A crise provocada pelo novo coronavírus evidenciou a fragilidade estrutural e agigantou as desigualdades sociais do Brasil. Os serviços públicos, necessários para mais de 75% da população, são precários. O sistema de saúde é insuficiente e começa a entrar em colapso em alguns estados. A falta de saneamento básico, uma agenda do século 19, ainda assola o país e 35 milhões de pessoas não têm acesso à água. A informalidade é brutal, com mais de 38 milhões de brasileiros invisíveis ao Estado. E as moradias são indignas para grande parte da população, que não consegue nem manter a higiene básica, muito menos cumprir os protocolos que reduzem o risco de contaminação. A pandemia desnudou as mazelas do Brasil. Uma vez vencida, contudo, tem potencial para deixar legados positivos, dizem especialistas.
Para Claudio Porto, fundador e presidente do conselho de administração da Macroplan, o posicionamento da saúde como a maior prioridade do país nesta década é um deles. “Não só a expansão, mas a melhoria da produtividade das redes de saúde”, diz. O especialista lembra que a taxa de cobertura de planos de saúde no Brasil era de 25% em fevereiro de 2020. Ou seja, 76% da população são dependentes do Sistema Único de Saúde (SUS). “Em alguns estados, a cobertura de saúde suplementar é ainda menor, como no Acre, 5,5%; e em Roraima, 6,2%”, destaca.
“As fragilidades da infraestrutura no Brasil têm se acentuado ao longo das últimas três décadas. Foi congestionando e, depois, degradando, até por falta de investimento de reposição”, afirma. O especialista considera que o país deveria concentrar esforços público e privado na saúde. “Ficou claro, com a pandemia, que é necessário melhorar a logística associada ao setor, desde o transporte, softwares, telemedicina, suprimento estratégico. Temos que elevar o padrão para o século 21”, sugere.
A crise ressaltou o papel do Estado, na opinião de Adriana Schier, presidente da Comissão de Serviços Públicos do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). “No Brasil, há uma tentativa de retirada do Estado, sobretudo, no que tange a investimentos em serviços públicos. Porém, quando a necessidade é urgente, apenas o Estado pode ajudar”, afirma, parafraseando Jürgen Habermas, filósofo alemão, que, até a pandemia, defendia um Estado menos intervencionista. “Saúde, seguridade e infraestrutura são áreas em que o país já tinha carência muito grande. Isso foi agravado agora”, diz.
Segundo Schier, em 2018, houve 50 mil mortes por falta de acesso aos serviços de saúde e 150 mil óbitos em face da falta de qualidade deles. “E temos uma lei que congela o investimento em saúde por 20 anos”, critica. A executiva do IBDA assinala que o discurso de que não há recursos para a saúde caiu por terra. “Desde que a contratação direta para compras de medicamentos foi permitida (em fevereiro) já foram gastos R$ 703 milhões. Isso mostra que há falta de prioridade e não de verbas”, sustenta. A especialista torce para que, passada a crise, haja maior reconhecimento da necessidade do Estado e dos serviços públicos, com mais investimentos.
Riscos
A característica epidemiológica da crise do novo coronavírus descortinou as carências sanitárias do Brasil. No entender de Renata Ruggiero, diretora da Iguá Saneamento, enquanto o país discute inteligência artificial, 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada. “Outro paradoxo: somos a nona economia do mundo e 100 milhões de pessoas não têm coleta e tratamento de esgoto”, revela. Metade do Brasil vive com fossas que não são feitas adequadamente e contaminam o lençol freático, diz.
A pandemia tornou a realidade brasileira mais visível, mas também oferece caminho em direção a soluções alternativas, aponta a especialista. “Precisamos avançar na inovação do setor. O modelo de grandes redes e estações de tratamento não é o único, apesar de ser o nosso sistema há anos e em todos os lugares. Há localidades que carecem de soluções descentralizadas, que são mais rápidas de serem implementadas”, defende. Em favelas, por exemplo, já existem alternativas com 95% de eficiência, viáveis e mais sustentáveis. “Podemos sair dessa crise com um olhar mais inovador de aceitação dessas novas tecnologias”, aposta.
A diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV Ceri), Joisa Dutra, assinala que, ao sair da crise, o país vai encontrar uma economia muito deprimida, com perda de uma renda que não será recuperada. “Neste sentido, temos visto muitas medidas para isentar pagamento de serviços essenciais, como energia, regulada em nível nacional. No caso de água e saneamento, a competência é subnacional e alguns municípios estão adotando essa flexibilização, com postergação e parcelamento do pagamento”, conta.
