Estudiosos, no entanto, reconhecem que os conceitos macroeconômicos para o enfrentamento da crise em discussão contêm várias mudanças de paradigmas. Um deles é o fato de que, apesar das divergências entre as duas correntes, existe uma espécie de consenso de que o Estado ainda precisará estar muito presente na economia para corrigir as fissuras sociais, ampliadas desde a recessão de 2015-2016.
A saída pelo lado desenvolvimentista, aliás, está sendo adotada pela maioria dos países que terão forte aumento da dívida pública, a exemplo da União Europeia, com mais um mega plano de resgate econômico, de 750 bilhões de euros, recentemente aprovado. As projeções de dívida pública dos países europeus indicam uma explosão e mostram que o mercado, sozinho, não se regula. O Estado precisará intervir nesse processo durante a crise e no pós-crise. Para os neoliberais e fiscalistas, esse é um “momento de exceção”, e o tamanho e a duração desse socorro com gasto público depende da capacidade fiscal de cada governo.
Caminho do meio
Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e diretor do Center for Macroeconomics and Development, em Washington, não vê contradição apontada por fiscalistas entre o país ter um programa de renda mínima para a população e conduzir um ajuste fiscal “crível e gradual”. De resto, custear um programa de renda básica é recomendação da maioria dos órgãos multilaterais para os países emergentes. “É preciso, justamente, uma conciliação das duas coisas. Não podemos evitar a realidade brasileira, que tem uma desigualdade muito elevada, no enfrentamento da crise”, pondera.
Márcio Holland, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e diretor da Secretaria de Política Econômica (SPE) entre 2011 e 2014, lembra que há controvérsias sobre os efeitos de um ajuste fiscal. É preciso tomar cuidado, porque, nem sempre, aumento de gasto em uma economia em contração significa retomada da atividade. “Na literatura internacional, há controvérsias sobre o princípio keynesiano de que toda vez que o gasto público aumenta a renda cresce. É uma visão ingênua”, compara.
Marcelle Chavaut, professora da Universidade da Califórnia, reforça que os argumentos entre fiscalistas e desenvolvimentistas têm mérito, mas a saída é buscar um meio termo. “O governo deve gastar emergencialmente, porque esse é um momento de crise. É como se fosse uma economia em guerra — no caso, contra o choque inesperado do vírus. Os governos, na maioria dos países, estão gastando emergencialmente. É uma necessidade no momento. Porém, há gastos que são mais eficazes para minimizar os efeitos negativos na economia. O importante, agora, é que o governo não assuma gastos de longo prazo e realoque recursos no curto prazo para garantir um mínimo de renda à população, facilitação de crédito ao setor produtivo e auxílio emergencial aos estados”, defende. Para ela, no médio prazo, o ajuste fiscal estrutural deve ser retomado, “mas com a contrapartida de realocação de gastos para investimentos produtivos em capital humano, como saúde, educação e segurança”. No caso brasileiro, analistas lembram que o gasto público já é elevado há muitos anos, contudo, isso não refletiu em crescimento econômico devido à falta de políticas públicas bem-elaboradas e voltadas para o desenvolvimento.
Marcos Lisboa, presidente do Insper e chefe da SPE entre 2003 e 2005, avalia que o debate essencial não é a divisão entre fiscalistas e desenvolvimentistas, mas a redução do crescimento dos gastos. Ele lembra que, nas últimas décadas, os gastos do governo cresceram acima do Produto Interno Bruto (PIB), em média, 5% a 6% acima da inflação. Não há aumento de carga tributária que consiga acompanhar esse descasamento na questão fiscal. É urgente, pois, uma reforma do Estado e uma discussão sobre o tamanho dele. “No Brasil, não é possível cortar gastos e o que, historicamente, estamos vendo é que o Brasil tem uma série de gastos com crescimento vegetativo muito acima do PIB e da inflação. Existe crescimento real no gasto público. E isso é um paradoxo, porque o PIB cresce muito pouco e, com o gasto puxado por leis constitucionais, o debate essencial é como reduzir esse gasto obrigatório, pois o aumento da carga tributária nos últimos 25 anos não foi suficiente para cobrir esse aumento de despesa”, pontua.
