Camaleões da política
A vitória acachapante da constitucionalização do Fundeb, fundo da educação básica no qual a cota da União passará de 10% para 23% em seis anos, com estados e municípios entrando com o resto, sinaliza movimentos e tendências que vão muito além da derrota do governo.
A PEC foi aprovada com os votos de 499 deputados, espantosos 97% do total de 513, contra minguados sete na primeira votação; e seis, na segunda, ambas na mesma noite de quarta-feira, todos da bancada de bolsonaristas fiéis. Foi um placar mais elástico do que previam os líderes de partidos, tão contundente que dificilmente haverá no Senado, onde também serão duas votações, alguma mudança.
Lembremos de que emendas constitucionais não se sujeitam a veto do presidente da República. Cabe ao presidente do Senado promulgá-las em nome do Congresso Nacional, de modo que o Fundeb, cuja vigência se extinguiria este ano, não só se perenizou como ficou maior.
A articulação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, foi o fator decisivo, ao lado da relatora, Professora Dorinha Seabra, ambos do Democratas. Não houve apenas habilidade política, já que o governo jogou pesado na véspera para ou adiar a votação ou encaixar na PEC algumas encomendas do presidente Jair Bolsonaro ao ministro Paulo Guedes — coisas como custear o Renda Brasil, programa pensado para pôr no lugar do Bolsa Família, tido como ativo político de Lula.
Guedes tentou na undécima hora pedalar o Fundeb, que está fora do teto do gasto fiscal, desviando parte de seu orçamento para o ainda hipotético Renda Brasil. Quis também adiar o início do novo Fundeb para 2022. Supôs que os partidos do tal Centrão, que topam tudo por boquinhas, estavam de quatro para o governo; e que Maia tivesse sido tratorado por eles. O ministro estava mal-informado.
O apoio ao governo não é unânime entre as bancadas do tal Centrão (PSD, Republicanos, Progressistas etc). Não poucos parlamentares estão dispostos a correr riscos devido ao clima antipolítica criado pelo lavajatismo. Intuem também que o centro moderado em que Maia é o virtual porta-voz, com partes majoritárias do MDB, DEM, PSDB, da centro-esquerda não petista e do empresariado nacional, tende a ser mais competitivo do que a extrema-direita que cerca Bolsonaro.
No fim, ao se ver vencido, Bolsonaro louvou no Twitter o que o seu ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e o que sobrou da base de deputados de extrema-direita repudiavam como coisa de comunista.
Estratagema para dividir
Guedes terá de achar outra fonte para saciar a vontade eleitoreira de Bolsonaro, que quer manter algum naco do auxílio emergencial sob a forma de um Bolsa Família repaginado, e voltar ao Congresso para negociar como bancar esse aumento de gasto. Foi um preview do que provavelmente acontecerá com a reforma tributária.
Ele contrariou o consenso pela unificação de todos os tributos que incidem sobre o consumo num único imposto sobre bens e serviços, o IBS, conforme projetos em discussão na Câmara e Senado. Sua ideia é unificar apenas o PIS e Confins, sob a forma de contribuição (CBS), cuja receita não é rateada com estados e municípios, e alíquota de 12%, considerada alta demais para os setores de serviços mesmo com o crédito financeiro em cada etapa da cadeia produtiva.
Talvez seja um estratagema para dividir o consenso e mais adiante aceitar a proposta mais viável, a PEC 45, da Câmara, inspirada em estudos do economista Bernard Appy, em troca da volta de uma versão ampliada da CPMF (agora, a pretexto de isentar os encargos sobre os salários, como antes seria para a saúde, que nunca saiu da UTI).
Solidariedade federativa
A tramitação da reforma tributária deve pautar-se pela do Fundeb. Maia tocou pessoalmente reuniões com os interessados, promoveu com a relatora Dorinha e outros deputados seminários com especialistas, aparou as demandas corporativistas e considerou os marcos fiscais.
No caso da tributária, Maia e o relator Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) já se reuniram com a maioria dos setores empresariais e ouviram os governadores e prefeitos. Os ajustes estão prontos para acordos na comissão mista que vai conciliar os projetos da Câmara e do Senado.
IVA dual como propõe Guedes é muito esforço para pouco resultado. Se a União se isolar, não há muito a fazer para simplificar a base tributária e cogitar mais à frente a sua redução. Não há como dar de ombros a que o país é uma federação, não um Estado unitário, o que significa que as relações fiscais são solidárias entre todos os seus entes, o que não tem sido desde a Constituição de 1988.
Mitos do imposto “pimba!”
E uma nova CPMF? É ruim, pois onera tudo e a todos, desconectada de relações econômicas. Basta sacar no caixa eletrônico ou passar o cartão de crédito e... Pimba! Nenhum país relevante tem isso.
Há muito embuste sobre um imposto eletrônico. Hoje, todo imposto é pago em bancos por meio digital. Os fiscos é que devem se atualizar e adotar o regime de débito/crédito instantâneo como o pagamento de qualquer conta e transferência via TED. O que falta é digitalização em massa de CPF e CNPJ, cuja carência explica a demora e as fraudes na liberação do auxílio emergencial pela CEF.
Agenda real dos críticos
Outro mito é que o setor de serviços seria o mais afetado, sendo a maior atividade em relação ao PIB, 73,8% de seu valor adicionado, e grande empregador. Fato: 18% dos serviços são públicos (seguridade, saúde, educação, defesa). Comércio entra com 13,7% no PIB. Micros e pequenas empresas, que são grandes empregadoras, estão no Simples.
Mais um mito: desonerar a folha aumentaria salário e emprego. Não. Salário cresce quando a oferta de vagas de trabalho excede a procura, enquanto o emprego surge de crescimento econômico. Então, por que insistem com a CPMF?
Por ser um ardil para majorar a carga tributária, evitar a difícil reforma da governança do Estado e desonerar alguns poucos negócios. Essa é a real agenda dos críticos da reforma tratada no Congresso.