Porém, a especialista alerta que, se, de um lado essas medidas protegem os consumidores, elas representam risco para as prestadoras dos serviços. “As empresas começam a sofrer inadimplência, que depois será difícil de ser revertida mesmo com a recuperação econômica. É preciso criar mecanismos que ajudem a trazer os consumidores para adimplência”, defende. Dutra ressalta que a crise evidencia o deficit no saneamento. “Há dificuldades de garantir água para as pessoas lavarem as mãos em um cenário de enorme transmissibilidade do vírus”, diz.
Além da preocupação de garantir que os prestadores de serviços continuem operando, do ponto de vista financeiro, com receita em queda e inadimplência, outro desafio, segundo a diretora, é operacional. “As equipes operativas, na linha de frente, precisam ter a saúde preservada”, lembra.
» Oportunidades
As deficiências de infraestrutura escancaradas pela pandemia oferecem oportunidades de investimento, segundo Fábio Luis Izidoro, sócio do Miguel Neto Advogados. “Temos carência em saneamento, moradia, saúde, mas isso pode ser uma mola propulsora para a retomada da economia e uma ferramenta de gestão política”, pontua. “O momento é de olhar para frente no sentido de buscar a recuperação, tirar marcos regulatórios que estão na gaveta, como o do saneamento, e fazer pressão à classe política para que façam os projetos tramitarem”, sugere. No entendimento de Alberto Sogayar, sócio do L.O. Baptista Advogados, como a estrutura política e econômica do Brasil é muito frágil, qualquer mudança provoca abalos. “Para a retomada será necessário gerar emprego. Investir na infraestrutura tem potencial para criar postos de trabalho mais rapidamente”, afirma. No entanto, o advogado alerta que, após a pandemia, o mundo inteiro estará em liquidação. “Estamos represando investimentos que deverão ser feitos, mas, para que os ativos sejam interessantes, teremos de garantir segurança jurídica.”
Sobre a falta de oportunidades
O país sairá mais endividado da pandemia de coronavírus, o que deve acentuar a desigualdade social. “O Brasil vai sair mais desigual do que entrou”, alerta Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada da Fundação Getulio Vargas (FGV). “A parte mais afetada, aquela que não pode ficar em casa no home office, que trabalha com atividades manuais, cujas empresas pararam, será demitida. O mercado de trabalho se agravará muito”, prevê.
Com isso, o acesso à saúde vai piorar, porque quem tem plano de saúde e perde o emprego corre para o SUS. “As estatísticas de mortalidade parecem mais concentradas em locais mais vulneráveis. Talvez, isso obrigue o governo a repensar as políticas públicas e aumentar o gasto social. O auxílio emergencial, por exemplo, não deve durar só três meses”, afirma Duque.
Para Cristina Mello, economista da ESPM SP, essa crise tem uma característica diferente porque a condição de desigualdade ameaça o conjunto da sociedade. “Temos desigualdade interpessoal, salarial, regional e funcional. Todas emergem da mesma questão, a falta de oportunidade. Porque se todos tivessem acesso às mesmas habilidades, seria uma questão de escolha”, avalia. “Por isso, precisamos corrigir a inacessibilidade à educação, à terra e à formação”, diz.
A crise também descortinou efeitos negativos da desindustrialização. “A pandemia destruiu emprego e cadeias produtivas. Para ter alguns produtos, dependemos de outros países, e o transporte está limitado. Também falta acessibilidade à informação”, enumera.
Segundo ela, o governo presumiu que as pessoas tivessem smartphone e celular, sem promover o acesso ao letramento digital e midiático. “Quem não sabe usar a tecnologia fica excluído socialmente.”
No entender de Claudio Frischtak, presidente da Inter B Consultoria, a grande questão é como o país vai encontrar uma saída. “Como o país vai resolver o endividamento e empobrecimento? Não pode ser via inflação, pois penaliza a população, nem por aumento de impostos. O que vai ocorrer, na minha opinião, é uma pressão crescente para cortar os privilégios exorbitantes que continuam existindo. Ainda que haja uma insensibilidade muito grande por parte das elites, acho difícil esses privilégios sobreviverem à crise.”