Para os analistas, uma discussão sobre o tamanho dos gastos e limites para despesas com pessoal, com respeito ao teto salarial do funcionalismo, é um bom começo. Eles reconhecem que, em uma recessão como a atual, um ajuste fiscal tende a ser mais contracionista. Mas, uma expansão de gastos sem observar o controle do crescimento exagerado da dívida pública resultará em aumento de carga tributária, inevitavelmente.
“Enxugar gelo”
Os professores de economia José Luis Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB), e Luiz Gonzaga Belluzzo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), defendem uma saída da crise por meio do aumento do gasto público sem qualquer forma de ajuste fiscal durante a recessão. “Fazer ajuste fiscal quando a economia não cresce é como enxugar gelo. Não tem efeito algum”, pontua Oreiro. Ele lembra que o país não conseguirá recuperar o nível do PIB de 2014 em menos de uma década se continuar conduzindo ajustes fiscais que limitam o investimento público.
Para Belluzzo, o aumento do endividamento é importante para fazer a economia girar. E ele reforça que a origem da recessão em que o país está mergulhado na crise atual é resultado do ajuste fiscal iniciado pelo ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, em 2015, que atingiu em cheio o investimento público. “A questão fiscal e o equilíbrio orçamentário têm de ter uma concepção do conjunto e de como funciona a economia de mercado capitalista. É preciso avaliar as relações entre o fluxo de renda e o gasto com endividamento ao longo do tempo”, destaca Beluzzo. “Esse é o princípio da demanda efetiva, segundo o qual o nível de renda e emprego da economia como um todo é determinado pelas decisões de gastos das empresas, dos consumidores e dos governos”, emenda.
Holland, da FGV, e Lisboa, do Insper, defendem uma reavaliação dos gastos obrigatórios como forma de buscar um tamanho do Estado que caiba na arrecadação. Enquanto a ala militar do governo defende elevação do investimento em obras públicas, o professor da FGV reforça a necessidade de revisão nos critérios para os contratos. “Não adianta aumentar o gasto público se não houver uma melhor governança. O Brasil tem centenas de obras paradas, que desperdiçaram bilhões de reais, porque não há uma preocupação com a qualidade da despesa e avaliações sobre o impacto na economia”, critica Holland.
Dívida interna
Com o aumento dos gastos públicos que fazem o governo registrar rombos recordes, a dívida pública bruta do Brasil deverá ultrapassar 100% do Produto Interno Bruto (PIB), logo. Em junho, chegou a 85,5% do PIB, um recorde histórico, conforme dados do Banco Central, e isso também será um problema para os próximos anos, apesar de o país não ter uma grande dívida externa como nas crises do passado.
“A situação real brasileira é que temos uma dívida pública que vai circular em torno de 100% do PIB, patamar pouco administrável no Brasil, porque mais de um terço dela é de curto prazo e isso joga a favor das preocupações fiscalistas e não é possível haver crescimento econômico”, afirma Márcio Holland. “Não vai ter crescimento econômico enquanto não fizer a trajetória da dívida pública cair. Se ela continuar ascendente, os motores de crescimento futuro ficam comprometidos”, acrescenta o professor da FGV.
Na avaliação do economista, o fato de a maior parte da dívida ser doméstica — uma vantagem para os desenvolvimentistas, pois permite que ela aumente sem um controle mais duro — não deixa de ser um problema, também. Com prazos cada vez menores, a administração da dívida fica mais difícil, apesar de os juros, atualmente, estarem baixos. Isso porque, ao contrário de países desenvolvidos, o Brasil tem um péssimo histórico de calotes.
