Os escombros ideológicos que dividiram o país, os ricos e os pobres, os nordestinos e os sulistas, os amigos de boteco e até mesmo o almoço de domingo, a partir de hoje, são os cacos de um Brasil que a presidente reeleita Dilma Vana Rousseff, 66 anos, precisará juntar. A nação que ela recebe das próprias mãos, legitimada por 54,5 milhões de votos após uma das eleições mais duras e eletrizantes desde a redemocratização, é um cavalo arisco. Bem mais difícil de montar. ;Em 2010, Lula entregou um pôneizinho pacato chamado Brasil para ela passear;, brinca, em tom irônico, um ex-ministro petista. Com o coração embrulhado cuidadosamente pelo marqueteiro João Santana na campanha eleitoral, ela sabe mais do que nunca que o adjetivo ;valente;, que pulsa orgulhoso desde os tempos mais tenebrosos da nossa história para vencer a tortura e que venceu um câncer em 2009, terá que se reinventar novamente e seguir firme até 2018.
A ;tia;, como é chamada por uma ala petista, que sai das urnas agora comentou com confidentes que a tarefa dos próximos quatro anos é muito mais difícil. Tem repetido para os seus que a missão se tornará menos tortuosa se reconquistar o empresariado, azeitar a máquina pública, aprofundar as transformações sociais brasileiras e, sobretudo, fazer o que ela não tem a mínima paciência: articulação política com os ;picaretas de sempre; para que o Brasil caminhe no asfalto liso da governabilidade.
Em resumo, acreditam alguns petistas, que o slogan de sucesso criado por João Santana para o segundo turno, na verdade, estava manco. Se fosse proibido mentir em propagandas eleitorais, carecia de mais duas palavrinhas mágicas: governo novo, ideias novas e o velho PMDB. ;Não basta ter a consciência disso. Ela tem mesmo é que ter paciência e um pouco de boa vontade. Para Dilma, o PMDB e boa parte dos partidos, incluindo até o PT, são formados por alguns picaretas profissionais. Os partidos, no entendimento dela, são feito aqueles namorados em fim de relacionamento que a pessoa não aguenta nem escutar mais a voz;, resume um ex-ministro bastante ligado à dupla Lula e Dilma.
O mesmo interlocutor diz que ela sabe, mesmo extremamente contrariada, que não há muito o que fazer. A fórmula é bastante evidente. ;Após esse primeiro governo, sobretudo nos últimos dois anos, ela começa a entender que, para o barco chegar até a outra margem, é preciso remar com os picaretas. Então, meu amigo, com os picaretas ela remará;, diz.
Um deputado do PT paulista, que repetiu oito vezes que o nome dele não poderia aparecer nesta matéria nem por decreto presidencial, disse temer a segunda gestão da presidente e, segundo ele, amiga. Alega que o temperamento centralizador e explosivo possa voltar com ainda mais força. ;Ela vai para o seu último mandato, não deve mais muita satisfação a essa banda do PT que ela detesta.; Para ele, Dilma é tinhosa, cabeça dura. Brinca que a presidente tem uma lista na cabeceira com o rosto de cada petista que inflamou o ;Volta, Lula;.
Independência
Dilma é daquelas pessoas que defendem seu ponto de vista até o fim. ;É uma mulher que não tem paciência para esse nhém-nhém-nhém político. Não tem mesmo. Ela é uma mulher séria, extremamente correta. Disso, nem a oposição duvida. Ela quer fazer o certo, mas é feito aquele jogador trombador que tenta passar por dentro do defensor para marcar o gol. Não toca de lado. Ou ela se abraça de vez com Lula ou vamos para o buraco. Essa é a verdade e é com esse pensamento que ela vai subir a rampa do Planalto;, diz o deputado paulista.
Abraçar-se de vez com Lula, no código dos companheiros do partido, significa ceder e aguentar as víboras com veneno vermelho que rondam o Palácio do Planalto. Entretanto, é ter a mínima garantia de que as coisas possam seguir por um trilho mais seguro. De 2010 para cá, a presidente, com números e dados oficiais saindo pelos bolsos, acumulou milhagem para entender melhor a relação com Lula. Tentou, e de certa forma conseguiu, amenizar o carimbo do criador e da criatura.
