Historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com mestrado e doutorado em sociologia, Mauro Iasi é o candidato do Partido Comunista Brasileiro (PCB) à Presidência da República. Entre suas propostas, destacam-se a adoção de um planejamento econômico com controle estatal sobre setores estratégicos, como energia, saúde, educação e transportes, a desoneração da renda do trabalhador e o aumento da tributação de grandes fortunas e patrimônios.
O Brasil é apontado como um dos países com maior carga tributária no mundo. No Congresso, tramita uma proposta de reforma tributária que pouco tem avançado. Quais os planos do seu governo para equacionar essa questão e minimizar o desgaste político que isso pode gerar?
Ainda que seja grande, a carga tributária no Brasil não é uma das maiores do mundo. Pelo contrário, no ranking, é um país com pouca carga tributária. O problema não é o peso da carga tributária, mas onde ela incide. A maior parte dos tributos incide sobre o consumo. As grandes fortunas e o patrimônio são pouquíssimo taxados. Tratar o salário como renda, recolhendo previamente um tributo para ser devolvido no fim do ano, penaliza justamente aqueles que não podem reagir, o que resulta em uma série de mecanismos que podem levar à sonegação. A parte que vem dos trabalhadores assalariados é cerca de dez vezes maior do que a que vem dos bancos, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. É aí que se concentra a maior parte da contribuição dos bancos, setor que tem hoje faturamento exorbitante. E essa desigualdade na tributação gera as principais distorções que queremos combater. É possível combater isso sem enfrentar resistências? Tenho certeza de que não, porque as pessoas sempre pensam na reforma [tributária] com os dividendos eleitorais, do atendimento às demandas apresentadas pelos que financiam suas campanhas. Se há um conjunto de empreiteiras, bancos e grandes empresas financiando campanhas, é evidente que não aceitarão mudanças que resultem em uma parcela maior do tributo para eles. É possível fazer uma reforma respeitando os princípios constitucionais vigentes, na medida em que você não se preocupe em ferir interesses privados. Se você não faz nada no Brasil para não ferir os interesses de quem financia sua campanha, a reforma tributária continuará no papel.
O Plano Nacional de Educação (PNE) é considerado uma grande conquista para o setor. Como o senhor pretende, em quatro anos, avançar nas pautas indicadas na lei, que compreendem desde a educação infantil à pós-graduação e incluem também melhorias na infraestrutura das escolas? Como pretende resolver a questão do financiamento?
O Plano Nacional de Educação é um profundo retrocesso na educação pública, em vários aspectos, mas vamos apenas citar dois. Ele consagra o princípio pelo qual o Poder Público desvia recursos para o setor privado. Hoje temos um paradoxo em que o setor privado só existe no ensino superior, devido ao enorme subsídio do Poder Público por meio do ProUni [Programa Universidade para Todos], do Fies [Fundo de Financiamento Estudantil) e de outros instrumentos. É um contrassenso o setor privado funcionar apenas pela garantia da sua lucratividade, por um pesado subsídio público. A educação tem que ser integralmente pública. Os princípios debatidos por aqueles que pensam a educação no Brasil ; e podemos remeter isso até a década de 30, no Manifesto dos Pioneiros, com Anísio Teixeira e outros ; incluem uma estrutura pública capaz de garantir qualidade e universalidade a essa educação. É o nosso grande desafio. O PNE foi elaborado pelo setor privado do ensino, controlado por quatro ou cinco empresas, muitas delas profundamente vinculadas ao capital internacional, que formam um lobby poderoso das escolas privadas, e por institutos que dão a linha, inclusive metodológica e pedagógica, para a educação brasileira, como o Instituto Ayrton Senna, que tem poderosos interesses privados por trás, que se expressa, por exemplo, na entrega do ensino técnico ao Sistema S [formado pelo serviços Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), Social do Comércio (Sesc), Social da Indústria (Sesi), Nacional de Aprendizagem do Comércio (Senac), Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop) e Social de Transporte (Sest)]. Isso é impensável para qualquer um que pense em um sistema público de ensino, principalmente em áreas importantes como a técnica e a tecnológica. Houve um encontro nacional de educação no Rio de Janeiro em que se fez um contraponto ao PNE, apontando a necessidade de financiamento 100% público e 100% dedicado à esfera pública, com uma proposta de ensino e aprendizagem que é negada nesse plano. No PNE, desaparece a relação ensino-aprendizado. É um plano de adestramento, de desenvolvimento de aptidões e técnicas, voltado muito mais para os anseios e necessidades da camada empresarial, e não da formação crítica e reflexiva, de uma educação integral, politécnica. Uma integração que desenvolva o ser humano em todas as dimensões. Somos contra o PNE. E os movimentos sociais, os sindicatos, o Andes-Sindicato Nacional [Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior], o movimento em defesa da educação pública estão elaborando um contraponto a esse plano.