“O Brasil tem uma série de gastos com crescimento vegetativo muito acima do PIB e da inflação. Existe crescimento real no gasto público. E isso é um paradoxo, porque o PIB do país cresce muito pouco”
Marcos Lisboa, presidente do Insper
“O importante é que o governo não assuma gastos de longo prazo, e realoque recursos no curto prazo para garantir um mínimo de renda à população, facilitação de crédito ao setor produtivo e auxílio emergencial aos estados”
Marcelle Chavaut, professora da Universidade da Califórnia
“Não adianta aumentar o gasto público se não houver uma melhor governança. O Brasil tem centenas de obras paradas que desperdiçaram bilhões de reais, porque não há uma preocupação com a qualidade do gasto”
Márcio Holland, professor da FGV
“É preciso justamente uma conciliação das duas coisas. Não podemos evitar a realidade brasileira, que tem uma desigualdade muito elevada, no enfrentamento da crise”
Otaviano Canuto, diretor do Center for Macroeconomics and Development
“O país não pode passar ao largo de qualquer discussão sobre a necessidade de uma política de Estado. Esse debate de fazer o que cabe no Orçamento não é relevante no momento. Quem resolveu dividir esse assunto não entendeu o que é renda básica”
Monica de Bolle, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics
“A questão fiscal e o equilíbrio orçamentário tem que ter uma concepção de como funciona a economia capitalista. É preciso avaliar as relações entre o fluxo de renda e o gasto com endividamento ao longo do tempo”
Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp
Desigualdade é a maior trava para o crescimento
O aumento da desigualdade no Brasil é um dos principais fatores que explicam a falta de crescimento do país nos últimos anos. E, nesse cenário de estagnação global o Brasil, que já vinha crescendo pouco após a recessão de 2015-2016, mergulhou em uma nova crise ainda mais profunda sem ter saído da anterior.
Por conta disso, é consenso entre fiscalistas e desenvolvimentistas que o aumento da desigualdade, presente antes da chegada do novo coronavírus, será ainda mais profundo. Para eles, uma das lições desta crise é de que o governo precisa elaborar um programa melhor de assistência social, que dê garantias para uma renda básica aos mais vulneráveis.
Nesse sentido, o debate varia sobre o tamanho desse programa de renda básica, sua abrangência e duração. “A desigualdade é uma trava para o crescimento do país e, no Brasil, ela é um problema, porque é muito elevada. Um dos maiores motivos de um país ter renda média alta é que uma parcela grande da população teve acesso à educação de qualidade e formação técnica, como fez a Coreia do Sul”, comenta Otaviano Canuto, diretor do Center for Macroeconomics and Development. “O país paga um preço mais alto em termos de Produto Interno Bruto (PIB) por essa carência de educação de qualidade para uma parcela grande da população”, adiciona. “O Brasil não poderá evitar a realidade de um ajuste fiscal gradual e, ao mesmo tempo, pensar em mecanismos de proteção social para a parte debaixo da pirâmide”, pontua.
Monica de Bolle, pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics, em Washington, destaca que a crise atual provocada pela pandemia está mudando uma série de paradigmas da macroeconômica e, no momento, o debate para uma saída da crise passa, necessariamente, por uma maior atuação do Estado e pelo aumento de gastos. A especialista, que não se denomina fiscalista e, muito menos, desenvolvimentista, aponta a necessidade de um programa de renda básica universal como uma das ferramentas para o país sair dessa crise sem precedentes. Na visão da especialista, mesmo custando 1,5% do PIB, um programa nesse sentido seria extremamente salutar. “A pandemia atinge muito diretamente pessoas em situação de vulnerabilidade e que estão morando em aglomeração. O que começamos a ver nos dados de países diversos é como a pandemia expõe e torna uma situação desigual mais desigual. O Brasil é um país com imensos desafios para integrar economicamente uma parcela muito significativa da população”, explica.
De Bolle reforça que não é razoável não contar com uma rede de proteção social robusta. “O país não pode passar ao largo de qualquer discussão sobre a necessidade de uma política de Estado. Esse debate de fazer o que cabe no Orçamento não é relevante no momento. Quem resolveu dividir esse assunto não entendeu o que é renda básica”, afirma.
Marcos Lisboa, presidente do Insper, lembra que é importante uma discussão para garantir políticas públicas capazes de emancipar as famílias da situação de pobreza e não faz sentido algumas categorias do serviço público defenderem reajustes salariais no meio da recessão quando possuem estabilidade e algumas categorias recebem acima do teto do funcionalismo, que passou da hora de ser respeitado. Citando um estudo do Insper, ele destaca que, para muitos trabalhadores — os informais, por exemplo —, uma política pública deveria auxiliá-los a aumentar a capacidade de geração de renda e reduzir a volatilidade dos rendimentos.“Dessa forma, é importante discutir os mecanismos por meio dos quais as pessoas poderiam aumentar seu potencial de geração de renda”, diz. (RH)