camadas, para gerar tensão na trama;, destaca Ricardo Alves. Formado em direção pela portenha Universidad del Cine, Alves Jr. já conquistou dois troféus Candango, pelos curtas Convite para jantar com o camarada Stalin (2007) e Tremor (2013). Daí, ter vivenciado na pele o impacto com o participativo público da capital.
;Acho que todo o cinema é político: não está apartado de nada. Pela forma, meu longa propõe outros modos de percepção da realidade, por exemplo;, avalia. Nessa dinâmica, houve recorrente liberdade no set. ;A criação é coletiva, com pontos em que direciono, sem imposição. Trabalho com muitas vozes, diálogos. Acompanhamos uns instantes antes de um surto psicótico. Passo a passo, Elon vai perdendo conexão com a realidade ou criando uma realidade paralela;, comenta Ricardo Jr. Por uma hora e vinte minutos, o filme mostra a busca por Madalena (Clara Choveaux, atriz de Exilados do vulcão). ;A fotografia é toda com câmera na mão: circulamos por escadas, corredores, por labirintos, no retrato da perda de sanidade;, completa o cineasta, que já ministrou oficinas de performance, em centro de convivência antimanicomial.
Elon não acredita na morte e Antes o tempo não acabava
Longas a serem exibidos, na competitiva do Cine Brasília (EQS 106/107), às 19h e às 21h30: Elon não acredita na morte, de Ricardo Alves Jr., ficção mineira (Não recomendado para menores de 16 anos, 75minutos) e Antes o tempo não acabava, de Fábio Baldo e Sérgio Andrade, ficção amazonense (Não recomendado para menores de 16 anos, 85minutos).
Curtas dos dia
Abigail
De Isabel Penoni e Valentina Homem.RJ/PE, 17 min.
Uma antropóloga que também é diretora de teatro e uma artista visual com uma paixão comum: o cinema. A dupla aproveita a diversidade e as semelhanças de saberes para criar o curta. A história une pontos que conectam o indigenismo e o candomblé, por meio das lembranças de um encontro com uma terceira mulher.
O delírio é a redenção dos aflitos
De Fellipe Fernandes. PE, 21min.
É tempo de mudança para Raquel: ela pretende preservar a segurança da família, abrigada em apartamento condenado.
Estado itinerante
De Ana Carolina Soares. MG, 25min.
Uma linha tênue entre ficção e realidade desponta. Ao contar a história de Viviane, uma cobradora de ônibus, a diretora e roteirista aborda a violência doméstica e urbana na periferia de Belo Horizonte. A partir da luz natural e um som mais grave, a estética do filme pretende potencializar o realismo.