O Brasil tem registrado uma expansão da educação e da inclusão de crianças, jovens e adultos em todas as etapas de ensino. Ao mesmo tempo, há falhas no ensino que aparecem em avaliações nacionais, como a Prova Brasil, e internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Como garantir o acesso e ao mesmo tempo melhorar a qualidade?
O Banco Mundial fez uma avaliação no Brasil, décadas atrás, e constatou o que já sabíamos: enormes contradições no sistema educacional quanto ao acesso e à qualidade. Isso gerou como propostas, desde os governos de Fernando Henrique Cardoso, e infelizmente não foi alterado nos 12 anos de governo petista, uma lógica pela qual se corrigem os índices, mas não a educação. Se é criado um programa de aprovação e progressão continuada, diminuem-se os índices de reprovação. Quando se aumenta o acesso das crianças à escola, a malha escolar aumenta e caem os índices daqueles que estão fora da escola. Se você alfabetiza, diminui os índices de analfabetismo. Criticamos, há muito tempo, o fato de que essa forma de expansão, sem cuidar dos investimentos adequados, da qualidade, da metodologia, tem reduzido o número de analfabetos e aumentado do número de analfabetos funcionais. Aumenta-se a entrada das crianças na escola, mas aumenta-se também a evasão. Você aumenta o número de escolas, mas tem escolas superlotadas, com menor número de professores e salários baixos, como ocorre, por exemplo, com o ensino público no Rio de Janeiro. É uma realidade em que adequamos a política educacional às demandas e diretrizes do Banco Mundial. E não usamos o acúmulo que temos no pensamento crítico, no pensamento pedagógico-educacional do país, muito rico e, em vários aspectos, referência para a América Latina e para o mundo, para pensar nosso sistema educacional. Fomos, servilmente, moldando a educação aos parâmetros do Banco Mundial. Daí, o sistema de avaliação, que é um sistema vazio, mede índices, e não qualidade de ensino. É o caminho na contramão do que outros países fizeram, apostando em maior investimento na educação. Aqui, o investimento em educação é pífio. O movimento em defesa da escola pública lutava, no mínimo, por 10% [do PIB] para a educação. E o projeto apresentado pelo PNE remete o cumprimento dessa meta para daqui a 20 anos. Só para ter um dado: a Academia Brasileira de Ciências calcula que, apenas no setor da pesquisa e desenvolvimento da ciência, seriam necessários 2% em 20 anos para começar a resolver os problemas. Na educação brasileira, o problema é tanto de investimento quanto de concepção. Queremos romper com essa proposta de adequar a educação aos parâmetros do Banco Mundial. Se não fizermos isso, teremos uma fachada: melhora nos índices e piora sensível na qualidade da educação, que vai se refletindo cada vez mais em uma lógica geracional. Cada geração ficará num patamar inferior ao da que veio antes. Há estudos na universidade brasileira sobre educação básica mostrando que, depois do reajuste feito buscando a produtividade nos índices, a produtividade ficou menor, se comparada com a forma como era feita a educação há duas décadas. É necessário mudar radicalmente de rumo, e não é na direção que o PNE aponta.
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas fossem identificadas e demarcadas. Passados 21 anos do fim desse prazo, pouco mais de 44% foram homologados. A falta de definição sobre essas áreas acaba sendo uma das principais causas do aumento de conflitos e da violência no campo. Como o senhor pretende resolver a questão da demarcação de terras indígenas?