O ex-deputado Sigmaringa Seixas, muito ligado a Lula e a Dilma, acredita de fato que ela sempre teve uma grande independência na gestão. ;Claro que Lula conversa com ela. É muito difícil que uma pessoa que se torna presidente na situação que ela chegou, substituindo um mito, é muito difícil que essas coisas não sejam interpretadas pelo viés da subserviência. Conheço o Lula muito mais do que ela e isso não existe. Ela troca, conversa. Isso é normal. Ele, definitivamente, não conduz o governo dela e nem vai conduzir;, atesta o amigo do ex-presidente.
Há quem diga exatamente o contrário. Em momentos de apuro, Dilma fica aflita quando não sabe a opinião de Lula sobre temas delicados para seu governo. A relação entre os dois já teve altos e baixos. ;Quando ele percebe que o bicho tá indo mesmo para o brejo, arruma um jeito de aparecer. É feito aquele Mestre dos Magos (da Caverna do Dragão). Com uma diferença: ele indica o caminho correto;, diz um jovem assessor palaciano.
Broncas e gritos
Pessoas próximas garantem que qualquer gesto público que fique patente o dedo de Lula irrita profundamente a presidente da República. Na convenção que confirmou oficialmente sua candidatura, Dilma não conseguiu disfarçar, entre assessores, o constrangimento após o discurso do amigo. Ao falar para a militância, definiu-se como criador e a chamou de criatura. Todos sabem disso, mas, saindo da boca da maior estrela petista, deixou a presidente da República num papel secundário.
Mas Dilma conseguiu, ao longo dos últimos quatro anos, imprimir a imagem de gestora. Os primeiros sinais de independência não demoraram a aparecer. Nos seis primeiros meses de governo, sete ministros, grande parte remanescente do governo Lula, foram demitidos. A faxineira da República mostrava que, com ela na cadeira da Presidência, a conversa era diferente. Os afastamentos ocorreram após desvios éticos dos que integravam o seu time. ;Muita gente ficou aflita porque não imaginava que poste andava sozinho. Acendeu um alerta no petismo mais tradicional. Mas quem conhecia Dilma desde a época em que ela era ministra sabia que não seria fácil;, diz um ex-ministro.
Do meio para o fim da gestão, a presidente precisou tirar o pé do acelerador. Na articulação política, a ex-ministra Ideli Salvatti, os ouvidos do Planalto que mais tomaram gritos oficiais, se atrapalhava. A presidente conheceu rebeliões na Câmara e colecionou derrotas sucessivas em temas importantes para o governo.
No auge da crise, os gritos se acentuavam. Quem conhece Dilma de perto, relata que, quando está irritada, não mede palavras. Trata da mesma maneira o servidor do cafezinho e o ministro mais importante do governo. Utiliza o mesmo tom autoritário para determinar a mudança em pontos cruciais de um projeto importante e para ordenar a cabeleireira Fátima Nery a pintar exatas oito mechas em seu cabelo.
O ex-ministro do Meio Ambiente Carlos Minc, que participou dos governos Lula e Dilma e conhece a petista desde o tempo da ditadura, define o corretivo presidencial como trepidante. ;O que tira o sono da presidente é quando não entregam as coisas dentro do prazo, dentro do cronograma. Ah meu amigo, a cobrança é forte, mas nada que ultrapasse a linha do desrespeito, aquela coisa que falam que ela destrata as pessoas. Nunca vi isso. Cobrança forte sim;, diz.
Caso Petrobras
A gerente durona consegue, vez por outra, desligar a tomada da Presidência. ;A Dilma gosta de um carinho, de um afago. Quando eu queria aprovar algum parque, a levava num restaurante italiano que ela gostava chamado Unanimità, dava um disco, um brinco de âmbar. Ela gostava muito. Ela não gosta daquela coisa baba-ovo;, diverte-se Minc.
Sigmaringa conta que o que tira a presidente do sério é alguém questionar a integridade moral dela. ;O adversário levantar qualquer dúvida a respeito do caráter dela. Quando provoca, isso tira ela do sério;, diz. Alguns petistas mais ligados a Lula avaliam que, no caso da Petrobras, por exemplo, tomada pela emoção, a presidente acabou metendo os pés pelas mãos. Com mais controle, teria matado a bola no peito e resolvido a situação.
