Síndrome de pânico
Não há tempo a perder com meias palavras. A pandemia se alastra e não há como ser otimista num país desleixado com a saúde da maioria da população. A economia já estava débil antes da crise sanitária e não se erguerá repetindo ortodoxias econômicas obsoletas. O governo está atarantado e cria distrações para disfarçar o seu pânico.
Estamos desde a reforma monetária de 1994, que foi, a rigor, a única mudança de fato impactante em 50 anos, ao extirpar a hiperinflação e promover alguma estabilidade econômica e um aumento permanente da renda real dos mais fracos, andando de lado, tendendo à regressão, sem nenhum sinal de atenção ao progresso e ao bem-estar universal.
Como o humilhante 7 a 1 no sinistro jogo de 2014 com a Alemanha, o país joga na defesa no campeonato do iluminismo civilizatório desde que, por duas vezes, deu com os burros n’água ao tentar empreender as obras físicas e sociais sem as quais não há nação — há um amontoado pela sobrevivência, com uns poucos afortunados salvando a pele. Na primeira goleada, fomos à breca com a dívida externa do período militar, que se foi com a sua moratória, deixando, ao menos, um pouco de infraestrutura que ainda nos serve como estradas, portos, pontes e energia das hidrelétricas. Pouco se fez depois da insolvência das contas externas, que só veio a ter fim no governo Itamar Franco.
A redescoberta da importância da infraestrutura deu-se ao final do governo Lula, com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que impulsionou a eleição e reeleição de Dilma Rousseff. E destampou a corrupção entranhada no setor público por empreiteiras e empresas enriquecidas pelo histórico conluio com um naco da burocracia e partidos com único compromisso programático de servirem como despachantes entre o público e o privado.
Não podia dar certo e não deu. Mas o fracasso do PAC, como antes o do Brasil Potência, não se deveu à corrupção, e, sim, ao que tem sido a tônica do desenvolvimentismo nacional: suas carências de capital, de plano de longo prazo independentemente da ideologia do governante da vez, de senso de missão de propiciar o enriquecimento coletivo. A crise do novo coronavírus pode ser outra oportunidade de fazer brotar esperanças em meio à desgraça. Tempos de desespero criam dinâmicas impensáveis. Elas começam por acharmos as razões de nosso fracasso.
Interesse nacional sabotado
As ideias do desenvolvimento estavam, em tese, certas. Erradas foram sua execução, seus propósitos e a falta de correção pontual devido ao deficit de atuação crítica da sociedade. Tais mazelas estão de volta, agora agravadas pelo sucateamento da gestão do Estado e pela incapacidade do governo atual e de seus apoiadores em entender os motivos do atraso e o que fazer para destravar as soluções.
Por onde começar? Onde a gestão atual enxerga uma guerra marxista contra os “valores da civilização ocidental”, enxergar o que também inviabilizou os planos passados, como o dos militares. Coragem para admitir que interesses pecuniários sabotaram o interesse nacional.
Não por acaso, tais programas, desde a construção de Brasília e a centralidade da logística rodoviária em contraponto às ferrovias e à navegação de cabotagem, terminaram em retumbantes fracassos tanto econômicos e financeiros quanto políticos e sociais. Não foi bem o senso do plano de desenvolvimento que deu errado. Errado foi fazê-lo restrito a poucos, em especial à burocracia de Estado e a grupos econômicos, e não à formação de um mercado de consumo de massa.
Coalizão contra o progresso
Em algum tempo, vamos ter de encarar o imenso abismo aberto entre a pequena parcela com renda regular e acesso a crédito, 56 milhões de pessoas, se tanto, e a população em idade de trabalhar, 172 milhões — ou na força de trabalho, 105 milhões. Destes, com emprego formal, são apenas 34,7 milhões, incluindo o doméstico registrado.
A CLT, razão de tantas lutas políticas, sempre cobriu não mais que um terço da força de trabalho, apesar de sustentar mais de 15 mil sindicatos de trabalhadores e de empresários. Atual ministro da Economia, Paulo Guedes quer trocar os encargos que oneram a folha dos celetistas, uma minoria, por uma CPMF que oneraria o conjunto da população.
Não faz sentido. Como não fizeram os programas de moradia popular desde o finado BNH. Nunca resolvemos o problema, apesar de o número de domicílios em “aglomerados subnormais”, que é como o IBGE chama as favelas, ser de 5,12 milhões em todo o país — muitos, mas muito menos do que os bilhões gastos para fechar o deficit habitacional.
Significa que são programas, de fato, para favorecer construtoras, não populações carentes, além do mais, não servidas por saneamento, cuja reforma está emperrada no Senado pelos partidos fisiológicos, que hoje apoiam o governo, e de esquerda. É a coalizão do atraso.
Como um raio em palha seca
Fato é que o mundo mudou, sendo a pandemia um raio que pôs fogo no que já estava pronto para queimar. Como a revolta nos EUA contra o racismo secular e o brutal empobrecimento desde os anos 1970, com a aplicação espúria dos valores do liberalismo político na economia. Aplica-se lá, e vale também aqui, o pensamento do grande intelectual James Baldwin: “Nem tudo o que é enfrentado pode ser mudado, mas nada pode ser mudado até que seja enfrentado.”
No social, não se deve ignorar as demandas da pobreza. Na economia, faz mais mal que bem a noção de que o país gasta muito, quando gasta é mal, de modo ilegítimo, sem planejamento, ao chumbar na Constituição e em leis ordinárias a destinação do grosso dos dinheiros fiscais.
É espantoso que economistas bem-intencionados sejam obcecados pela noção de austeridade que bancos centrais austeros, como dos os EUA, da Inglaterra e o europeu não mais prescrevam nem exerçam, assim como o próprio FMI.
Nosso problema é de governança. E hoje, de um governo que teme a maioria por não saber o que lhe cabe propor e governar.