O atraso não foi por motivos técnicos, nem jurídicos. O que atrasou a demarcação foi o conflito com interesses econômicos de madeireiros, produtores de arroz, mineradores ou do próprio governo, quando pensamos, por exemplo, na construção de usinas hidrelétricas e na aprovação do uso daquele espaço para outros fins que não a demarcação. Essa lógica acabou criando um conflito que alcançou dimensões dramáticas, não apenas nos assassinatos de líderes indígenas, mas também na violência com que os grandes produtores rurais e madeireiros vêm se contrapondo à demarcação das terras. É uma situação dramática quanto à existência das nações indígenas em suas terras originárias. No caso das nações indígenas, não se trata apenas do número de hectares, mas de toda uma dimensão cultural envolvida, que tem sido frequentemente desrespeitada. As questões indígena e fundiária não se resolvem de maneira isolada uma da outra. É preciso pensar a questão indígena no conjunto de uma profunda reforma agrária, de uma mudança da política fundiária e no princípio de respeito à autonomia dos povos. Ainda tratamos as nações indígenas sob a lógica da ditadura militar, que é de tutela. Ainda que, juridicamente, isso tenha mudado, que tenha sido modificado pela Constituição, na prática, ainda não nos relacionamos com as nações indígenas com a autonomia que elas merecem. É preciso respeitar seus valores, sua história, suas terras ancestrais. A mudança de paradigma exige mudanças mais profundas que a mera demarcação. Ela remete diretamente à política fundiária e à reforma agrária, porque, senão demarcam-se terras e, no dia seguinte, haverá conflitos com os mesmos interesses que hoje tensionam e impedem a demarcação.
As grandes manifestações do ano passado, que começaram em São Paulo, trouxeram a reivindicação do passe livre no transporte público. É possível tornar essa reivindicação uma realidade? Como? Como o governo federal pode atuar para garantir melhorias na mobilidade urbana nos grandes centros?
Na década de 80, houve várias experiências municipais de criação de empresas públicas de transporte, que mostraram resultados em algumas cidades. Em São Paulo e em outras capitais, já se ensaiavam experiências de passe livre ; passes subsidiados de transporte integrado, de trens, metrôs e ônibus, ou tarifa zero, como foi pensado em alguns casos. Do ponto de vista da gestão e dos recursos, é perfeitamente possível. Na passagem dos anos 80 para os anos 90, houve uma reversão brutal disso. As antigas concessionárias pressionaram e conseguiram reverter municipalizações feitas no início dos anos 80, sob o pretexto de que era mais barato. As empresas poderiam estabelecer uma tarifa social, desde que houvesse uma gestão tripartite: concessionário privado entraria com os recursos, a renovação da frota e os custos de operação; o Estado, com subsídios para manter as tarifas numa realidade social aceitável; e a população, que seria a terceira parte, vigiaria isso. Falhou. Não só porque o transporte coletivo tornou-se lucrativo para as empresas, por um método que é extremamente nocivo para a população. Como o empresário opera para ter lucro no setor de transportes? Não renovando a frota como devia, priorizando linhas nobres e retirando ônibus da periferia. Ele faz isso achatando salário de funcionários, produzindo dupla função, como quando o próprio motorista cuida da catraca. Isso é nocivo tanto para os trabalhadores quanto para a população. Então, o Poder Público acabou subsidiando o setor, para que a taxa de lucro ficasse em patamares aceitáveis. Estudos mostram que os mesmos recursos aplicados pelo Poder Público poderiam garantir de imediato um sistema de transportes mais adequado às necessidades da população. É um tabu na gestão pública: o transporte custa dinheiro e o governo tem que desembolsar. Não é custo, é um gasto necessário a ser computado entre os gastos do Poder Público. Existem linhas que não dão lucro, mas são essenciais para a mobilidade urbana, serviços em que é necessária a renovação para manter a qualidade e que envolvem investimentos que não existe sem financiamento público. Por que o financiamento público não pode ir para um setor tão importante? Porque está comprometido com o serviço da dívida e estrangulado pela LRF. Se é um programa essencial e se é um direito, ele poderia ser feito ; e aí não há como realizá-lo sem maior intervenção do Poder Público federal. Não se pode acreditar que os diferentes municípios garantam a homogeneidade de tal serviço apenas com recursos próprios. É aí que o pacto federativo deve funcionar de maneira incisiva. Os estados que têm mais condições podem garantir para seus municípios. E o poder federal precisa complementar para garantir um serviço que deve ser gratuito, pois é um direito, e não um serviço a ser vendido no mercado para dar lucro a um setor privado ou outro.