A imprensa denunciou que a Petrobras pagou pela Refinaria de Passadena, nos EUA, quase 27 vezes o valor pelo qual a empresa americana havia sido vendida em 2005. Na época em que o negócio foi fechado, Dilma era ministra de Minas e Energia e presidia o Conselho de Administração da estatal. Quando o caso voltou à tona, ela mesma bateu uma resposta e determinou que o seu ministro da Secretaria de Comunicação Social, Thomas Traumann, encaminhasse a nota para a imprensa. Ele apenas ajeitou as vírgulas fora do lugar e cumpriu a ordem. ;O Lula nunca cairia numa dessas. Ela acabou dando a matéria de mão beijada para a imprensa. Ao responder daquela forma, admitindo não ter tido todas as informações do projeto executivo da Refinaria de Pasadena, se colocou dentro do problema. Levou a Petrobras com todas as manchas de óleo para dentro do Planalto. O Lula ficou p...;, conta um assessor da Esplanada.
Um amigo da presidente reforça que o escândalo da Petrobras só explodiu por causa dela. ;Ela teve a coragem de meter a mão e tirar todo mundo. Ela é uma pessoa tão preocupada com a correção das coisas. Se ela fosse uma política esperta, profissional, que tanto nós criticamos, não teria mexido. E ficaria tudo do mesmo jeito;, analisa.
Resposta às ruas
Quando as manifestações de junho de 2013 explodiram, Dilma percebeu que precisava mudar a postura. Reunia-se quase que diariamente com um grupo seleto de ministros. Era preciso mostrar que estava aberta ao diálogo, que queria ouvir todos os segmentos. Mesmo sem muita paciência. ;Ela fez meia dúzia de reuniões com os movimentos sociais. O problema era que isso não soava natural. Os encontros eram travados;, revela um assessor da Esplanada. Em resposta aos protestos, a presidente resolveu priorizar a Saúde. A ideia de trazer médicos de fora, que já era trabalhada dentro do governo, não podia esperar. E a ordem foi clara.
;Viramos a noite preparando tudo. Quando se vai apresentar um projeto a Dilma, você precisa ter resposta para tudo e parecer muito seguro. Se ela percebe que você não sabe responder é o fim do mundo. A presidente gosta de número e de saber todas as brechas e falhas. Ela é dura na queda, e a gente já entra no gabinete perdendo o jogo de um a zero;, conta um ex-integrante do Ministério da Saúde que participou ativamente da elaboração do programa. O nome inicial seria Mais Médicos para o Brasil. João Santana cortou ;o para o Brasil; e ela aceitou.
No convívio, Dilma consegue, vez por outra, se desligar do trabalho. ;Gosta muito de literatura. Se você chamá-la para discutir um livro, ela vai longe;, conta Sigmaringa. A presidente gostava bastante de discutir literatura com Marcelo Deda, ex-governador de Sergipe, falecido em dezembro do ano passado após ser diagnosticado com um câncer. Dilma, que quando era pequena queria ser bailarina, adora arte. Conhece quadros e fica feliz em identificar os autores. Entre os pintores, gosta do italiano Caravaggio, do francês Matisse e do brasileiro Iberê Camargo. Não é de beber muito. Enrola o anfitrião com a mesma taça de vinho a noite inteira. ;É uma pessoa que, no convívio, tem um bom humor danado. É difícil acreditar, né? Não passa essa imagem. Gosta de contar histórias;, comenta Sigmaringa Seixas. Na saída do debate da Rede Globo, na última sexta-feira, a presidente do bom humor apareceu. ;Beijinho no ombro é a grande coisa da vida. Causamos;, brincou.
No ano passado, driblou a segurança e deu uma volta por Brasília na garupa do secretário executivo do Ministério da Previdência, Carlos Gabas. Adora cachorros. Tem Nego, um labrador preto que ganhou de presente do ex-ministro José Dirceu; Fafá, uma daschund que estava perdida pelas ruas de Brasília, e um outro labrador dado por uma tabeliã do Ceará. É viciada em séries de televisão. Adora Downton Abbey , Game of Thrones e House of Cards. É fã de Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Alcione e Fernanda Takai, da banda Pato Fu. Também gosta de Lucy in the sky with diamonds e All you need is love, dos Beatles, e Drão, de Gilberto Gil.
O advogado Carlos Araújo, chamado de Gordo por Dilma, foi casado com a presidente por 30 anos. É pai da sua única filha, Paula. Eles são amigos até hoje. Sempre que podem, se encontram. Falam de tudo. De política a amenidades. Dilma é mulher de hábitos simples. No início do governo Lula, quando ministra de Minas e Energia, dirigia seu próprio Fiat Tipo até o salão de Fattinery, localizado no Hotel Kubitschek Plaza, no Setor Hoteleiro Norte. ;Ela não era vaidosa. Nunca se maquiava. Hoje, vejo pela televisão que ela anda fazendo a sobrancelha. Melhorou muito o visual;, conta a cabeleireira Fátima Nery. ;Ela nunca foi muito de conversa. Chegava aqui e resolvia. Às vezes, ficava pendurada no telefone com ministros. Daquele jeito dela. Eu sugeri a ela que clareasse o cabelo. Era muito largada;, diz.
