O Brasil tem 17,1 milhões de famílias nas classes A e B. Integrantes de um terço delas pediram o auxílio emergencial de R$ 600 (desenhado pelo governo para socorrer os mais necessitados diante da crise do novo coronavírus) e 69%, ou 3,9 milhões de pessoas de alta renda, embolsaram o dinheiro, segundo dados do Instituto. O que pode parecer um escândalo para os mais humildes que se aglomeram em filas para receber e aguardam meses a análise dos CPS se tornou prática corriqueira e sem culpa dos integrantes da parte de cima da pirâmide social.
Renato Meirelles, fundador e presidente do Instituto Locomotiva, revela que eles acham que têm direito, “porque consideram que o dinheiro público não é de ninguém”. Do ponto de vista moral e ético também não acham errado e ainda comemoram pelas redes sociais. “Divulgam churrascos regados a cerveja ‘do auxílio emergencial’. Em momento algum pensam que tiram de quem precisa. O curioso é que todos eles dizem que são a favor do Estado mínimo e contra a corrupção”, destacou.
As informações sobre fraudes no acesso ao auxílio emergencial vêm também do Tribunal de Contas da União. Relatório em análise pela Corte indica que os R$ 600 podem ter sido pagos indevidamente a 8,1 milhões de brasileiros. De acordo com o TCU, o valor dos pagamentos indevidos pode chegar a R$ 3,6 bilhões.
O ministro Bruno Dantas, que é o relator da fiscalização no TCU, explicou que a falha foi possível porque, ao cruzar os dados dos brasileiros que pediram o benefício, a Dataprev e o Ministério da Cidadania checaram a renda declarada por esses trabalhadores através do Imposto de Renda, mas esqueceram de avaliar a situação dos seus dependentes junto à Receita Federal.
“As denúncias não param de chegar ao meu gabinete e dão conta de que milhões de filhos da classe média alta, que são dependentes de pessoas que declararam o Imposto de Renda, estão recebendo o auxílio por falta desse cruzamento elementar”, revelou Dantas.
Ontem à noite, o TCU aprovou um acórdão em que faz uma série de recomendações ao governo federal para aperfeiçoar a análise cadastral e dar mais transparência aos pagamentos do auxílio emergencial de R$ 600. Entre outras providências, o TCU recomenda que o Ministério da Cidadania amplie a base de dados utilizada pela pasta e pela Dataprev para identificar quem tem direito ao benefício, e faça cruzamento de informações com outros bancos de informações, como os da Receita Federal.
Além disso, recomendou que o Ministério da Cidadania e o Ministério da Economia trabalhem em conjunto para publicar um relatório mensal da execução do auxílio emergencial.
Favela
A pesquisa do Instituto Locomotiva foi feita com 2.006 pessoas, em 72 cidades, em todos os estados da Federação, de 20 a 25 de maio. A sondagem levou em conta a renda mensal mínima por pessoa de R$ 1.780 a R$ 7.120 mensais para uma família de quatro integrantes (pouco abaixo da estimada pela FGV, a partir de R$ 8.641). Meirelles lembrou que, embora a simulação aponte renda mínima familiar de pouco mais de R$ 7 mil, a maioria, nesses casos, está na faixa salarial de R$ 10 a R$ 15 mil mensais.
“Somente 2% dessas pessoas disseram que usaram o dinheiro para comprar comida, diferentemente do que constatamos em pesquisa feita nas favelas, onde a maioria que ganha o auxílio o divide com familiares, amigos e vizinhos, para que todos possam comer”, reforça Meirelles. Nas favelas, dois terços dos moradores pediram e 39% não conseguiram os R$ 600. Segundo o fundador do Instituto, as aberrações são consequência, principalmente, da falta de cruzamento entre os diversos cadastros de dados do governo.
A Controladoria-Geral da União também revelou que centenas de militares das Forças Armadas, jovens de classe média, esposas de empresários, servidores públicos aposentados e dependentes já fraudaram o frágil sistema público de tecnologia da informação. Pelos dados da CGU, mais de 160 mil benefícios podem ter sido obtidos de maneira irregular.
O Ministério da Cidadania, responsável pelo auxílio emergencial, esclareceu que aqueles que burlarem a legislação estão sujeitos a penalidades nas esferas cível e criminal. E informou que mantém acordos de cooperação técnica com o TCU e a Controladoria-Geral da União (CGU) para aperfeiçoar a fiscalização dos benefícios. A Dataprev, que faz o processamento dos cadastros, manifestou o compromisso de seguir as orientações do TCU.