As unidades básicas de Saúde desempenham papel central na garantia de acesso à saúde. Dotar essas unidades de infraestrutura adequada e de profissionais suficientes é um desafio para o país, que tem hoje 5.570 municípios. Como garantir a manutenção de um sistema de saúde público, universal e gratuito e enfrentar esses gargalos? Como suprir a falta de médicos nas regiões mais isoladas?
Aí, o planejamento também faz muita falta, porque houve um processo intenso de privatização no setor de saúde. Um princípio, a nosso ver, incorreto, em que parte da população pode e deve conseguir acesso aos bens e serviços do setor pela via do mercado, por planos de saúde. Isso, na suposição inicial, levaria o Estado a concentrar recursos onde eles são mais necessários, tornando a saúde pública [um serviço] de qualidade. As duas coisas estão falhando. Nem o setor privado oferece um bom serviço. São campeões de reclamação por parte dos usuários, os planos são caros, não cobrem o que prometem e mudam frequentemente a rede conveniada, criando uma situação de insegurança entre o momento em que se faz o plano e quando se vai usá-lo. Sem contar com cláusulas que acabam sendo impeditivas. Para ser lucrativos, os planos só querem pegar uma faixa etária, que tira as crianças e os idosos, e cobrar preços exorbitantes, quando se quer incluir essas faixas no plano. Enquanto isso, o setor público também carece de infraestrutura, de médicos e outros profissionais. E está sofrendo uma privatização, na medida em que o poder, para fugir da LRF, tem jogado os contratos de execução de serviços de saúde para organizações sociais (OS) e fundações. Isso gerou um caos na saúde. Temos uma tradição, que é a reforma sanitária, o movimento sanitarista, que pode pensar programas e projetos integrados de saúde, que comecem por redefinir a própria concepção da relação entre saúde e doença. Hoje a medicina é totalmente voltada para métodos curativos: espera-se o problema ocorrer para tratá-lo nas redes conveniadas privatizadas ou públicas. É preciso mudar essa concepção e ter uma política de saúde preventiva, pensar a saúde a partir de vetores como saneamento básico e educação, que é a raiz da proposta do movimento sanitário. O SUS [Sistema Único de Saúde] é só uma consequência disso. Ele foi praticamente transformado no único elemento da reforma da política sanitária e hoje está descaracterizado por uma privatização, terceirização ou quarteirização. O que acontece com as OS é que elas recebem verbas vultosas do Poder Público, o que já seria uma terceirização, e acabam sendo intermediárias de empreiteiras que contratam força de trabalho em vários setores, gerando aí a quarteirização. Isso acaba quebrando qualquer possibilidade de uma política consistente de saúde. Mais uma vez, apelamos para um estudo que levasse em conta o volume de recursos gastos para manter isso. E, mesmo que o volume de recursos ainda seja menor do que o necessário, já seria suficiente. Uma vez aplicado no setor público, com uma estrutura em que as pessoas sejam atendidas gratuitamente onde e quando precisam, teríamos um serviço de saúde público, universal e estatal. E se eliminaria a dependência do setor privado de subvenções para acabar prestando um péssimo serviço. Há exemplo disso não apenas em países socialistas, mas também no Canadá, na França e na Inglaterra. Quando se comparam os sistemas, vemos que é possível, embora custe dinheiro. Tem que ter recursos. Isso não é feito para que 43% do nosso orçamento sejam gastos com serviço da dívida, por exemplo, nem para que um volume considerável seja desviado tanto para o setor financeiro quanto para empreiteiras, ou em forma de subsídios para o agronegócio, que são setores econômicos altamente lucrativos e não precisariam de subsídio do Estado. É uma grande contradição que setores públicos essenciais não tenham o recurso necessário para se viabilizar. Na verdade, interessa não viabilizá-los, de modo a gerar uma demanda para que grandes corporações privadas usem isso como mercado. Também não nos espanta que, na lista dos financiadores de campanha, apareçam grupos de medicina privada. Eles têm um lobby para definir a política de saúde no Brasil.