Arroz e batata frita
Quando ministra, almoçava quase sempre no trabalho. No cardápio, salada, arroz integral e alguma carne. Para beliscar, gosta de uva-passa, damasco seco e queijo grana padano. Sua especialidade na cozinha é um guizado de carne, mas a presidente gosta mesmo é de feijão com arroz e batatas fritas. É compulsiva por leitura desde muito jovem.
O pai, um imigrante búlgaro que veio para o Brasil fugindo dos efeitos da guerra e se tornou empresário em Minas Gerais, é o grande responsável por incutir a literatura na vida da filha. Dilma perdeu o pai aos 14 anos. Dois anos antes, ela havia lido o clássico Germinal, de Émile Zola, que retrata as condições subumanas a que eram submetidos os trabalhadores em minas de carvão francesas, e Humilhados e ofendidos, de Fiódor Dostoiévski. Em entrevista ao Correio em 2010, o primeiro marido da petista, Cláudio Galeno Linhares, que hoje mora com a mulher na Nicarágua, disse que eles liam de tudo. ;Líamos tudo, Sartre, Simone de Beauvoir, João Cabral de Melo Neto, livros históricos sobre o Brasil e a América Latina e também literatura política;, lembra.
A presidente nasceu em Belo Horizonte em 14 de dezembro de 1947. Filha de Dilma Jane, 90 anos, que mora com ela no Alvorada, tem um irmão, Igor Rousseff. A irmã, Zana Lúcia, é falecida. Durante a ditadura, muito jovem, Dilma integrou organizações clandestinas de esquerda como Polop, Colina e VR-Palmares. Carlos Minc conta que ela não pegava em armas. Não faltava uma reunião e sempre trazia discussões e reflexões intelectuais para o grupo. ;Sempre foi muito concentrada;, comenta.
A tortura
Na tarde de 16 de janeiro de 1970, foi presa e torturada por três anos. Sobre o assunto, até pela posição que ocupa, não costuma falar publicamente. Uma das poucas vezes em que falou em público, numa audiência no Senado enquanto era ministra-chefe da Casa Civil, deu uma dura resposta ao senador José Agripino (DEM). Ele disse que Dilma já tinha mentido lá atrás, referindo-se ao período da ditadura. Numa resposta longa e emocionada, disse que mentiu para salvar vidas.
Foram quase três anos de cadeia: de janeiro de 1970, quando foi capturada no Centro de São Paulo, a dezembro de 1972, quando saiu, 10 quilos mais magra, do Presídio Tiradentes. Em depoimento prestado em 2001 ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), revelou o sofrimento pessoal. ;As marcas da tortura sou eu;, resumiu.
Explicou em detalhes como era torturada. Os dentes um pouco para fora da presidente têm explicação. ;Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para outro lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente deslocou-se e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (capitão Alberto Albernaz) completou o serviço com um soco, arrancando o dente;, disse. Ao contrário de Lula, a presidente conseguiu instalar a Comissão Nacional da Verdade para apurar os crimes cometidos durante a ditadura.
Na clandestinidade, casou-se com Galeno, e apaixonou-se pelo seu segundo marido, Carlos Araújo, advogado e militante gaúcho. Ao sair da prisão, Dilma seguiu para Belo Horizonte. Um ano depois, mudou-se para Porto Alegre. Graduada em economia, esperou o marido, que cumpria pena de quatro anos, sair da prisão. Em 1976, nasceu Paula Rousseff Araújo, mãe de Gabriel, de 4 anos, que veio ao mundo durante a campanha de 2010. O casal engajou-se na luta pela anistia e na fundação do PDT no Rio Grande do Sul.
A cabeleireira Fátima Nery conta que, numa das primeiras vezes que ela foi ao salão, houve um problema. ;Quando a manicure foi pegar nos pés dela para fazer as unhas, ela tirou repentinamente. Tem uma sensibilidade muito grande. Ela não falou, mas percebemos que era a lembrança da tortura;, conta. Em 2009, ao Correio, a petista resumiu os efeitos da tortura: ;Não tem nada mais grave do que desonrar a pessoa e deixá-la viva;.