A pandemia do novo coronavírus intensificará o processo de desglobalização, em curso desde a crise financeira de 2008 e impulsionado pela guerra fria entre Estados Unidos e China. As restrições à movimentação de estrangeiros e as barreiras sanitárias provocadas pelo combate à covid-19, ao somarem-se à recessão mundial e às medidas de nacionalismo, enfraquecem as relações internacionais, os blocos comerciais e os acordos bilaterais. A interdependência ocidental da produção em larga escala do gigante asiático, descortinada durante a crise sanitária, adiciona combustível à desintegração global, dizem especialistas.
O protecionismo aumentará nos próximos três anos, estima Guto Ferreira, estrategista-chefe da Solomon’s Brain, consultoria de cenários político-econômicos. “Isso já começou. Estados Unidos e Japão estão dando incentivos para que suas empresas sediadas na China saiam de lá. Há uma pressão muito forte dos EUA. A China deve ter um problema considerável, por conta da desconfiança e da interdependência”, avalia.
Outro ponto de preocupação, acrescenta Ferreira, são os acordos bilaterais. “A relação Mercosul e União Europeia vai estacionar. O enorme desemprego que a recessão está provocando e o empobrecimento global farão o protecionismo voltar com força. Vai se recuperar mais rápido quem se industrializar”, diz. No Brasil, o problema agrava-se porque o país sofreu um processo violento de desindustrialização nas últimas décadas. “E a opinião da equipe econômica é contrária à indústria nacional. A visão é fortalecer as cadeias de comércio e de serviços e vender commodities com dólar alto”, destaca.
Na visão do professor de Finanças Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) André Moreira Cunha, pesquisador na área de globalização e integração econômica, a desglobalização é um fenômeno que passa a ser discutido desde a crise financeira de 2008, com a menor velocidade do comércio exterior e problemas, também, na área financeira. “O fluxo entre os países de investimento direto ou empréstimo bancário vem caindo desde lá”, alerta (confira nos gráficos).
Segundo Cunha, o movimento cresceu bastante com a ascensão da China e o início das guerras comerciais com os Estados Unidos. “A administração do presidente norte-americano Donald Trump tornou a tensão bem mais agressiva. O nacionalismo recrudesceu, com governos alardeando conspiração globalista”, destaca. O professor cita o economista de Harvard Dani Rodrik para justificar o fenômeno. “A economia globalizou-se, mas a base política é nacional e a cultura também é local”, parafraseia. Com as classes médias de países desenvolvidos desempregadas, endividadas e com medo, o populismo nacionalista impõe-se mais facilmente, tanto de esquerda quanto de direita, assinala. “Se a integração internacional já perdia força, com a pandemia e o seu efeito econômico catastrófico, paralisando o consumo e o emprego numa velocidade nunca vista antes, tal movimento vai se acentuar”, reitera.
Como efeito, o professor da UFRGS prevê mudança nos padrões de consumo e na organização da produção. “A internalização da produção, no entanto, não remete necessariamente à criação de empregos, porque vivemos em um mundo digital, em que a robótica e a inteligência artificial substituem cada vez mais a mão de obra. Por isso, as novas redes de proteção social, de renda mínima, criadas para enfrentar a pandemia, podem se perpetuar. Tudo isso conduz a um mundo completamente diferente”, projeta.
Como as pandemias não respeitam fronteiras, a questão sanitária exigirá mais controle na exportação e na importação de produtos e na entrada de pessoas em outros países. “No curto prazo, o desenho é muito ruim. No longo prazo, ninguém sabe se crescerá o populismo fechado ou se prevalecerá a conscientização de que é preciso repensar as relações internacionais”, observa.
Mesmo com a recuperação das economias em velocidades diferentes, o impacto sobre o comércio internacional será inevitável, no entender do professor Pedro Brites, da Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV). “Do ponto de vista mais amplo, a gente já tinha uma tendência de queda da globalização. A guerra comercial entre China e EUA é um símbolo disso, com reflexo na redução dos fluxos internacionais”, ressalta. “Dentro das organizações regionais, Mercosul, União Europeia e Nafta passam por reformulação para incorporar novas perspectivas”, diz.
Pior para o Brasil
No Brasil, a crise é mais grave, porque o país reduziu sua participação internacional e sempre teve dificuldade de se integrar às cadeias de valor, pontua o professor da FGV. “[O país] Sempre participou com commodities. Não tem condições de recuperar a capacidade industrial em curto espaço de tempo. Isso exige uma política de Estado”, sustenta.
Pesquisadora associada do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre) Lia Valls discorda, apesar de reconhecer que a pandemia está fortalecendo as políticas nacionalistas, com menor cooperação global. “Talvez a fragmentação da produção tenha ido muito longe. É preciso repensar qual o grau de fragmentação se pode ter. Mas é impossível os países mudarem totalmente os sistemas de produção, o modo de consumo. Nenhum país consegue fabricar tudo. Existe limite para o fechamento”, defende. “Não será um mundo multilateral como antes, mas cooperações serão necessárias. Ambiente isolado é impossível”, reforça.
A mesma opinião tem Luiz Filipe Dutra, coordenador do China Desk do escritório Gico, Hadmann & Dutra Advogados. “A globalização é um evento muito maior do que uma estrutura de governo atual. Não acho que vai ser afetada, ela está posta”, afirma. Segundo ele, a pandemia expôs uma interdependência muito grande dos países com relação à China. “Não significa que a China seja a única produtora de respiradores, por exemplo, mas ela tem uma capacidade de produção maior”, assinala.
Dutra pondera que o mundo vai repensar a estrutura da globalização e tentar depender menos de um só país. “O maior problema da China é confiança. No Brasil, não vejo mudança significativa de política industrial. Vamos fortalecer a produção de commodities. Baseado num único evento como o coronavírus, dificilmente se trocará uma política econômica inteira”, ressalta.
Para o ex-embaixador e sócio do escritório Licks Attorneys Regis Arslanian, no entanto, é exatamente isso que o país precisa fazer. “Pode ser uma grande oportunidade para o Brasil, uma forma de se renovar, de reformular a economia. Hoje, 65% das nossas exportações são de commodities e produtos primários. É hora de o Brasil renovar sua indústria e torná-la mais moderna”, sugere. O especialista lamenta que, na área de tecnologia de ponta, o país tenha se tornado uma indústria montadora. “Fica difícil fazer parte das cadeias de valor assim”, diz.
Regis Arslanian considera que, como a pandemia deixou a China com uma imagem desgastada e a interdependência revelou uma vulnerabilidade muito grande dos países do Ocidente, o Brasil poderia se reposicionar diante da América do Norte e da Europa. “As grandes fábricas vão repensar onde criar os seus parques de produção e reconfigurar as cadeias de produção. Quem sabe olhar para parques mais próximos e com quem tenham afinidade econômica e cultural. Aí entraria o Brasil”, aponta.
Maior segurança e mercados mais acessíveis em distância geográfica, com mais afinidade, podem tornar a América Latina mais viável, acredita Arslanian. “A gente tem que fazer a lição de casa, facilitar o ambiente de negócios, dar segurança jurídica e montar uma agenda de reindustrialização no Brasil no patamar de tecnologia de ponta para ganhar competitividade”, defende.
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